Criminologia e Cinema: Semânticas do Castigo

Coluna Lido para Você

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Criminologia e Cinema. Semânticas do Castigo. MACHADO, Bruno Amaral; ZACKSESKI, Cristina e DUARTE, Evandro Piza (Orgs). São Paulo: Marcial Pons; Brasília: Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Coleção Direito, Transdiciplinaridade & Pesquisas Sociojurídicas, vol. 5, 2018,  504 p.
Livro Criminologia e Cinema. Semânticas do Castigo

Livro Criminologia e Cinema. Semânticas do Castigo

Volto ao tema Direito e Cinema (http://bit.ly/2HnTzVW, in Jornal Estado de Direito, aqui a propósito do livro O Direito no Cinema Brasileiro) e, mais precisamente Criminologia e Cinema, aproveitando a circunstância do lançamento pela Editora Marcial Pons e Fundação Escola Superior do Ministério Público no Distrito Federal,  da coletânea Criminologia e Cinema – Semânticas do Castigo, volume 5 da Coleção Direito, Transdisciplinaridade & Pesquisas Sociojurídicas.

Nas palavras dos organizadores, Bruno Amaral Machado, Cristina Zackseski e Evandro Piza Duarte, “este volume apresenta o exercício empreendido por nós e por pesquisadores(as) parceiros(as), de desafiar os limites da escrita acadêmica pelo diálogo sobre as manifestações artísticas cinematográficas. Cuidaremos, neste volume, da punição, mais especificamente, das semânticas do castigo. Os discursos criminológicos contemporâneos não se ocupam exclusivamente da punição institucionalizada, e sim do sofrimento de todos os dias, dos castigos autoimpostos, de suas peculiaridades, conseqüências e formas de constituir os mundos em que transitamos, sejam eles reais ou ficcionais. Em uma leitura fenomenológica, devemos considerar que a experiência do castigo recomenda ir além do visível e explicitado. Pensar as semânticas do castigo supõe levar em conta extenso repertório de práticas e atitudes construídas a partir do compartilhamento de sentidos atribuídos a rituais, contextos sociais e instituições. Supõe considerar o castigo como categoria plural, com variações locais relevantes, nem sempre de fácil cognição ou descrição. Abrir-se a esse caleidoscópio de imagens e discursos é um convite que fazemos a quem nos acompanha nesta viagem pelos cinemas e pelas criminologias.”.

O livro conta com 28 capítulos, estruturados em três partes: experiências do castigo; o castigo: entre gênero, raça e classe social; e para além do castigo: tradição, distopias, globalização e direitos humanos. Os filmes abordados formam uma cinemateca, útil pra os cinéfilos e de grande vaor pedagógico: Laranja Mecânica, Mississipi em Chamas, Django Livre, A Experiência, Macbeth, White Bear (Black Mirror), Doze Homens e uma Sentença, Billions, Corpo Delito, O Silêncio do Céu (Era El Cielo), Malévola, A Caça, Prenda-me, Noces, A Pele que Habito, Em Nome de Deus, Quanto Vale ou é por Quilo?, Ó Pai, Ó, Bróder,  Branco Sai, Preto Fica, O. J. Simpson: Made in America,  Taxi Driver, A História de Qiu Ju, La Jaula de Oro, Sicário, Território Restrito, Los 400 Golpes, O Vento Será Tua Herança.

São autores e autoras da Coletânea, além dos Organizadores: Alberto Carvalho Amaral, Anna Becker, Antonio Henrique Graciano Suxberger, Bruna Portella de Novaes, Camilla de Magalhães Gomes, Carmen Hein de Campos, Carolina Costa Ferreira, Diego Pessanha Silveira, Edi Alves de Oliveira Neto, Edileuza Penha de Souza, Ela Wieko V. de Castilho, Elisa Martins Silva, Fernanda Lima da Silva, Gabriel Haddad Teixeira, Gilsileide Souza de Oliveira Piauilino, Guadalupe Letícia Garcia Garcia, Jeferson De, Karita Rachel Pedroso Bastos, Lucas Gabriel de Matos Santos, Lucas Villa, Luciana Lombas Belmonte Amaral, Luciana Souza Borges Herkenhoff, Manuela Abath Valença, Marcela Aedo Rivera, Marcelo Berdet, Marcelo Coelho, Marcos Queiroz, Marília Montenegro Pessoa de Mello, Miriam Coutinho de Faria Alves, Moysés Pinto Neto, Paulo Rios Matos Rocha, Pedro Paulo Castalho de Bicalho, Samuel Silva da Fonseca Borges, Silvio Cuneo Nash, Soraia da Rosa Mendes, Tarsila Flores, Thales Cassiano Silva, Victor Martins Pimenta, Welliton Caixeta Maciel.

Um exemplo das contribuições presentes no livro é o texto do Professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). A propósito de sua contribuição diz o Professor Rodrigo de Azevedo, em registro no seu Blog
(http://bit.ly/2tJYR4D):

Tive a satisfação de ser convidado pelos organizadores para contribuir com um artigo, no qual abordo o conflito entre o direito moderno e as formas tradicionais de administração de conflitos, a partir do filme A História de Qiu Ju. Dirigido por Zhang Yimou, maior representante da “quinta geração” do cinema chinês, o filme retrata a tentativa de Qiu Ju obter a retratação do chefe da aldeia por ter agredido seu marido, Qinglai. O percurso de Qiu Ju por instâncias da burocracia policial e judicial chinesa apresenta o processo de racionalização e burocratização do direito promovido pelo Estado chinês pós-revolução, e o distanciamento em relação aos mecanismos tradicionais de administração de conflitos, e permite discutir as categorias propostas por Weber para a compreensão do Estado moderno. Ao final se discutem os dilemas entre a formalização e a informalização da justiça, assim como o contraste entre a aplicação de uma pena e a busca de mecanismos alternativos para a administração de conflitos criminais.

Lançado em 1992, assisti A História de Qiu Ju em 1994, quando foi lançado em VHS no Brasil, e o filme teve uma influência decisiva para minha opção pela sociologia jurídica como campo de pesquisa e pela escolha dos logo depois criados Juizados Especiais Criminais como tema de pesquisa no mestrado em Sociologia. O que de fato está em questão no filme são as limitações das abordagens jurídicas modernas e características do processo de racionalização do direito nas aldeias onde as relações tradicionais subjazem a vida social. Não por acaso, o filme se passa em um contexto de modernização, em que os mecanismos informais de resolução dos conflitos dão lugar às instâncias formais de controle penal, submetendo as partes às formulas procedimentais e às soluções punitivas previstas em lei e aplicadas por toda uma estrutura burocrática criada com este objetivo. Estamos diante, portanto, do conflito entre formas tradicionais de solução de conflitos, e o processo de racionalização do direito, que não afeta apenas as sociedades ocidentais, mas também aquelas como a China pós-revolução e o Japão moderno, que adotaram em meados do Século XX os pilares institucionais da modernidade para estruturar a vida social.

Também tenho participação na obra, a convite dos Organizadores, discorrendo sobre o eixo motivador da Coletânea – a semântica do castigo – a partir de um filme que me foi dado escolher para acentuar essa dimensão que permeia o conjunto que forma o seu Sumário.

Comecei, é claro, por demarcar a relação entre cinema e direito e mais especificamente entre cinema, criminologia e direitos humanos, indicando que ela  não é novidade[1]. Neste texto, em parte inspirando no exercício narrativo proposto pela mesma Coleção Direito, Transdisciplinaridade & Pesquisas Sociojurídicas[2] , aspectos instigantes dessa relação serão postos em relevo, abrangendo nexos e interseccionalidades, em vertentes que valorizam mediações epistemológicas, pedagógicas, psicológicas, político-institucionais, ético-profissionais, técnico-funcionais.

As indicações apenas enunciativas, se completam com listas muito interessantes e sofisticadas, alcançando amplos recortes orientadores, a exemplo do rol sugerido por CAPELLA [3], sempre no sentido de suprir insuficiências epistemológicas, científicas em sentido estrito, buscando, como se verá adiante, outros modos de conhecer e de designar o jurídico, oferecendo “outra possibilidade, a de pensar a violência (e eu diria, o Direito) como uma narrativa, ao invés de inscrevê-la apenas num regime objetivo de verdade da ciência”[4].

Um filme entre tantos, combina todos esses elementos. Interpela o conhecimento, politiza o agir pedagógico e a função da escola, sobretudo se pensarmos hoje como então, nos paroxismos fundamentalistas e nas disputas sobre a apropriação ideológica da educação, atualizando as teses do conhecimento acrítico e despolitizado (Escola sem Partido, Educação sem Ideologia de Gênero ou de Raça etc), exibe a técnica e as habilidades ético-funcionais da advocacia, da magistratura e do ministério público, teatraliza a arquitetura do desempenho judicial, expõe as relações entre direito e política, sociedade e institucionalidade, ciência e religião e instaura uma semântica com a qual pena e castigo circunscrevem e afetam o agir político e a autonomia critica do pensamento.

Foto: Wikimedia Commons

Foto: Wikimedia Commons

Refiro-me ao filme de 1960 (USA), com o titulo Inherit the wind (O vento será tua herança), magistralmente dirigido por Stanley Kramer, com o roteiro de Harold Jacob Smith e Nedrick Young, segundo a peça teatral de Jerome Lawrence e Robert E. Lee.

Com o desempenho notável de atores extraordinários:  Spencer Tracy (Henry Drummond, advogado da defesa), Fredric March (Matthew Harrison Brady, advogado da acusação), Gene Kelly, o ator de Dançando na Chuva e de outros musicais, surpreendente em papel dramático (E. K. Hornbeck, o jornalista), Dick York (Bertram Cates, o professor), Claude Akins (o pastor),  além de Florence Eldridge, Donna Anderson, Harry Morgan e Elliot Reid.

Há uma versão mais recente (1999), com boa direção e bom roteiro, além de excelentes atores, mas a meu ver sem a força interpelante da versão original em preto e branco, que realça a fonte remota do argumento, claramente retirado da Bíblia (Provérbios, 11, 29: “quem perturba sua casa receberá o vento como herança”.

Foto: Wikimedia Commons

Foto: Wikimedia Commons

O argumento remete ao caso ocorrido em 1925, no estado americano do Tennessee, quando o professor John Thomas Scopes foi julgado criminalmente por ensinar a teoria da evolução de Darwin numa escola pública. ”O Julgamento do Macaco” (Monkey Trial), como ficou conhecido, teve repercussão mundial pela batalha travada pelos advogados de acusação e defesa. Durante o julgamento, que durou onze dias e foi o primeiro a ser transmitido por rádio, a defesa foi impedida pelo juiz de apresentar cientistas como testemunhas em favor da teoria da evolução.

Não se trata apenas de educar na liberdade e na tolerância, como prescreve o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo o qual toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e religião, expondo a toda evidência o direito de cátedra atualmente sob forte ataque obscurantista. O filme põe em causa uma tensão, que parecia ultrapassada e relegada à pré-história do avanço do conhecimento.  A tensão entre  Evolucionismo (Darwin) e Criacionismo (Princípio Adâmico da criação conforme o Livro Bíblico do Gênesis). Assistimos hoje, no Brasil e em várias partes do mundo o retorno dessa tensão, mobilizando além de posições teológicas, o engajamento de prosélitos, instalados na institucionalidade que se acreditava tivesse alcançado o patamar da laicidade.

O professor de Biologia foi preso porque estava ensinando “darwinismo e evolucionismo” aos alunos, infringindo uma lei local que dizia que os funcionários públicos não poderiam questionar o “criacionismo” ou trabalhar com os preceitos darwinistas. Ele é preso e o seu caso ganha dimensão nacional, principalmente pela escolha dos advogados da defesa e da acusação, polêmicos e famosos.

O filme realça uma dramaturgia que exacerba os posicionamentos, densos e teatrais, não só dos personagens com papel discursivo na trama, mas em todo o entorno do tribunal, da comunidade e do país. Aí a arte rende tributo à performance – qualidade dos atores – mas desnuda o drama que não fica reduzido ao recinto do tribunal, opondo cientistas e exegetas bíblicos. O veredito, unânime, pela condenação do professor, salvaguarda a tradição inscrita na cultura da comunidade de Hillsboro, mas já não camufla o mal-estar que essa cultura, tradicionalista e obscurantista carrega, fechada aos apelos de novos modos de pensar o mundo.

A leitura de todas as contribuições que o livro Criminologia e Direito. A Semântica do Castigo proporciona e que, nas palavras de seus Organizadores, a que se possa pensar as semânticas do castigo levando em conta o extenso repertório de práticas e atitudes construídas a partir  do compartilhamento de sentidos atribuídos a rituais, contextos sociais e instituições para alem do visível e do explicitado.

Por isso que,  embora se reconheça com Von Ihering que “a história da pena é a história de sua constante abolição”[5], os filmes que formam o repertório do livro, captando dimensões complexas de interditos e sanções sociais, traduzem com vivacidade a semântica do castigo que se insere nas entrelinhas discursivas de sua função jurídico-política, desvendando o que ao fim e ao cabo, realiza, lembra Evandro Lins e Silva, uma espécie de “aterrorizante cerimônia punitiva, não porque “restabelece justiça”, mas porque “reativa o poder”. [6]

 

Referências:

[1] Tratei dessa relação em texto elaborado em co-autoria com Nair Heloisa Bicalho de Sousa, conforme SOUSA JUNIOR, J. G. de; SOUSA, N. H. B. de. Cinema e direitos humanos. In: PULINO, L. H. C. Z.; et ali.  Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos, volume IV. Brasília: Paralelo 15. No prelo, 2018; também no Prefácio a GRÜNE, Carmela (Org). Direito no Cinema Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2017 (cf. Acima http://bit.ly/2HnTzVW).

[2] Por todos cito MACHADO, Bruno Amaral, ZACKSESKI, Cristina e DUARTE, Evandro Piza (coordenadores). Criminologia e Cinema. Narrativas sobre a violência. São Paulo: Marcial Pons e Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, 2016.

[3] CAPELLA, Juan Ramon. El Aprendizaje Del Aprendizaje. Fruta Prohibida. Una introducción al estúdio Del Derecho. Madrid: Editorial Trotta, 1995, págs. 110-111. Alem de filmes Capella oferece igualmente , uma excelente discografia, útil aos estudiosos do Direito, págs. 111-114.

[4] MACHADO, Bruno Amaral, ZACKSESKI, Cristina e DUARTE, Evandro Piza (coordenadores), op. Cit. pág. 22.

[5] Apud SILVA, Evandro Lins e. De Beccaria a Filippo Gramática (Uma visão global da história da pena). Edição do Autor, 1991, pág. 1.

 [6] SILVA, Evandro Lins e. Op. Cit. pág. 1.

 

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

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