Por César Peres[i]
Nada impede que alguém que atue com dolo direto de causar determinado crime venha a responder por dolo eventual, ou até mesmo culposamente, em relação a outro, ambos praticados com uma única ação. Nestes casos, responderá pelos dois fatos. Trata-se do chamado concurso formal, previsto no Art. 70 do CP. A primeira figura – concurso formal próprio – prevê situação em que não existem desígnios autônomos, isto é, o agente pretende praticar apenas um delito, mas acaba também praticando outro, o qual não buscava (mas que lhe era previsível acontecesse). Nesta situação, aplica-se a pena do mais grave, a qual é exasperada de um sexto até a metade (desde que este percentual não seja maior do que a pena que lhe seria imposta pelo segundo crime individualmente, porque o reconhecimento do concurso se opera em favor do réu e não contra ele). A segunda figura trata do chamado concurso formal impróprio, que acontece quando a pessoa, igualmente mediante uma única ação, atinge dois objetivos, os dois buscados dolosamente e, na linguagem legal, a partir de desígnios autônomos (somam-se as penas obtidas de modo individual).
O raciocínio acima exposto, entretanto, não se aplica a essa gestante que tentou o suicídio e sobreviveu, embora tenha dado causa à morte do produto da concepção, contra quem foi oferecida denúncia pelo crime de aborto – situação amplamente noticiada nas mídias. A teoria da imputação objetiva (Roxin) leva à conclusão que de fato não cometeu ela qualquer crime e obviamente nem sequer deveria ter sido denunciada.
E não se trata aqui de indagação sobre se teria ou não havido dolo, direto ou eventual, de aborto – tendo-se por verdade que tinha ela conhecimento da gravidez (não existe dolo de suicídio, porque figura atípica, e o dolo é a vontade de praticar o fato típico) -, mas do próprio alcance objetivo do tipo penal incriminador, o qual não abrange o risco criado pela agente e nem o resultado produzido.
Com efeito, os tipos penais em questão (artigos 124, 125, 126 e 127 do CP) buscam incriminar o abortamento quando inspirado na conveniência ou interesse pessoal, seja do médico, seja da gestante, seja de qualquer um que para o fato concorra, mas não têm espectro para alcançar a conduta da mãe cuja ação tem como meta o ato desesperado de tirar a própria vida – não é este o fim de proteção da norma.
Por isso mesmo, segundo penso, é caso aqui de se afastar desde logo a própria tipicidade objetiva, fato impeditivo até mesmo da propositura de denúncia, e não de eventual excludente de culpabilidade, que pressupõe a ocorrência do injusto típico e que de regra tem seu reconhecimento somente depois de iniciada a ação processual penal, como aparentemente entendem alguns escritos já lançados nas redes sociais, dos quais discordo cordialmente.
Tudo isso para além dos aspectos de política criminal e de humanismo que devem inspirar o direito penal e impedir a crueldade de se impor a uma mãe, em depressão profunda a ponto de atentar contra a própria vida, que venha ainda responder penalmente pela morte do filho.
[i] Advogado criminalista. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Mestre em Direito pela UNISC. Ex-presidente da ACRIERGS – Associação das Advogadas e Advogados Criminalistas do RGS. Ex-presidente da ANACRIM – RS. Associação Nacional da Advocacia Criminal – RS. Conselheiro seccional da OABRS.