Saramago estava certo: Somos cegos que veem. Os atuais cenários políticos e jurídicos brasileiros deixam claro como as pessoas não conseguem estabelecer motivos razoáveis para a convivência. Os limites ideológicos não são vistos, ao contrário, são abandonados para, com todo fervor, defender posturas, as quais, muitas vezes, não pertencem ao espaço público, mas apenas aos interesses pessoais. Percebe-se, com vivacidade, que os momentos de crises revelam o despreparo das pessoas em viverem civilizadamente umas com as outras.
Cegos para o bem comum
A saturação da vida social é causada pelas posturas sectárias dos cidadãos com seus semelhantes, da troca de uma opinião pública por outro publicada, já sinalizava Michel Maffesoli, da corrupção endêmica, estrutural e histórica experimentada nas terrae brasilis – desde a compra e venda de sentenças, do desvio de verbas para a alimentação das crianças nas escolas até o uso irregular de um sinal de TV pego do vizinho para ter que assistir um jogo de futebol favorito, mas, claro, sem pagar qualquer centavo para se obter esse lazer -, enfim, ao menor sinal de crise, não se sabe qual medicamento procurar, nem a sua dosagem para que a ordem social retorne. Na verdade, devido a insistência dessa cegueira, a busca pelo correto remédio, aos poucos, se torna seu envenenamento gradual, como se observa pelas diversas opiniões – jurídicas, saliente-se – sobre o que fazer e como aplicar o impeachment de nossa Presidente da República.
Somos cegos que veem. Precisa-se repetir diversas vezes esse genuíno “mantra” para se sair da esquizofrenia causada por profundas dicotomias de certo e errado, “esquerda” e “direita”. É a partir dessas adversidades, da angústia vivenciada todos os dias na medida que a garantia legal dos Direitos Fundamentais, por exemplo, não se torna suficiente para assegurar às pessoas condições de vida digna. A República, aos poucos, desmorona porque a cegueira – social e institucional – não identifica o que seja o bem comum, em outras palavras, o que é indispensável para que as pessoas tenham uma vida boa? Eis uma indagação na qual poucos conseguem responder. A advertência de Aristóteles, nesse caso, é preciosa: busquem o meio termo, o equilíbrio e se afastem dos excessos.
Liberdade e segurança
Essa é uma tarefa inglória, seja paras aqueles que defendem opiniões ou partidos de “esquerda” ou de “direita”. Aqui, veja-se, os interesses são difusos, pois alguns querem ceder a sua liberdade para obter, a qualquer custo, a segurança. Outros, no entanto, não querem segurança, mas uma irrestrita liberdade para as atitudes individuais ou para a amplitude e sucesso do mercado com o objetivo de se trazer estabilidade para as finanças. Novamente, somos cegos que veem. No mesmo sentido, liberdade e igualdade, quando praticadas pelo encobrimento de nossa cegueira, não garantem qualquer condição para uma convivência sadia, harmoniosa. Ao contrário, a primeira insistirá nas posturas exclusivamente egoístas. O Outro é apenas um estorvo que deve ser eliminado para que “Eu” tenha êxito. Cooperação, responsabilidade são termos puramente ideais. Já a igualdade não enxergará o valor da individualidade, da mente criativa, pois a vontade do ego é suprimida pelo “Nós”. Nenhuma das “virtudes civilizacionais”, como se pode observar, serve como vetor de orientação para o aperfeiçoamento da vida republicana, quando a cegueira permanece nas ações pessoais, sociais e institucionais.
A serenidade
O que resta, então, de uma vida pautada pela cegueira causada pelo ressentimento, rancor, ódio, entre outros atributos emocionais os quais erguem verdadeiras moradas para a segregação, a indiferença, a intolerância, ou seja, a instabilidade social, política e jurídica brasileira. Talvez, nesse momento, o apelo de Norberto Bobbio possa dissipar o véu que impede as pessoas enxergarem o atual cenário com mais clareza: Precisa-se, mais e mais, de Serenidade para se constituir as utopias concretas de uma convivência justa, ética e socialmente útil.
Serenidade jamais se confunde com submissão, passividade, doçura ou mansidão. O homem ou mulher serenos não se tornam indiferentes às misérias humanas por não desejarem romper com a “aparência” de paz traduzida pela passividade, pela mansidão. Essa virtude é algo mais profunda, mais enraizada, pois somente se manifesta na presença do Outro como ato de cuidado, de apoio entre seres humanos a fim de vencer aquilo que os afliges. O exercício da Serenidade, segundo Bobbio, é uma virtude genuinamente social. Sem Serenidade não é possível enxergar sentido na Justiça, na Tolerância, no Respeito, por exemplo. Ao se reconhecer a importância da Serenidade, procura-se consolidar uma vida equilibrada, afastada dos excessos, sejam positivos ou negativos.
Somos cegos que veem, sim, porém é possível mitigar essa insistente cegueira graças à Serenidade. Aos poucos, o véu que en-cobre a clareza de uma vida comum, partilhada pelo interminável diálogo entre o “Eu” e o “Tu”, forma o “Nós” no intuito de se identificar, distribuir e oportunizar acesso aos bens comuns, sem que haja barreiras dicotômicas entre “esquerda” ou “direita”, mas apenas o reconhecimento de humanos, cuja cooperação assegura o aperfeiçoamento sadio de uma convivência entre Sociedade e Estado. Eis uma boa aposta para um momento presente decente e um futuro prudente.