Em 28 de junho de 2015, o jornal El País publicou um artigo de Jürgen Habermas, intitulado “O Governo dos Banqueiros” (traduzido pelo Instituto Humanitas/UNISINOS e disponível em: http://migre.me/qzAzV). Nele, o filósofo alemão interpreta a iminente moratória da Grécia como capítulo de uma crise que atinge a União Europeia como organismo político em sentido amplo, e arremata: “são os cidadãos, não os banqueiros, que têm de dizer a última palavra sobre as questões que afetam o destino europeu”.
A preocupação do autor não é nova. Na obra “A Constelação Pós-Nacional: Ensaios Políticos”, ele sustenta que temas como a garantia dos direitos humanos em nível internacional dependem de pactuações políticas capazes de ultrapassar as fronteiras do Estado-Nação. E não apenas sob um ponto de vista formal-procedimental, mas também segundo o imperativo de fortalecer os laços de solidariedade entre os cidadãos.
Uma vez dentro de um bloco amparado pela legitimidade produzida por consensos fortes, tanto eles quanto os próprios países se enxergariam como verdadeiros european memberships, acima de rivalidades históricas e regionais. A própria defesa de uma constituição única para a União Europeia é tributária dessa convicção, que representa a fase internacional do ambicioso programa de pesquisa de Habermas.
No momento em que a assim denominada “tróica” (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) acirra a pressão por um programa de austeridade que terá impacto agudo sobre as contas gregas, os países europeus, com a Alemanha à frente, despolitizam o debate e desconsideram o sinal claro emitido pela sociedade civil, através da eleição – e, portanto, legitimação pelo voto – do partido de esquerda Syriza.
Os interlocutores de Atenas, prossegue Habermas, são tratados como que numa relação de credor e devedor, ou seja, de maneira despolitizada. E, eis a ironia, sob o argumento de que defendem os interesses dos cidadãos que os elegeram, coincidentemente alinhados à linguagem dos organismos financeiros.
Brasília, 01 de julho de 2015. Depois de ser derrotado, no dia anterior, na votação da PEC 171/1993, que altera a redação do art. 228 da Constituição Federal, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) pautou emenda aglutinativa com alterações do texto original e reverteu o placar.
À parte a possibilidade de provocação do Supremo Tribunal Federal, por infringência da regra do art. 60, parágrafo 5o, da Constituição Federal, que veda a reapresentação de matéria rejeitada na mesma sessão legislativa (sem precisar o que significa “matéria rejeitada”), e à míngua de uma radiografia ampla sobre a criminalidade juvenil, a decisão da Câmara teve o respaldo de 87% dos brasileiros. Boa parte dos partidos políticos – e mesmo alguns com uma história de luta pelos direitos humanos – embarcou nessa toada, optando por vocalizar a esquizofrenia das ruas.
O que aproxima Atenas de Brasília?
Nos dois casos, prevaleceu, por parte das instituições uma concepção meramente formal do procedimento democrático, que se encerra numa visão legalista. A rigor, os dois acontecimentos se deram dentro de um ambiente normativo estável. Todavia, as nações europeias abriram mão de uma união política em nome da fragmentação e de uma unidade monetária que não equivale jamais à edificação de um projeto apto a engajar seus cidadãos no aperfeiçoamento das instituições. E a Câmara de Deputados renunciou ao papel pedagógico dos partidos políticos, que não são meras caixas de ressonância desqualificada das expectativas do povo.
A solução para esses quadros passa pelo fortalecimento substancial da democracia como experiência coletiva e como projeto de emancipação política. Não existe democracia sem povo. Extraído esse elemento essencial, resta a indiferença da Europa frente à Grécia. E o soterramento do edifício jurídico-político de nação no Brasil, encarnado na Constituição Federal.
Nada substitui a mobilização e o debate de ideias. A tecnocracia democrática, movimentada pelo território em disputa que esse regime político encarna tão bem, é facilmente capturada pelas tendências conservadoras. Aprendidas as regras do jogo, basta aplicá-las. Na Europa, é difícil encontrar um alemão que enxergue a Grécia como algo além de um estorvo. Essa é a semente do fracasso da União Europeia. No Brasil, avança a pauta retrógrada, que Eduardo Cunha tem protagonizado com maestria notável, depois que os setores progressistas se aburguesaram e recusaram a esfera pública. E que continuará fazendo, com cada vez mais vigor.
Wilson Levy Braga da Silva Neto – Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. Graduate Student Fellow do Lincoln Institute of Land Policy. Professor assistente na PUC-SP e colaborador do programa de pós-graduação em Direito da UNINOVE.