A cidade e as crianças

Coluna Direito à Cidade

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Foto: Pixabay

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Um tema que não desperta a atenção necessária

Os estudos urbanos se estendem para uma infinidade de interfaces. Várias são as dimensões da vida que merecem uma abordagem interessada em compreendê-las segundo o recorte do território urbanizado. Um tema, porém, parece não despertar a atenção da pesquisa especializada: a relação entre a cidade e as crianças.

Intuo que isso acontece porque o assunto exige um olhar sensível que é pouco compatível com a objetividade das ciências. O que, por evidente, não lhe retira a importância. Afinal, para além de tentar entender como o mundo funciona, é preciso transformá-lo num lugar melhor para as pessoas, e isso não dispensa um cuidado especial com as crianças.

A memória e a cidade

A melhor maneira de começar essa tarefa é pela memória. Ela traz a cidade que, no fundo, nos constituiu. Ou o resultado da nossa interação com a cidade, posto que somos constituídos de um acumulado de histórias.

Cada um de nós possui uma experiência particular em relação à cidade. Lembro das intermináveis brincadeiras no Centro de Convivência Cultural de Campinas, cidade grande do interior de São Paulo. Atravessava o parque numa bicicleta, mais animado em percorrer a grama e o caminho entre as árvores do que os trechos pavimentados projetados por Fabio Penteado. Subvertia, portanto, o percurso correto, porque a aventura de descobrir novos trajetos era infinitamente melhor.

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Lembro ainda dos passeios pelo centro da cidade. Com meus pais, ou nos ombros do meu avô, ia conhecendo coisas novas: uma coruja, um cachorro, uma igreja, árvores, o comércio. Conhecia também o lado contraditório do mundo, ainda que não tivesse consciência dos seus motivos: músicos que tocavam em troca de algumas moedas e gente que apenas estendia a mão para receber alguma ajuda.

Havia, é claro, as precauções que deveria tomar e, principalmente, os medos. Ao passar por uma praça, por exemplo, alguém segurava minha mão com mais força. Praças, afinal, eram lugares perigosos. Andar à noite? Nem pensar. E caminhar sozinho nunca era uma boa ideia: sequestradores estavam à espreita, prontos para me enfiar num saco cheio de crianças desobedientes.

As experiências desse período me constituíram. Sou o que sou por aquilo que vivi: as dúvidas, as inquietações, os medos, os gostos. Por isso a cidade é tão importante. que dirão os adultos se a cidade lhes for apresentada como um espaço de muros, de medo, de violência?

Interação das crianças com a cidade

Walter Benjamin, filósofo alemão da Escola de Frankfurt, no clássico “Rua de mão única: infância berlinense”, fala sobre a maneira lúdica com que as crianças interagem com a cidade. Elas se satisfazem com coisas e lugares irrelevantes ao mundo adulto: restos de obras, galhos, casas antigas ou abandonadas. Mas nem por isso são menos importantes. Afinal, é com essa maneira peculiar de ocupar e viver no espaço que vão construindo um mundo próprio, baseado em suas brincadeiras, e pavimentando o caminho para o mundo adulto.

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Cidades melhores então, são aquelas capazes de acolherem as crianças em suas brincadeiras, e não lhes serem um ambiente hostil. Devem ser generosas com o lúdico, convidativas, motivadoras da curiosidade e da descoberta do novo. Não seria exagero afirmar, portanto, que o direito à cidade deve incorporar um conteúdo intergeracional, o que impõem um compromisso das presentes gerações de pensarem o espaço urbano com vistas às futuras gerações.

Um compromisso multifacelado

Esse é um compromisso multifacetado. Quero aqui focalizar um dos seus responsáveis: as famílias, primeira experiência de relação social na vida de qualquer indivíduo. Pais precisam apresentar a cidade para seus filhos como uma grande oportunidade de brincadeiras,  porque a fantasia guarda o aprendizado essencial para a vida adulta, e valores como a autonomia, a solidariedade, a tolerância. O pai ou a mãe que segura a mão de uma criança e a conduz pela cidade, apresentando-a ao mundo, em toda a sua diversidade e diferença, conversando e ensinando, é um privilegiado, porque imbuído de uma missão especialíssima: ajudar a construir a cidade e a sociedade do amanhã.

 

Wilson LevyWilson Levy é Articulista do Estado de Direito – doutorando em Direito Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Graduate Student Fellow do Lincoln Institute of Land Policy. Membro do Núcleo de Estudos em Direito Urbanístico da Escola Paulista da Magistratura. Professor do Programa de Pós-Graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da UNINOVE.

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