Jorge Barcellos – Doutor em Educação, Chefe da Ação Educativa da Câmara Municipal de Porto Alegre
O dia 18 de maio é o Dia Internacional dos Museus. Durante toda esta semana, museus de todo o pais fazem suas exposições e produzem debates sobre memória.Entre os inúmeros temas que a semana discute, um é de especial interesse para os operadores de direito: o direito à memória. Objeto da construção de políticas públicas, o tema do direito à memória envolve diversas controvérsias. O Estado deve recompensar herdeiros de vítimas da ditadura e punir seus algozes? É correto dar, e após retirar, benefícios de herdeiros de vítimas da repressão politica? Cabe ao Estado renomear, em nome do respeito as vitimas, a nomeclatura de logradouros públicos? Tudo isto relaciona-se com o campo do direito à memória e envolvem questões políticas, de direito e justiça social que estão no final da discussão da preservação da memória. Para compreendermos este campo, primeiro devemos compreender um pouco o modo como os museus preservam a memória. Se formos buscar as características destas instituções, museus são espaços aonde a memória é preservada sob as mais diversas formas envolvendo exposições, ações educativas, acervos, etc. Christian Goldsmith apontou a importância das exposições nos museus, em especial, o fato de que muitos de nossos museus estão recebendo acervos mundiais. Confesso que sou conservador em termos de museologia. Desde que Andréas Huyssein apontou para o fato de que os museus estão cada vez mais se tornando parte da indústria cultural, museólogos e historiadores se defrontam com o problema de como construir suas exposições e para que fins com conteúdo sem ceder aos ditames da aparência. A memória é vitima das caracteristicas da era das massas sob vários aspectos: nos museus, fotografias originais do passado dão lugar a plloters adesivados imensos, objetos originais cedem espaço à réplicas, ações educativas cedem espaço as ações espetáculo. Por todo o lado vemos a substituição de modelos tradicionais de produção museólogica por modelos ditos “modernos”. Na adoção de novos recursos, entretanto, podemos perder o fundamental: a exposição deve estimular à reflexão, a tecnologia deve servir à educação, a memória deve ser preservada mas não deve ser objeto de espetáculo. Ora, o que muitas vezes se vê, no entanto, é a adoção de recursos que visam a fascinação do público e a estimulação de seus sentidos em detrimento da relação com o saber. Isso modifica o campo do direito a memória. Vai-se aos museus para gozar e não para aprender. Para o pequeno museu, isto é um drama. Como competir com exposições do porte de “Titanic”? Como competir com exposições internacionais? Atrair público para os museus entrou em sua fase concorrêncial: ganha quem fizer as exposições que impressionem mais os sentidos. Entramos na era do mega-evento, era do museu-espetáculo. E no campo do direito a memória isso se repete: os debates sobre nomes de logradouros ganham espaço na midia e não o conteudo do debate, os projetos envolvendo locais vitimas da ditadura substituem o debate sobre o direito a memória. Confesso meu mal estar com tudo isso. Pode-se fazer boas exposições com poucos recursos, focando no objeto e na didática, saída adotada pelos pequenos museus do interior, por exemplo. As exposições estão ficando cada vez mais perenes: como são mega-exposições, levam meses para serem construídas para depois desaparecer como por completo nos depósitos dos museus. No Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre, desenvolvemos o projeto Exposições Itinerantes, que hoje conta com 41 exposições que vão para escolas e instituições, preservando a pesquisa e multiplicando seu alcance junto ao público. (http://www2.camarapoa.rs.gov.br/default.php?reg=1508&p_secao=117). E pode-se também promover o debate sobre o direito a memória em ações que não sejam voltadas para a grande mídia. O problema é que o espaço museal está absorvendo rápido demais a idéia de que sua função é incrementar o turismo e servir ao espetáculo de massas.E os temas da defesa da memória perdem com isso. Transformado em lugares de comércio, o museu está se distanciando de sua função primordial: a educação.E o tema do direito à memória está sucumbindo a ações que visam espaços na mídia na mão dos politicos. Nesta data, os museológos devem decidir a quem servem: se a um sistema que valoriza a performance, ficarão com a mega-exposição e todo o conjunto de signos que ela envolve. Mas se preferirem um sistema que valoriza a cidadania, voltar-se-ão para o trabalho educativo dos museus. E os defensores do direito à memoria deverão considerar que, para fazerem um questionamento de fundo, deverão distanciar-se dos modismos que a própria museologia constrói.Pois não há nada de pior nesta data de que ver as instituições que deveriam preservar a memória serem as primeiras a efetuar seu esquecimento. Gosto de usar o cinema como forma de visualizar as situações que vivemos. Tomemos o cinema como comparação. No filme Matrix, os humanos são baterias onde o cérebro é ligado a um mundo onírico mas cujos corpos ficam em cápsulas que alimentam máquinas que os controlam. Esta é a imagem tem tudo a ver com o modo como funcionam hoje os museus. Na nossa Matrix museológica, os museus são as baterias que vivem a alimentar uma máquina que chamamos Estado. Nesse universo fantasmático, os museus servem para o Estado dizer que tem políticas e preserva a memória quando não o faz. Basta ver o que acontece a nível federal: a política de museus estabelece a concorrência pura e simples pelos escassos recursos através de Editais, quer dizer, submete-os a mesma matriz corporativa na qual Thomas A. Anderson trabalha, metáfora do controle diabólico da IA, aqui, do Estado; a nível estadual, cada museu é uma Nabucodonossor que busca sobreviver no universo que no filme é um universo hostil habitado por sentinelas, as “lulinhas” do filme, e que aqui corresponde a falta de pessoal, de recursos financeiros e equipamentos. No filme os personagens sempre buscam a “saída viável”, expressão dada ao modo de como sair da Matrix; aqui é a busca feita por nossos museólogos pela “saída viável” para escapar da situação de abandono pelo Estado. Basta um olhar ao redor: nossos melhores acervos de jornais convivem com teias de aranha, nossos melhores quadros aguardam restauração e nossas melhores esculturas públicas encontram-se abandonadas em depósitos. Que dia de museus é este para comemorar? Como defender o direito à memória neste contexto? É que, como no filme, o mundo dos museus é um mundo de sofrimento: assim como é inconcebível um mundo justo se os humanos padecem, como os museus podem comemorar sua data se passam o dia a sofrer? Como podemos chegar a questão de fundo, o direito à memória, sem condições para isso? Continuado o exemplo cinematografico, nossos museus precisam de um oráculo. Ele diria algo do assim: “- Vocês estão demasiado preocupados com o passado. Voltem-se para o futuro.” Com isto ele iria querer questionar os processos de galopantes de digitalização dos acervos das instituições públicas. Ao invés de provocar o direito à memória, eles podem estar agindo na contra mão disto. Acervos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário hoje estão cada vez mais digitalizados. Isso não é sem problemas. Que os museus coloquem para si as verdadeiras questões da memória, significa, colocar a questão do direito à memória em primeiro lugar. Que acervos estamos legando para o futuro? Que memória politica estamos preservando de nossas épocas recentes? Como fazer justiça no campo da memória politica com os acervos que estamos construindo? – eis novas questões para os operadores de direito. Em sí, o campo da memória é propriedade de historiadores e museológos, mas cabe aos operadores de direito darem sua contribuição. Afinal, o campo envolve questões documentais e de direito a memória que ultrapassam o campo dos museólogos: como e quem garante a sobrevida de acervos, fotografias e de processos que deixam o suporte papel para o suporte digital, e portanto, passam a ser gravados em DVDs que cedem ao menor risco, ou preservados nos HD dos computadores que cedem ao menor vírus? Que modernização dos museus é essa que cede ao acidente (Paul Virilio)? É esta a política de preservação de acervos públicos para museus que queremos? Todos os historiadores e museólogos se fazem estas questões e por isso os operadores de direito são chamados a colocar o tema em seu lugar. É que nosso hipotético oráculo, comendo um biscoito, diria: “- È que vocês, museólogos, no seu dia, sequer estão discutindo suas práticas de museu.E elas nos interessam.” È só olhar os exemplos. Nenhum museólogo manifestou-se quando no ano passado, veio a público a notícia do desaparecimento dos registros fotográficos digitais do governo Yeda Crusius. As imagens, armazenadas em um DVD, não chegaram ao Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, que mantém os registros dos últimos quarenta anos. É a primeira vez que isso acontecia. É uma parte da história do estado sob risco. É o campo do direito à memória, a memória das politicas públicas no RS que estava em questão. Na mesma época em que esta noticia vinha a público, justamente, o tema da preservação dos arquivos digitais era objeto do Seminário Gestão de Acervos Digitais, promovido pelo Palacinho/Fototeca do Rio Grande do Sul. A atividade integrou a 12ª Semana Nacional dos Museus em maio daquele ano, reunindo sete instituições do estado e mais de 100 participantes. O resumo das contribuições pode ser encontrado em http://goo.gl/ArN4VK. O caso do acervo do governo Yeda Crusius, no entanto, é apenas a ponta de um iceberg. Desde que foi implementada a internet e os governos passaram a dispor de portais web, nunca foi tão fácil apagar a memória política e com isso, reduzir o direito `a memoria. Para isso, basta deletar .Tudo ao alcance de um clic. Como as coisas acontecem? O eleito assume e a primeira coisa que as novas equipes de trabalho fazem é reformar o site do governo, o que significa disponibilizar sua informação ao mesmo tempo que deleta as do antecessor. É a lógica da visibilidade: o que não é visto não é lembrado. Perdem-se nesse processo centenas de informações inestimáveis de uso, inclusive, de operadores de direito. È um crime o que se faz em termos documentais, prejuizo para as políticas de transparência: discursos políticos, relatórios de gestão, imagens, tudo enfim sucumbe a fúria devastadora dos primeiros dias de governo. Esta sombra volta a pairar sobre a memória sempre quando estamos às vésperas de uma nova eleição. Dilema do direito à memória em época de eleição: o vencedor apaga a memória de seu antecessor. É só olhar como o governo Sartori apagou os vestigios na rede do período Tarso Genro; ou como estão preservados os registros de Dilma, que reelegeu-se, na internet. Se tivesse ganhado Aécio, alguém duvida de que teriam sido apagados? Ora, o direito a memória impõe que tais registros sobrevivam a luta politica. A memória não pode ser apagada por que um partido perdeu o poder. Isso é o direito à memoria e precisa mudar! A informação digital não pode ficar a cargo dos interesses do governante de plantão. Os operadores de direito devem colaborar na construção de uma política de preservação da informação digital no qual o governante que chega é responsável pelos registros do governante que sai. Devemos temer que os governos substituam o papel e digitalizem tudo mas também devemos temer que não consigam digitalizar. A informatização trouxe consequências para a memória: a tecnologia retirou dos governos a responsabilidade com a memória digital, com o direito `a memória. Essas práticas são exatamente isso, o direito à memória, o direito de preservar as novas gerações uma visão justa de seu passado. O que os museólogos esquecem é que a questão da memória está intrinsecamente ligada a questão da justiça, eis a questão. É verdade: a maioria dos museus continua a se preocupar com o espetáculo da memória, e não com o direito à memoria. Que são os banners gigantes de fachada e telas de TV que emergem em nossos museus? Nunca foram garantia de boa exposição, quiçá de bons suportes para discutir o direito à memória. Neste mundo pós-moderno, cobram cada vez mais de nossos museólogos a garantia de experiências sensíveis cada vez maiores e de macro-exposições que levam, paradoxalmente, a uma perda da memória no interior do próprio museu. Cabe aos operadores de direito reivindicar o campo do direito à memória entre suas práticas, reivindicar que na estética de museu a forma nao seja mais importante que o conteúdo. Os advogados também devem ir aos museus, devem discutir no dia dos museus se os museólogos querem ou não atender somente ao desejo dos novos tempos de hegemonia da imagem, do entretenimento instantâneo, do culto politico, da valorização do mercado e do exibicionismo de macro-exposição típicos da indústria cultural capitalista ou se querem aprofundar o campo do direito à memória. E devem estar atentos como o Estado, nos periodos de troca de governo, lida com a informaçaõ acumulada. Museu não é lugar para vender souvenir, é espaço de memória, educação e questionamento do seu direito, porque ele tem algo a dar que não pode ser oferecido por nenhum outro meio.E a memória dos sites de governo deve ser preservada para além dos part idos. É isso que os museólogos precisam discutir nesta data. E os operadores do direito são um bom ator para fazer este alerta.