Constituição, Pandemia e Legalidade

Coluna Reflexões sobre Direito Público e Democracia, por Felipe Bizinoto Soares, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

     Este artigo tem como provocação inicial uma dúvida suscitada por rede cinematográfica acerca do teor de certo decreto municipal editado e publicado no início do momento de pandemia pelo qual o Brasil e o mundo passam em relação ao Coronavírus COVID-19. Mais especificamente, trata-se de adequação de uma consultoria para a forma de artigo relativa à pergunta que segue: pode o Município instituir medidas sancionatórias aos comércios locais mediante decreto?

     Tendo em vista que a noção de que as conclusões ali extraídas foram baseadas em certo arcabouço, cabe destacar que ao tempo que prestado o serviço advocatício à cinematográfica não havia amparo legislativo em nenhum dos níveis da Federação brasileira tratando sobre a necessidade de isolamento e de autorização ao Executivo para seguir no implemento das medidas necessárias para evitar a proliferação virológica.

     Metodologicamente, o enfrentamento passou pela análise das circunstâncias fáticas e aplicação dos cientistas do Direito, bem como de julgados proferidos pelo Judiciário brasileiro sobre a temática.

     O ponto inicial do pensamento se baseia na chamada teoria dos jogos, nascida no âmbito da matemática, mas que muito se aplica ao fenômeno jurídico. Veja-se, p. ex., as obras de Alexandre de Morais da Rosa, que aplica a teoria em comento ao processo penal.

     O ponto fundamental a ser suscitado em relação ao arcabouço intelectivo em questão está no fato de que os jogos têm um conteúdo específico e são acompanhados de um conjunto de regras inquebrantáveis e sem as quais não haveria como os players jogarem (REBOUÇAS, 2017, p. 103 e ss.).

     As regras do jogo devem ser observadas e as situações de anormalidade que abalam o desenvolver do game devem manter uma essência, um núcleo de regras fundamentais que não podem ser abaladas, pois a violação desse core significa, também, contrariar o próprio jogo.

     Quando esse novo chega ao mundo jurídico – p. ex., uma pandemia de 2019-2020 para uma ordem constitucional que tem diplomas feitos durante certa ‘’normalidade’’ social – o papel do intérprete se destaca, pois a ele cabe construir a resposta que o sistema do Direito dará às reivindicações sociais oriundas do momento. Inevitavelmente, as regras do jogo são postas em (re)discussão.

     São três dados, então, que surgem para enfrentamento: um momento de abalo social, o manual de regras fundamentais para o convívio em sociedade e o papel do intérprete como ponte entre as abstrações típicas do Direito e os casos concretos. Aplicando-se tais premissas ao COVID-19, muitas situações de anormalidade que afetam o plano fático são levadas para os operadores jurídicos solucionarem, sendo que a anormalidade cria uma situação muitas vezes não prevista pela ordem jurídica.

     Considerando os pontos acima, ao intérprete atual cabe, portanto, solucionar as questões sociais que lhe são levadas mediante reconhecimento da excepcionalidade que permeia o mundo, mas a ele cabendo conservar o núcleo jurídico fundamental, muitas vezes constante em Constituições.

     Como exemplo da necessidade de conservar o núcleo jurídico e o poder-dever que o aplicador do Direito tem, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018) expõem que nem toda afronta à democracia decorre de atos autoritários, mas do mal uso dos instrumentos jurídicos vigentes, isto é, o panorama das derrocadas democráticas contemporâneas mostram uma tendência na qual os atos de derrubada das grades de proteção advêm de atos jurídicos, não atos antijurídicos, atos com o envernizamento do Direito, mas cujo conteúdo afronta não um texto escrito, mas ao próprio espírito do sistema.

     Esse receio no exemplo surge não apenas na temática democrática, mas em outras muitas searas jurídico-políticas, p. ex., no Direito constitucional como um todo, uma matéria que deixa evidente as fronteiras entre politização e juridicização.

     Agora seguindo o rigor científico quanto à terminologia, as normas (não apenas as regras) fundamentais do Direito têm como um dos seus pilares, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2016, p. 130-136), a legalidade, que determina que a Lei é ato jurídico emanado de autoridades públicas e disciplina certos fatos sociais ao criar, modificar ou extinguir posições jurídicas subjetivas.

     A acepção acima encontra convergência nas lições de Fritz Schulz (2020, p. 4) e Thomas Marky (2019, p. 42), para os quais Lei é compreendida em sentido amplo e compreende os estatutos jurídicos emanados do Estado e que tratam da vida em sociedade. A partir dessa compreensão é que se pode ver que o papel legiferante sempre teve seu espaço, desde os romanos até os contemporâneos.

     Ademais, o contraste temporal feito de uma categoria jurídica mostra, também, que ela sofreu diversas ingerências no seu espaço de atuação, eis que ora foi por um momento social clínico, ora pela vontade de certo sujeito que se confundia com a soberania (o monarca).

     Retomando o caso que suscitou este artigo, constatou-se que (i) o decreto municipal, praticamente, disciplinava o regime jurídico extraordinário causado pela COVID-19 e estabelecia sanções administrativas que iam desde a advertência até a interdição do espaço; (ii) não havia amparo legislativo até então para a adoção das referidas medidas; e (iii) a dúvida era se a evidente nobreza intencional do Executivo local estava conforme a noção de legalidade desenvolvida.

     Sob a óptica da Constituição do Brasil, três enunciados merecem destaque: ‘’ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal’’ (art. 5º, LIV), ‘’A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência’’ (art. 37, caput) e ‘’São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário’’ (art. 3º).

     O primeiro fragmento constitucional trata do devido processo jurídico, usualmente tratado como princípio regedor das relações processuais (judiciais e administrativas). Como escrito em outro momento (PÁDUA, 2020), tal norma recai sobre todas as funções estatais, as quais incumbem também editar atos normativos em conformidade formal e material com a Constituição.

     Analisando o caso apresentado diante do devido processo jurídico é que se chega à conclusão de que os atos legislativos, em um país que adere à família romano-germânica, tem de servir como fundação para privação de bens tutelados pelo Direito. A partir dessa perspectiva é que se chega ao art. 37 da CRFB, à legalidade administrativa, que é um desdobramento da legalidade geral e consiste no direcionamento da atividade do Administrador Público pelos atos legislativos (FERREIRA FILHO, 2016).

     Como o Estado-Administrador atua dentro daquilo que autorizado pela Lei, o Pacto Federativo brasileiro previu expressamente que ao Executivo incumbe o papel regulamentar, ou seja, ‘’sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução’’ (art. 84, IV).

     Na seara judicial, o Superior Tribunal de Justiça (REsp n. 324.181) foi expresso ao analisar caso no qual se arguiu a ilegalidade de um decreto, sendo respondido pela Corte que apenas lei pode estabelecer comportamentos que ensejam em sanções de cunho administrativo, só que é admissível que essa tipificação seja feita por ato infralegal (um decreto, p. ex.) se a lei autorizar.

     Em julgado do Supremo Tribunal Federal (RE n. 919.032) houve enfrentamento de ato normativo no qual constavam diversas condutas tipificadas como ensejadoras de sanção administrativa. No teor da decisão de mérito constou de forma expressa que a orientação da Corte Constitucional é no sentido de que apenas atos legislativos que inovam a ordem jurídica brasileira (as Leis) podem ou estatuir condutas antijurídicas sancionáveis ou outorgar ao Executivo que siga na tipificação.

     A superioridade legal sobre a infralegal é de tamanha importância na questão das sanções administrativas que o STF (MS n. 28.0833) anulou decisão administrativa sancionatória ao vislumbrar violação à legalidade administrativa em caso no qual o regulamento editado por órgão administrativo conflitou com seu fundamento legal.

     O segundo ponto de fundamentação diz respeito ao art. 3º da CRFB, que estabelece a separação de ‘’Poderes’’, mais bem concebida como tripartição funcional do Poder. Tal previsão, na verdade, serve de fundamento de reafirmação das razões acima, eis que remete à ideia cerne de que uma coisa é a função administrativa, que se volta à conformação de um ato estatal prévio, a lei, outra coisa é a função legislativa, que se volta à conformação das normas constitucionais.

     Conforme ensina Elival da Silva Ramos (2015, p. 123 e ss.), administrar e legislar são funções que têm em comum a conformação de ditames jurídicos (a primeira ordinariamente os ditames legais, enquanto a segunda os constitucionais), todavia a liberdade de atuação de uma para outra varia: o Legislador tem como limites as linhas da Constituição, enquanto o Administrador está limitado pelos atos legais e pela Lei Fundamental.

     Tendo em vista que ao Estado-Legislador cabe determinar as linhas mestras que servirão de base para que o Estado-Administrador possa atuar no plano fático, evidente que cada função estatal tem uma região específica e que é intangível pelas demais extensões do Estado.

     Considerando que (i) apenas atos do Legislador podem criar ou autorizar a criação de condutas administrativamente sancionáveis; e (ii) ao Executivo cabe ordinariamente regulamentar os atos legais, enquanto ao Legislativo incumbe conformar o conteúdo constitucional, concluiu-se que o decreto municipal suscitado na consulta que ensejou este artigo fere a norma-princípio da legalidade, da legalidade administrativa e, também, da tripartição funcional, eis que o nobre intento da Prefeitura se valeu de meios inadequados para enfrentar a situação pandêmica pela qual passava – e ainda passa – o Brasil.

     Em momento de instabilidade que fatores externos ao Direito a este causam levam a um movimento de fragilização estrutural que ou é superado mediante reafirmação do núcleo essencial das normas fundamentais ao funcionamento jurídico-político (evidentemente flexibilizados pelo contexto) ou é ruído totalmente, com a instituição de um novo Poder político, uma nova ordem jurídica, um novo Estado. Deve-se ter em vista não o Estado de exceção constitucional, e sim um Estado Constitucional no qual a legalidade é extraordinária, um Estado de Legalidade Extraordinária no qual o manual constitucional é conservado, mas algumas de suas premissas são maleabilizadas em razão do contexto fático pelo qual a sociedade passa.

 

Referências:

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MARKY, Thomas. Curso elementar de Direito romano. 9. ed. São Paulo: YK, 2019.

PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Teoria da lei complementar em sentido formal. Revista Âmbito Jurídico. São Paulo, n. 198, Ano XXIII, jul. 2020.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

REBOUÇAS, Rodrigo Fernandes. Autonomia privada e a análise econômica do contrato. São Paulo: Almedina, 2017.

SCHULZ, Fritz. Princípios do Direito romano: aulas de Fritz Schulz. Trad. Josué Modesto Passos. São João da Boa Vista: Filomática Sorocabana, 2020.

 

* Felipe Bizinoto Soares de Pádua é Articulista do Jornal Estado de Direito, Advogado, Pós-graduado em Direito Constitucional Material e Processual, Direito Registral e Notarial, Direito Ambiental Material e Processual pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É monitor voluntário nas disciplinas Direito Constitucional I e Prática Constitucional na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Justiça Constitucional: STF, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 

 

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