Validade constitucional
Muito já se escreveu acerca da possibilidade da condução coercitiva no Processo Penal brasileiro, razão pela qual temos muito pouco a acrescentar àqueles que defenderam a sua ilegalidade, ressalvando as hipóteses dos arts. 201, parágrafo primeiro (em relação às vítimas recalcitrantes nos crimes de ação penal pública), 218 e 278 (relativamente às testemunhas faltosas e aos peritos), todos do Código de Processo Penal.
Além destas três hipóteses, restaria o art. 260 a autorizar a condução coercitiva do acusado (não do investigado ou do indiciado, atenção!). Em relação a este dispositivo, é óbvio que a sua validade constitucional é questionável, pois em um País em que constitucionalmente assegura-se o direito ao silêncio e no qual o ordenamento jurídico abarcou as disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, firmado em Nova York, parece-nos absolutamente inconstitucional e violador das cláusulas convencionais admitir a condução coercitiva do investigado ou mesmo do réu.
Direito ao silêncio
Aqui, pouco importa, para nós, ter havido notificação prévia ou não, desatendimento ou não, tratar-se de João ou Maria. A questão é outra: proíbe-se no Brasil a autoincriminação. Ponto. Isso basta. Se deixo de comparecer a um ato investigatório (interrogatório, acareação, reconhecimento de pessoa, reprodução simulada do fato, etc.) ou a um ato processual é porque não quero, pois, certamente, não é, do ponto de vista de minha defesa, favorável.
Esta estratégia é absolutamente legítima e encontra respaldo constitucional e convencional. Goste-se ou não! É a regra do devido processo legal imposta a todos que estão submetidos a uma investigação criminal ou a um processo. Um dia dela podemos ser beneficiários, afinal de contas todos podemos também um dia ser acusados de cometer um crime.
A Processualização Civil do Processo Penal
Nestes termos, qual o sentido da condução coercitiva? Dir-se-á: colher a qualificação do conduzido. Ora, nada mais falacioso. Primeiro que, havendo processo, já há denúncia (ou queixa) e, obviamente, o réu já está qualificado suficientemente. Se não há, portanto, se ainda na fase investigatória, deve o Estado cuidar de qualificá-lo pelos (vários) meios disponíveis (como a Justiça Eleitoral, por exemplo). É um ônus a cargo do Estado que não pode ser imposto ao réu que tem, repita-se, o direito de não autoincriminação e o direito ao silêncio. No Processo Penal o ônus é sempre do Estado/acusador/investigador, inclusive o de provar. Afinal de contas de quem se presume a inocência nada se pode exigir. Repita-se: goste-se ou não, é a regra do devido processo legal imposta a todos que estão submetidos a uma investigação criminal ou a um processo, inclusive a nós.
Restaria, então, uma última possibilidade: trabalhar com a tese de que a condução coercitiva poderia ser utilizada como medida cautelar autônoma. Nada mais inapropriado falar-se no Processo Penal de uma tal coisa, com todo respeito dos que assim pensam. É um erro dogmático sério e que põe em risco os direitos e garantias fundamentais, além de demonstrar desconhecimento da própria natureza das medidas cautelares. É de um eficientismo perigosíssimo. Abre-se um precedente sem igual.
Aliás, esta distorção vem de um outro equívoco que vez por outra se repete, que é uma tentativa nociva (sob todos os aspectos) de importar determinadas categorias do Direito Processual Civil para o Processo Penal, como se existisse uma Teoria Geral do Processo, quando se sabe algo impossível, pois o Direito Processual Civil possui conteúdo próprio, que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, motivo pelo qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.
Sempre é importante a lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
“Não é despiciendo, ademais, retomar, ainda que brevemente, o argumento referente à qualidade das reformas globais ou parciais, mesmo porque traz à baila a questão principiológica. Com efeito, em favor da parcialidade fala uma desconfiança – não de todo improcedente – na direção do Parlamento, principalmente em se tratando do nosso.De qualquer sorte, as reformas parciais não têm sentido quando em jogo está uma alteração que diga respeito à estrutura como um todo, justo porque se haveria de ter um patamar epistêmico do qual não se poderia ter muita dúvida. Isso, todavia, não é o que se passa com o sistema processual penal onde, antes de tudo, não se consegue sequer delimitar corretamente o conceito de sistema que, a toda evidência, deveria, no nosso campo, partir da noção kantiana, ou seja, fundada na noção de princípio unificador, por sinal protocelular.
Assim, princípio, sistema, conteúdo do processo (qualquer um mais perquiridor sabe não existir lide no processo penal, são conceitos/matérias que não encontram a necessária paz suficiente na teoria do direito processual penal, antes de tudo por falta de fundamentos extradogmáticos, a começar pelo mau vezo de se querer impor uma teoria geral do direito processual que, para nós – há de se insistir –, nada mais é que a teoria geral do direito processual civil aplicada, desmesuradamente, aos outros ramos e com maior vigor ao direito processual penal e ao direito processual do trabalho.
Por primário, não se há de construir uma teoria, muito menos geral, quando os referenciais semânticos são diferentes e, de conseqüência, não comportam um denominador comum. Pense-se só nos casos citados, ou seja, entre Direito Processual Penal e Direito Processual Civil o princípio unificador, o sistema e o conteúdo do processo são distintos, resultando daí uma Teoria Geral do Processo plena de furos e equívocos, alguns instransponíveis, no Direito Processual Penal naturalmente. Urge, portanto, uma teoria geral do direito processual penal arredia à falta de ensancha da teoria geral do direito processual civil, pelo menos para poder-se ter uma base mais coerente no momento de uma reforma que pretenda não ser só de verniz.
Ademais, a Constituição da República de 88 traçou, como se sabe, uma base capaz de, sem muito boa vontade, enterrar grande parte do atual CPP, marcado pela concepção fascista do processo penal e ancorado na tradição inquisitória, inclusive da fase processual da persecução, só não percebida por todos em razão da pouca perquirição que se faz das suas matrizes ideológicas e teóricas, a começar pelo velho código de processo penal italiano e seu inescrupuloso difusor e defensor, camìcia nera de todos os instantes, Vincenzo Manzini.
Que ele foi um vigoroso articulador teórico do processo penal italiano não se pode negar; mas que era um terrível fascista – e expressa isso em sua obra – também não. Pior, porém, é o que se passa com a doutrina nacional, alienada em relação a problema do gênero, como sucedeu, por infelicidade – não se pode crer em outro fundamento – com José Frederico Marques, o primeiro grande escritor, no Brasil, de um direito processual penal que queria superar a base praxista da ritualística de antes da polêmica Windscheid versus Muther e, por isso, ajudou a formar toda uma geração de processualistas que, não se dando conta das raízes espúrias do ramo, não poucas vezes pregam uma democracia processual com um discurso fundamentalmente antidemocrático. Assim, não é fácil evoluir; não é fácil avançar na direção da concreção da democracia processual; não é possível proceder ao necessário corte epistemológico; e as mudanças – qualquer uma – tendem a manter, como sugeriu Lampedusa, tudo como sempre esteve.”[1]
Eugenio Florian, já em 1927, teve a lucidez de estabelecer a contradição de uma Teoria Geral do Processo. Para ele era inadmissível a tese da identidade dos dois processos:
“A nosso juízo, o processo penal e o civil são duas instituições distintas. O objeto essência do processo penal é, como vimos, uma relação de direito público, porque nele se desenvolve outra relação de direito penal. Já no processo civil o objeto é sempre ou quase sempre uma relação de direito privado, seja civil ou mercantil.
(…) O processo penal é o instrumento normalmente indispensável para a aplicação da lei penal em cada caso; o civil, ao contrário, não é sempre necessário para atuar as relações de direito privado. (…) No processo civil o juízo está regido exclusivamente por critérios jurídicos puros (…), ao contrário do processo penal em que se julga um homem e, por isso mesmo, o juiz deve inspirar-se em critérios ético sociais. (…) O processo civil tem caráter estritamente jurídico, e o penal, no qual se trata de julgar um homem, tem também caráter ético.
(…) Leva-se em consideração, equivocadamente, algumas formas comuns entre o processo civil e o processo penal de mínima importância, descuidando-se de elementos diferentes, que são decisivos. (…) O triunfo da tese unitária conduziria a absorção da ciência do processo penal pela ciência do processo civil, perdendo o primeiro a sua autonomia, resultando profundamente alterado em sua concepção e estrutura.”[2] (tradução livre).
Interessante que Ovídio Baptista da Silva, consagrado processualista civil, ao escrever a sua Teoria Geral do Processo Civil (em coautoria com Fábio Gomes), posiciona-se terminantemente contrário à Teoria Unitária do Processo. Após alinhar alguns argumentos de outros autores a favor da tese, afirma:
“Não convencem, entretanto, as razões alinhadas em prol da construção de um conceito unitário, bem como da elaboração de uma teoria geral adequada tanto ao processo civil como ao processo penal. Muitos doutrinadores que defendem tal unidade se contradizem logo de início. (…) Os próprios doutrinadores que defendem a unidade fundamental do processo ressalvam a identidade própria dos respectivos ramos, o que, a rigor, encerra uma contradição; a não ser que entendamos esta unidade em termos extremamente finalísticos, mas, então, cair-se-ia no plano da teoria geral do direito. (…) O direito processual civil, como o direito processual penal, juntamente como todos os demais ramos da ciência jurídica, constituem uma vasta unidade, um conjunto harmônico de normas coordenadas, cuja independência, entretanto, deve ser respeitada.”[3]
Em definitivo, há “coisas” completamente diferentes entre o Processo Penal e o Processo Civil e não somente meras peculiaridades, como costumam afirmar os adeptos da Teoria Unitária. Tais “peculiaridades” do Processo Penal são tão evidentes e tão diversas que devemos, no seu estudo, esquecer os princípios e regras orientadoras do Processo Civil.
Aliás, não se pode falar, sequer, em ação penal cautelar. A propósito, o que Frederico Marques chamava de ações penais cautelares nada mais são que meros provimentos cautelares que podem ser requeridos ao Juiz, sejam antes do processo, durante e até na fase de execução penal (monitoramento eletrônico, por exemplo – arts. 146-B a 146-D da Lei nº. 7.210/84). Neste mesmo sentido é a lição de Rogério Lauria Tucci, para quem no Processo Penal:
“Só há lugar para a efetivação de medidas cautelares, desenroladas no curso da persecução ou da execução penal, e não para ação ou processo cautelar, que exigem , para sua realização, a concretização de procedimento formalmente estabelecido em lei.”[4]
Também Vicente Greco Filho: “Também inexiste ação ou processo cautelar. Há decisões ou medidas cautelares, como a prisão preventiva, o sequestro, e outras, mas sem que se promova uma ação ou se instaure um processo cautelar diferente da ação ou do processo de conhecimento. As providências cautelares são determinadas como incidentes do processo de conhecimento.”[5]
E estas medidas cautelares no Processo Penal somente podem ser aceitas quando tipificadas em lei. Nada de aplicar o chamado Poder Geral de Cautela (Piero Calamandrei), outra invencionice importada do Processo Civil para o Processo Penal. A expressão “medida cautelar autônoma” no Processo Penal é uma contradição em si mesma. Medida cautelar de natureza penal exige tipicidade processual. Exatamente para isso foi promulgada a Lei nº. 12.403/11, ou não foi? Se medida cautelar autônoma fosse possível em matéria penal, qual o sentido daquela alteração legislativa? Ficava como estava, óbvio: ou prende ou fica solto, ou se inventa medida cautelar autônoma em nome da eficiência do Processo Penal.
Aprender com a história
Lembremos que Hitler foi, em certo aspecto e para os seus propósitos, de todo eficiente, pois “los profesores de derecho desempeñaron un papel importante en el declive del derecho durante el tercer Reich. Brindaron un ropaje filosófico a los actos arbitrarios y los crímenes de los nazis, que sin esse disfraz se habrían reconocido claramente como actuaciones ilegítimas. Prácticamente no hubo desafuero alguno perpetrado por los nazis que no hubiese sido reconocido durante el régimen como ´supremamente justo` y que no hubiese sido defendido después de la guerra por los mismos académicos, valiéndose de los mismos dudosos argumentos en cuanto a su ´justificación` o incluso su ´conveniencia` desde un punto de vista jurídico.”[6] Será que não vamos aprender com a História?
Por outro lado, defender a condução coercitiva como medida cautelar substitutiva da prisão provisória chega a ser um escárnio, um desrespeito à inteligência de quem estuda seriamente o Direito Processual Penal. Ora, se estão presentes os pressuspostos e os requisitos de uma prisão provisória (e, no Brasil quase sempre não estão) que se prenda. Tenha-se a coragem e fundamente-se a decisão, sem subterfúgios e sem interesses escusos e ilegais (para se conseguir a delação premiada, por exemplo).
Tampouco admite-se a condução coercitiva como medida cautelar probatória. Como? Óbvio que é possível medidas cautelares probatórias. Não desconhecemos esta possibilidade. Há, inclusive, previsão legal (art. 155, parte final do Código de Processo Penal). Mas, condução coercitiva para servir como “cautela de prova” em um sistema processual penal que inadmite a produção de prova contra si mesmo? É ou não uma contradição técnica imperdoável? Impor cautelarmente uma medida judicial das mais graves para assegurar a prova quando o sujeito tem o direito de não autoincriminação? Então, que sejam rasgados solenemente os Pactos Interncaionais.
Chegamos, definitivamente, ao fundo do poço. Tudo é possível. Infelizmente, a razão está com Giorgio Agamben:
“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. (…) O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.”[7]
Notas e Referências:
[1] “Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: um problema às reformas processuais”, http://emporiododireito.com.br/efetividade-do-processo-penal-e-golpe-de-cena-um-problema-as-reformas-processuais-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/, acesso em 23/04/2015.
[2] Eugenio Florian, Elementos de Derecho Procesal Penal, Barcelona, Bosch Editorial, 1933, págs. 20 a 23.
[3] Teoria Geral do Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, págs. 38 e 40.
[4] Teoria do Direito Processual Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 107.
[5] Manual de Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 2ª. ed., 1993, p. 102.
[6] MÜLLER, Ingo, Los Juristas del Horror, Bogotá: Inversiones Rosa Mística Ltda., 2009, p. 101.
[7] Estado de Exceção, São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 13.