A regulação da mídia é uma ameaça à democracia brasileira?
O debate confrontando a zona de conforto
Há quem diga que a sala de aula pode ser um ambiente transformador. Andei relutante. Por vezes, me deparei com os velhos e confortáveis discursos simplistas acerca de temas complexos. Em outras, me deparei com a conveniência do silêncio, que não nos submete ao desconforto da desconstrução. Nos últimos dias, felizmente, fui obrigada a repensar certos temas e percebi que, na academia e na vida, a zona de conforto é tudo o que se precisa para ficar estagnado.
Semana passada, durante a noite de terça-feira na Faculdade de Direito da UFRGS, tomei conhecimento da existência de uma entidade que fomenta o debate sobre um tema que, como tantos outros, tem sido negligenciado e pouco debatido na sociedade civil. O Intervozes, Coletivo Brasil de Comunicação Social, é uma organização que trabalha pela efetivação do direito à comunicação no Brasil, promovendo debates, aulas públicas e produzindo materiais a respeito da democratização da mídia no país.
Desde cedo, atribuía à expressão “regulação da mídia” a ideia de censura, estruturando mentalmente todo um esquema político ditatorial, e, logo em seguida, posicionando-me de forma desconfiada em relação àquele que propôs tamanho golpe. Em certa medida, nossos mecanismos de defesa contra os regimes autoritários devem, de fato, permanecer. Só assim construiremos uma democracia estável, duradoura, diferente dos períodos experimentados nos nossos 193 anos de independência.
O estudo do Intervozes
Se estamos voltados à manutenção do regime democrático, no entanto, é indispensável que pensemos melhor a respeito de certos temas. Será que a regulação da mídia sempre leva à censura? Será que existe legislação reguladora no Brasil? E nas outras democracias, como isso funciona? Todas essas perguntas são analisadas em um excelente estudo realizado pelo Coletivo Intervozes, “Caminhos para a Luta pelo Direito à Comunicação no Brasil – como combater as ilegalidades no rádio e TV”. Já na terceira página de leitura, percebo que esse é mais um daqueles temas complexos com respostas simplistas, e até mesmo mais um daqueles temas sobre os quais ninguém quer falar.
O limite de caracteres é, basicamente, o que garante que essa discussão, pelo menos aqui, precisa de um recorte. Dentre todos os que poderiam ser feitos, opto por focar mais na legislação que já existe e não sabemos – e não sabemos porque em grande medida não é cumprida.
Pois bem. A legislação geral de regulação da mídia concentra-se em três leis diferentes: o Capítulo V da Constituição Federal de 1988, o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto nº 52.795/1963) e o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/1962).
O artigo 221
Em primeiro lugar, há que se atentar para o disposto pelo artigo 221 da Constituição Federal, que elenca uma gama de princípios a serem perseguidos pela pelas emissoras de rádio e televisão em suas programações. Deve ser dada preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; deve ser promovida a cultura nacional e regional, com estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; deve ser promovida a regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei e, por fim, devem ser respeitados os valores éticos e sociais da pessoa e da família. Esses princípios norteadores exigiriam, é claro, esforço do legislador infraconstitucional no sentido de detalhar a regulação desses serviços.
O artigo 220
Outro importante tema que toca à regulação da radiodifusão é a proibição de monopólios e oligopólios, ponto crucial para a pergunta que pretendo responder nesta breve exposição. Os monopólios e oligopólios são vedados pelo artigo 220 da Constituição Federal, justamente para impedir que o pluralismo de informações seja totalmente erradicado dos meios de comunicação brasileiros. A leitura de tal dispositivo constitucional deve ser feita em conjugação com a leitura do artigo 222 do mesmo diploma, uma vez que “todos os brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos podem ter empresa jornalística e de radiodifusão”.
As divergências aos artigos no Brasil
O cenário brasileiro, no entanto, diverge de forma drástica em relação ao conteúdo de tais dispositivos constitucionais. Em primeiro lugar, é possível perceber a grande defasagem dos programas educativos, artísticos, culturais e informativos. A promoção da cultura nacional e regional também é pouco explorada, ainda mais considerando as muitas culturas de um país com as dimensões do Brasil. Esse problema, contudo, não é alheio à violação também dos outros dois dispositivos: os meios de comunicação brasileiros pertencem a poucos, e esses poucos escolhem de que forma e com base em que informações será formada a opinião da população.
Todo esse cenário é agravado pelo fato de que cabe ao Congresso votar pela não renovação da concessão do serviço de radiodifusão a cada 15 anos. A pergunta é: nossos representantes podem enfrentar o desconforto dessa discussão? Parece que não só nas salas de aula, mas também no Congresso, esse é o tema sobre o qual não se quer falar.
Pergunto-me, portanto, se já não há grandes incentivos à regulação razoável dos meios de comunicação no Brasil. Ademais, pergunto-me se sempre e em qualquer medida essa regulação representa uma ameaça à democracia brasileira, revivendo o fantasma dos regimes de exceção que há pouco deixaram de assombrar o Brasil e a América Latina.
A proposta dessa reflexão não é que relaxemos quanto à ameaça do autoritarismo e da censura. Muito pelo contrário, a proposta dessa reflexão é que possamos debater sem preconceitos de que forma tornar a democracia brasileira mais sólida e estável, começando pela própria informação que consumimos todos os dias, pela informação que repassamos às crianças, jovens, adultos, idosos.
Aprendi, naquela terça-feira à noite, em sala de aula, que a evolução do país depende também de falarmos de nossas pedras no sapato. O núcleo duro de toda discussão, inviolável, indivisível, é claro, é a manutenção da democracia no país.