Artigo veiculado na 47ª edição do Jornal Estado de Direito
Édis Milaré1
O Governo Federal acaba por acrescentar ao cipoal legislativo (in)disciplinador do licenciamento ambiental – cerca de 30.000 diplomas, segundo dados da CNI-Confederação Nacional da Indústria2, – mais uma norma, materializada no recém-editado Decreto 8.437, de 22 de abril de 2015, regulamentando dispositivo da Lei Complementar 140/2011, conhecida como “lei do pacto federativo ecológico”.
O novo decreto limita-se, em cumprimento ao art. 7º, XIV, h da referida LC 140/2011, a criar, por recomendação de uma tal Comissão Tripartite Nacional, uma tipologia de empreendimentos e atividades cujo licenciamento ambiental, por critérios de porte, potencial poluidor e natureza, cai sob a competência administrativa da União.
Dita tipologia, elencada no art. 3º, arrola como de competência federal o licenciamento de projetos e obras relativos a rodovias, hidrovias e ferrovias federais, portos e instalações portuárias públicos e privados, exploração e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos, e sistemas de geração e transmissão de energia elétrica, excetuados os de menor porte e as obras viárias de contorno e travessia urbana.
Nas disposições transitórias, o art. 4º, aliás de modo racional, determina que os processos já iniciados terão sua tramitação mantida perante os órgãos originários até o término da vigência da licença de operação, cuja renovação caberá ao ente federativo competente; e o art. 5º reserva ao órgão ambiental federal a licença de operação pertinente a trechos de rodovias e ferrovias federais, ainda que iniciado o processo em órgão ambiental estadual ou municipal.
A Lei Complementar 140/2011, que fixa normas para a cooperação entre os entes federativos nas ações administrativas ambientais de competência comum, manteve a atribuição prioritária dos estados para a condução do licenciamento ambiental, pois apenas em situações específicas nela definidas é que a competência se desloca para a União ou para os municípios.
Mesmo assim, transparece a tendência do legislador de criar um sistema licenciatório elitizado, no qual, de responsabilidade da União seriam os empreendimentos de maior vulto, geradores de expressivas compensações ambientais, enquanto que a cargo dos estados e municípios restariam os de menor relevância econômica.
O vezo centralizador, vindo desde a fundação colonial do país e do período monárquico, manteve-se na república, pois a federação brasileira não nasceu da realidade social e histórica, mas da imitação, pelo legislador constitucional, do modelo americano.
Numa autêntica federação a autonomia local deveria ser plena, conformando-se embora às leis gerais, e cedendo precedência apenas ao interesse nacional.
Todo, ou quase todo, o relacionamento entre sociedade e estado dever-se-ia resolver em nível próximo, no espaço geográfico imediato em que a vida, as relações humanas e a economia acontecem.
Possivelmente foi esta a intenção do constituinte de 1988, ao guindar o município ao estatuto de ente federativo, decantando o estado brasileiro em três níveis, com competências exclusivas, concorrentes e complementares.
O que resultou, contudo, foi uma burocracia em pagode, em que estratos sucessivos de normatização, tributação, fiscalização e licenciamento – cada um deles virtualmente estanque – se sobrepõem à cidadania como um fardo ciclópico.
A desburocratização do processo deveria contemplar a atribuição total do órgão licenciador, cuja competência determinar-se-ia pelo interesse predominante: nacional, regional ou local.
De se perguntar, portanto, se o novel diploma infralegal, ao estabelecer linhas de corte para a atração administrativa dos entes federados – reservando para o órgão licenciador da União o quinhão mais nobre e apetitoso – não estaria a arranhar o pacto federativo instituído pela CF/88 (arts. 1º, caput, e 18).
1 Procurador de Justiça aposentado do Estado de São Paulo, foi o primeiro coordenador das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente e Secretário do Meio Ambiente. É professor de Direito Ambiental, advogado e consultor jurídico ambiental. 2 MUDANÇA no licenciamento. Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. A3, 12 jan. 2015.
2 MUDANÇA no licenciamento. Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. A3, 12 jan. 2015.