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Madame Bovary
FLAUBERT (Madame Bovary, 1856): “O seu pensamento, primeiro sem ponto fixo, vagabundeava ao acaso, como a sua galgazinha, que dava corridas pelo campo, ladrava para as borboletas amarelas, caçava as aranhas, ou mordia as papoulas à beira dos montes de trigo. Depois suas ideias se fixavam, pouco a pouco, e, sentada na relva, castigava-a com a ponteira da sombrinha, repetindo para consigo: – Mas, meu Deus!, para que me casei? – E perguntava a si mesma se não haveria um meio, por quaisquer combinações do acaso, de encontrar outro homem; e diligenciava em imaginar quais teriam sido os acontecimentos não sobrevindos, a vida diferente, esse marido que ela não conhecia. Com efeito, nem todos se assemelhavam àquele. Teria podido ser belo, inteligente, distinto, atraente, tal como eram, sem dúvida, os que se tinham casado com as suas companheiras de convento. Que fariam elas agora? Na cidade, com o bulício das ruas, o rumor dos teatros e a iluminação dos bailes, levavam a existência que dilata o coração e desabrocha os sentidos. Ela, porém, tinha a vida fria de um celeiro aberto para o norte; e o tédio, aranha silenciosa, ia tecendo a sua teia na sombra de todos os cantos do seu coração” [Ema, a respeito de seu casamento com Carlos Bovary][i]
[i] FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Trad. de Araújo Nabuco. São Paulo: Abril Cultural, 1981, p. 38.
Madame Bovary procura a felicidade, mas não a troco de qualquer coisa: pelo amor, mesmo que tenha que sacrificar a família – mas o amor só é possível na cidade, no centro da cultura – nas franjas do novo -, nos bailes, nos teatros, nas conversas pomposas dos viajantes e dos literatos, nas condições intrépidas do urbano, enfim, no mutante e inóspito movimento da Modernidade; para Ema o grande problema não é seu marido, mais velho, por quem nutre significativo respeito e candura, mas ele é apenas um médico do interior, e no interior nada acontece de novo, apenas a rotina do mesmo que se move infinitamente entre a casa do farmacêutico, a fazenda de alguém doente e a luz crepuscular do candeeiro na hora de jantar: uma única rua mal asfaltada, a praça com o chafariz central onde a água só jorra aos domingos, farolando os aldeões para a missa, ou nos feriados santos em procissão capitaneada pelo padre curvado sob um grande peso – de quê?, sempre se perguntava Ema, e invariavelmente a mesma resposta invadia seu espírito: – do estático tempo!, e o tempo que não se move pesa todo o peso do espaço do mundo! -; as casas brancas e marrons desbotadas e sujas pela umidade e carcomidas pelo caruncho, as mesmas tabuletas enegrecidas e quase inelegíveis do taberneiro, da mercearia, da hospedaria, do boticário, da igreja!, a secura irrespirável no verão pela poeira dos campos e dos caminhos de terra, os charcos e a lama nos mesmos lugares inverno após inverno… sobre(tudo) à sua volta, também em casa, lhe curvava o tempo pela família, pela criadagem, sempre ao mínimo indispensável à família de um médico do interior, os aposentos, os móveis, o quintal e o caramanchão que até floria no verão; – Sim!, para Ema tudo na sua vida estava destinado a curvar o tempo como em um buraco de minhoca, mas ela não sabia disto, de forma que a única forma de eliminar o espaço entre o bafio e o arejado era o Amor: o amor livre só podia estar lá em Paris, o amor era o caminho para Paris, e se um amante não quer fugir com ela, um outro que anos antes fugira de seu amor por escrúpulos pode libertá-la, em Paris – Paris, o lugar na franja do mundo, a saída da travessia para a liberdade, deles e delas; – Poder-se-ia dizer que a Modernidade “se esvai do coração para a vida”: o viver moderno é assim, o frenético e a rapidez apenas podem ser capturados à posterior, portanto na estática do documento, onde a velocidade se estanca, onde o tempo já não passa, no próprio espaço da narrativa, do texto, da reprodução da velocidade que não se quer deixar capturar, posto que é a vida!, – mas a vida, que não é a essência, pelo hipotético (Kant)[i] que não tem ainda substância, que logo a terá, para logo não ter, que pula de ter-em-ter, de ser-em-ser: a vida a partir do século XIX se dá de alguma forma – e o texto de muitas formas, claro! – congelada como espelho de um fóssil siberiano – Chernobyl ou Soljenitsin, que diferença faz? -, onde o sentimento é mais uma ferramenta apenas; – E é assim que Madame Bovary é moderna em suas paixões verdadeiras, em seus adultérios legítimos, em suas ansiedades por mais Luz, afinal em sua angústia final e suicídio, uma prova de dignidade a esgueirar-se de Boy With Machine, 1954, óleo sobre tela, 102 x 76 cm[ii];
A Modernidade estava de seu lado
POSFÁCIO: o erro de Ema foi não ter percebido, afinal, que a Modernidade estava ali de seu lado, ali naquela vilazinha e nos sítios ao redor, ali nas intenções do amante proprietário que se aproveita dela, do tabelião que se quer aproveitar de seu infortúnio falimentar dando lições de como deveria se aplicar o pouco dinheiro que seu marido tinha, do comerciante que executa as suas dívidas como um bom mercador de Veneza, da justiça que recolhe os bens de dentro de casa para pagar as dívidas; mas… Ema não podia compreender que o capital não ignora vilas, sítios, caminhos de terra, ruas de pedra, chafarizes em praças bucólicas, placas apodrecidas e igrejas desfazendo-se ao tempo: a senhora Bovary era de fato menos moderna do que a Modernidade – culpa do Amor!
[i] Existe em Kant a ideia instigante que o “real” não é dado ao homem, na medida em que a “razão” sempre “interpreta” quando da aproximação dos nossos sentidos com as coisas do mundo exterior, motivo pelo qual a “realidade” é apenas o conjunto de signos, conceitos, narrativas e discursos elaborados por comum necessidade da vida social, como se para o Ser consciente tudo não passasse de uma “ficção”; neste sentido, se a verdade não é possível, uma outra “verdade” toma seu lugar, por hipótese, um Imperativo Hipotético, uma teia de protocolos e discursos a moldarem os relacionamentos e as realizações coletivas, tomadas por óbvias, mas de fato resultado de padrões e paradigmas cristalizados ora por utilidade imediata e sensorial, ora por inserção do humano na rede de sucesso da vida material e imaterial (O Paradigma da Verdade em Kant): SACADURA ROCHA, José Manuel de. Fundamentos de Filosofia do Direito: o jurídico e o político da antiguidade aos nossos dias. 5. ed. São Paulo; Atlas, 2014, p. 117.
[ii] Quadro de Richard Lindner (1901-1978).