Direitos humanos, dignidade e erradicação da pobreza: uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Direitos humanos, dignidade e erradicação da pobreza: uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional / Lúcia Barros Freitas de Alvarenga. Brasília, Brasília Jurídica, 1998, 248 p.

 

                   

 

Ao final de 2023, o MDHC – Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania lançou relatório sobre pessoas em situação de rua no Brasil – https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/setembro/mdhc-lanca-relatorio-sobre-pessoas-em-situacao-de-rua-no-brasil-estudo-indica-que-1-em-cada-mil-brasileiros-nao-tem-moradia.

O levantamento inclui perfil da população em situação de rua, apontamentos sobre articulação interministerial, uso problemático de drogas como problema de saúde pública, fortalecimento de acesso a emprego e renda e implementação de política habitacional robusta, equitativa e estruturante.

O significativo é que entre as conclusões, o relatório aponta que a articulação interministerial para a construção de políticas públicas para pessoas em situação de rua deverá envolver as pastas do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS); do Trabalho e Emprego (MTE); da Educação (MEC); da Saúde (MS); da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e das Cidades (MCID).

Além disso, o documento afirma que é “primordial fortalecer a atuação dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e outros equipamentos, serviços, programas e projetos de assistência social básica, visando a prevenir situações de vulnerabilidade e risco social e fortalecer vínculos familiares e comunitários; e a atuação dos serviços de proteção especial, como os CREAS e Centros Pop, favorecendo a reconstrução desses vínculos, a defesa de direitos e o enfrentamento das situações de violações”.

Outros pontos de destaque se referem ao fortalecimento do acesso a emprego e renda, direitos básicos como documentação e educação; olhar para o uso prejudicial das drogas como problema de saúde pública, promovendo equipes de Consultório na Rua, dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros serviços de atenção à saúde tem grande relevância.

O enfrentamento às condições de indignidade que a pobreza provoca, é hoje um eixo ético que constitui a leitura realizadora dos direitos humanos e da afirmação dos direitos fundamentais, que se tornou, com a Constituição de 1988, um dos princípios estruturantes da sociedade brasileira, sintetizados nos objetivos estabelecidos em seu artigo 3º: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Assim se entende porque se criou na estrutura de governo articulações para a promoção e implementação de políticas públicas para a realização desses objetivos, entre elas um ministério para a atenção aos direitos humanos, a dignidade das pessoas e a cidadania.

A ideia pois, dos direitos humanos, dignidade e erradicação da pobreza, como dimensão hermenêutica para a realização constitucional, era um desafio à concretização da política e dos direitos, especialmente os direitos constitucionais, no contexto de um pensamento elitista e segregador que naturalizava desigualdades e reduzia o jurídico, incluindo o jurídico constitucional, a uma abstração vazia de conteúdo, conduzindo o direito e o direito constitucional a um estiolamento formal hipócrita nas suas promessas, igualmente vazias em sua concretização.

Essa a importância do livro tema deste Lido para Você. Numa conjuntura ainda de exacerbado positivismo, o constitucional, em que pesem as revoluções sociais (mexicana e soviética), que reivindicaram a afirmação dos direitos alimentares (socialistas) e não só dos elementares (liberais), abriram as Constituições modernas para a agenda dos direitos, que até então só tratavam da organização dos poderes e da garantia dos direitos formais (“não será constituição a que não assegure a separação dos poderes e a proteção aos direitos humanos”, conforme a Declaração de 1789).

Há na obra de Lúcia Alvarenga uma nota evidente de antecipação. Colocar na agenda da realização constitucional do Direito a dimensão material da Justiça Social que tem na pobreza o acicate da desigualdade, porque a miséria de muitos e o regozijo de poucos, garantido por um sistema legal que apoia a sua ganância.

Acaba de ser publicado o relatório da Oxfam sobre a desigualdade no mundo (https://www.ihu.unisinos.br/636062-riqueza-dos-cinco-homens-mais-ricos-do-mundo-dobrou-desde-2020-enquanto-a-de-5-bilhoes-de-pessoas-diminuiu-revela-novo-relatorio-da-oxfam): “Os cinco homens mais ricos do mundo mais que dobraram suas fortunas desde 2020 – de US$ 405 bilhões para US$ 869 bilhões -, a uma taxa de US$ 14 milhões por hora, enquanto quase cinco bilhões de pessoas ficaram mais pobres, revela o novo relatório da Oxfam, Desigualdade S.A., lançado nesta segunda-feira (15/1). O relatório, que discute a relação das desigualdades e o poder corporativo global, mostra ainda que se a tendência atual continuar, o mundo terá seu primeiro trilionário em uma década, mas a pobreza não será erradicada nos próximos 229 anos. O relatório Desigualdade S. A., publicado no início do Fórum Econômico Mundial, que reúne a elite do mundo corporativo em Davos, na Suíça, informa que sete das 10 maiores corporações do mundo têm um bilionário como CEO ou principal acionista. Essas empresas valem US$ 10,2 trilhões, mais do que o PIB combinado de todos os países da África e da América Latina”.

O livro “DIREITOS HUMANOS, DIGNIDADE E ERRADICAÇÃO DA POBREZA: UMA DIMENSÃO HERMENÊUTICA PARA A REALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL”, Ed. Brasília Jurídica, 1998, 248 pp., de Lúcia Barros Freitas de Alvarenga, é um dos primeiros a tratar desse tema.

Lembrei-me desse livro há poucos dias. Embora tivesse sido o orientador da dissertação de mestrado que lhe deu origem, defendida por Lúcia, na Faculdade de Direito da UnB (1994-1997), eu havia perdido de vista a autora e a obra, logo que Lúcia retornou para o seu Mato Grosso do Sul.

Há poucos dias nos tornamos amigos no facebook e me surpreendi com uma postagem de Lúcia sobre o livro, com o registro de meu comentário sobre a obra lançado na quarta-capa da sua primeira edição (1998).

Retomo, para os objetivos desta recensão, o teor daquele meu comentário. Com efeito, ali eu lembrava, que em ‘Uma dialética da Invenção’, o poeta mato-grossense MANOEL DE BARROS, uma das mais altas expressões da poesia brasileira contemporânea, fala-nos de uma pedagogia de compreensão do mundo que se aproxima da intimidade enquanto dimensão existencial do conhecimento (in: O livro das Ignorãnças).

Não é por acaso, nem por causa do parentesco, que abro este comentário acerca de Lúcia Barros Freitas de Alvarenga e de seu livro “Direitos Humanos, Dignidade e Erradicação da Pobreza: Uma dimensão Hermenêutica para a realização constitucional”, com uma citação poética. Embora esteja convencido de que a literatura não é um delírio, mas uma apropriação do real por meio de outro discurso, a reverência à poesia aqui decorre de um objetivo hermenêutico preciso e exemplar. É que ela remete a um perfil novo de jurista, cujo desempenho atual emerge das crises da década que abriram o questionamento acerca da função social e da cultura legalista de sua formação, para constituir um intérprete e realizador do Direito que deve, tal como mostra Martha Nussbaum (Justicia Poética: La Imaginación Literaria y la Vida Pública), não só “refinar suas aptidões técnicas, mas sua capacidade humana”.

Este é o perfil de Lúcia Alvarenga, desenhado com as cores da sensibilidade e da reflexão, no importante trabalho que a autora mato-grossense desenvolveu em seus estudos avançados no seu Mestrado na Faculdade de Direito da UnB. A inserção do trabalho no roteiro da hermenêutica constitucional é objeto do prefácio de Inocêncio Mártires Coelho. De minha parte, o que desejo pôr em relevo é esta dimensão nova tão presente no livro de Lúcia e que faz dele um apelo à ampliação das possibilidades de compreensão e de explicação dos problemas fundamentais do Direito Constitucional. Com efeito, em seu livro, Lúcia porta, como recomenda o constitucionalista português J.J. Gomes Canotilho, esta espécie de “olhar vigilante das exigências do ‘direito justo’ e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”.

Para Lúcia, os direitos fundamentais colocados no cerne da realização constitucional, são a expressão desse exigência e pressupõem a experiência de sujeitos capazes de agir e de refletir sobre sua ação e sobre a validade ética de seu agir, num aprendizado constante. Assim é o livro de Lúcia Alvarenga, forte no recuperar o impulso dialógico e crítico, nutrido em outros modos de conhecer e compreender as normas jurídicas; escapa, desse modo (é ainda Canotilho quem o diz), de restar definitivamente prisioneiro da aridez formal e do conformismo político do velho e dogmático Direito Constitucional”.

A realidade brasileira ainda enfrenta graves e sérios problemas relativos aos direitos sociais, essencialmente ligados à miséria e à fome, o que deixa evidente que dois dos princípios fundamentais elencados pela Constituição Federal – a Dignidade da Pessoa Humana e a Erradicação da Pobreza – não foram efetivamente concretizados. Se realizar a Constituição requer que se tornem juridicamente eficazes as normas constitucionais, é correto afirmar que a Constituição Federal encontra-se prenhe de realização, mas não realizada. Para que ela se realize, portanto, é necessário que as políticas públicas voltadas para os direitos sociais sejam implementadas e que, através de uma hermenêutica dos magistrados e da função transformadora dos operadores do Direito, se dê efetividade aos princípios basilares por ela elencados. Afinal, erradicar a pobreza significa outorgar ao indivíduo a capacidade de conscientização e de hermenêutica, mas, sobretudo, é um processo de resgate à dignidade possível, à cidadania plena, ao direito a ter direitos.

Membro da banca e autor da Apresentação da obra, o professor e constitucionalista e ex-Procurador-Geral da República, não hesita em afiançar: “Sobre o estudo de Lúcia Alvarenga, de boa qualidade em toda a sua extensão, desde logo merece louvor o capítulo Hermenêutica e Hermenêutica Constitucional, no qual ela demonstra segurança no trato da matéria e no manejo bibliográfico, fatores que lhe permitiram expor suas ideias com clareza e precisão… Essencialmente, ela conseguiu evidenciar, no onto, e com integral pertinência, que o chamado ativismo judicial tem base de sustentação, digamos, endógena, que está centrada na atividade hermenêutica dos magistrados, assim como energia propulsora, chamemos, exógena, que se estrai da atuação dos operadores do direito comprometidos com a realização constitucional, uns e outros acicatados pela realidade social, que lhes exige participação e engajamento para a construção da cidadania”.

Essa vertente hermenêutica da qual Lúcia é autoria constitutiva está definitivamente inscrita numa perspectiva constitucional que estamos denominando constitucionalismo achado na rua (https://estadodedireito.com.br/democracia-e-dignidade-humana-aporofobia-na-perspectiva-juridico-constitucional-brasileira/).

Curiosamente, sustentada de modo muito orgânico, no sentido intelectual e político do termo, ela tem nuances que a presentem, embora por distintas razões. Em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pelos seus dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.

Para ele, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.

Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.

Eis aí uma perspectiva que se insere no que temos chamado de constitucionalismo achado na rua. Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Políticos sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua (a propósito: https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitucionalismo_achado_na_rua; e, no prelo: SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al – orgs – Constitucionalismo Achado na Rua: uma contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais. Coleção Direito Vivo vol. 8. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2024), vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).

Voltar a Lúcia é prestar um tributo. Seu livro, publicado por uma pequena e comprometida editora de Brasília que não sobreviveu à arrogância do mercado editorial, está confinando hoje aos sebos e bibliotecas particulares. Aponto, assim, para esses maravilhosos repositórios que nos preservam preciosidades.

Eu próprio havia negligenciado essa fonte. Tivesse Lúcia feito um pouco antes sua postagem no facebook, eu lhe teria consignado a justiça de incluir sua obra no artigo que ofereci ao livro celebratório  A constituição da democracia em seus 35 anos / (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023, 656 p.

Com efeito, conforme – https://estadodedireito.com.br/a-constituicao-da-democracia-em-seus-35-anos/  – tive em mente, ao produzir o texto,  tratar-se de um debate público atual sobre importantes questões sociais, econômicas e políticas em tempos de dissolução de direitos, que há três décadas foram garantidos pela aprovação da Constituição Brasileira. E fica a reflexão, animada pelo ensaio de Lúcia Alvarenga, de qual papel estratégico e político devem os movimentos sociais assumir neste projeto ainda em construção para romper o atraso neocolonialista do País. De minha parte, ele é uma continuidade da avaliação que fiz, em evento semelhante, a propósito de celebrar os 30 anos da mesma Constituição, ocasião em que focalizei minha leitura, com uma perspectiva interpelante, inscrita na indagação: Constituição 30 anos: Uma Promessa Vazia?

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

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