Candomblé E Direito: o encontro de duas cosmovisões na problematização da noção de sujeito de direito

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

 

ADAD, Clara Jane. CANDOMBLÉ E DIREITO: O Encontro de Duas Cosmovisões na Problematização da Noção de Sujeito de Direito. Dissertação de Mestrado. Brasília: Universidade de Brasília/Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares/Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. Data de defesa: 8/5/2015. Publicação no Repositório: 29/12/2015, 7,18 MB.

 

        A Dissertação de Clara Adad, objeto deste Lido para Você, como notícia para Editores, é um relampejar clareador numa atmosfera sombria, pobre em discernimento e míope na representação da Justiça. Não é, pois, singela a indagação sobre ser possível o diálogo entre Candomblé e Direito, uma questão central lançada no texto.

        Há bem pouco tempo, no Rio de Janeiro, um juiz de Direito, a toda certeza, indigente nesses dois fundamentos, lavrou sentença, felizmente logo corrigida, recusando a prestação de justiça em matéria que envolvia reconhecimento da titularidade e da dignidade de religião de matriz tradicional de origem africana.

        Com efeito, a Justiça Federal no Rio de Janeiro proferiu sentença na qual considera que os “cultos afro-brasileiros não constituem religião e que manifestações desses cultos não contêm traços necessários de uma religião”.

       A decisão foi lançada em ação do Ministério Público Federal (MPF) que pedia a retirada de vídeos de cultos evangélicos que foram considerados intolerantes e discriminatórios contra as práticas religiosas de matriz africana do YouTube.

            O juiz entendeu que, para uma crença ser considerada religião, é preciso seguir um texto base – como a Bíblia Sagrada, Torá, ou o Alcorão, por exemplo – e ter uma estrutura hierárquica, além de um deus a ser venerado.

           A iniciativa do  MPF visava a retirada dos vídeos por considerar que o material continha apologia, incitação, disseminação de discursos de ódio, preconceito, intolerância e discriminação contra os praticantes de umbanda, candomblé e outras religiões afro-brasileiras.

          Para o órgão do MPF, “a decisão causa perplexidade, pois ao invés de conceder a tutela jurisdicional pretendida, optou-se pela definição do que seria religião, negando os diversos diplomas internacionais que tratam da matéria (Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, Pacto de São José da Costa Rica, etc.), a Constituição Federal, bem como a Lei 12.288/10. Além disso, o ato nega a história e os fatos sociais acerca da existência das religiões e das perseguições que elas sofreram ao longo da história, desconsiderando por completo a noção de que as religiões de matizes africanas estão ancoradas nos princípios da oralidade, temporalidade, senioridade, na ancestralidade, não necessitando de um texto básico para defini-las”.

            A partir dessa decisão e citando algumas outras manifestações do Judiciário de do  Ministério Público,  a pesquisadora do Coletivo O Direito Achado na Rua Luciana Ramos chama a atenção para uma inflexão preocupante percebida no sistema formal de justiça, que pode ser considerado um desvio ideológico determinante de sua procedimentalidade.

           Ela alude, por exemplo, ao fato de que  “o Conselho Nacional do Ministério Público realizou uma sessão para discussão e votação de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para “regularizar” os limites sonoros durante os cultos e liturgias das religiões de matriz africana em Santa Luzia (MG).

      De acordo com o TAC e informe do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-brasileira (CENARAB) “a casa poderia executar as atividades somente nas quartas-feiras e em único sábado do mês, utilizando apenas um atabaque”.

      Ademais, o referido TAC impõe uma multa diária pelo descumprimento de R$ 100,00 (cem reais), inclusive com punição para práticas de culto silenciosas fora dos dias estipulados no referido Termo (Tribunal da Inquisição na Modernidade: Racismo Religioso e Insconstitucionalidade do Termo de Ajuste de Conduta do Ministério Público Federal, http://odireitoachadonarua.blogspot.com/search?q=luciana+Ramos+tribunal+de+inquisi%C3%A7%C3%A3o)”.

           Segundo ela, em seu texto, “temos vivenciado um acirramento nos últimos tempos de perseguições, sejam físicas, sejam político-judiciárias, às religiões de matriz africana no Brasil. Muitos debates têm girado em torno de dois grandes pontos. O primeiro ponto é sobre a laicidade do estado, ou seja, um país que declara constitucionalmente ser um Estado sem um vínculo confessional com qualquer religião, na prática tem se revelado como um Estado confessional cristão”.

         Por isso ela questiona ser, assim, “fundamental perguntar sobre até que ponto, embora não acredite na neutralidade, o Judiciário que se diz e se camufla como um espaço neutro tem sido um espaço de proteção aos direitos fundamentais constitucionais? Em que medida, a “neutralidade” não está imbuída de dogma religioso, por uma cultura religiosa cristã? Em que medida, para manutenção do estado democrático de Direito, o Judiciário tem sido o capitão do mato na captura e regularização cosmológica dos “selvagens”?”.

       E de modo contundente chega a uma conclusão muito inquietante, se considerarmos os rumos correntes no País com o sítio político-religioso ao princípio constitucional da laicidade:  a de que “A retórica da neutralidade e a justiça são racistas! A neutralidade a favor da barbárie. A neutralidade travestida de justiça. A neutralidade que persegue. A neutralidade que é incapaz de enxergar seus privilégios. A neutralidade que evidencia inconstitucionalidades em prol de um grupo cristão. Neutralidade que tem sido fundamental para manutenção e reforço do racismo contra religiões de matriz africana. Temos um Judiciário cada dia mais colonizado, branco, ocidental, liberal e lócus de injustiças contra a população negra no Brasil, por ser incapaz de refletir os privilégios que sempre construiu em prol do racismo e da opressão. Judiciário que reflete Themis e não Xangô!!!!” (RAMOS, Luciana, op.cit.).

         Essa conclusão é reafirmada ainda por Luciana Ramos quando reage a declaração de Ministro do Supremo Tribunal Federal durante julgamento naquela Corte, repristinando suas habituais idiossincrasias às concepções emancipatórias de O Direito Achado na Rua. Em resposta ao Ministro ela resgata os pressupostos conceituais dessa corrente crítica, afirmando com pertinência ao tema deste Lido para Você que “sistema jurídico brasileiro tem sido confrontado no seu racismo, não só no âmbito jurisdicional, mas principalmente nos instrumentos colonizadores e de opressão reproduzidos pelas suas casas grandes” (RAMOS, Luciana. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/577807-o-direito-achado-em-uganda-justica-diasporica-e-combate-ao-racismo-jurisdicional).

      Certo também ao derredor dessa disposição paradigmática sobredeterminar-se ainda um ranço hegemonista que se inscreveu na racionalidade científica moderna a ponto de a própria religião, que já fora o viés legitimador do conhecimento, aspirar a positivar-se para se manter reconhecida. No século XIX foi notável o modo como se procurou adotar o requisito da demonstrabilidade mesmo quando se tratou de pesquisar os ditos fenômenos mediúnicos.

             Na Europa, por exemplo, os mais destacados representantes das academias assumiram essa disposição, sendo conhecidos os experimentos do químico William Crookes (Inglaterra), do médico Cesare Lombroso (Itália), do astrônomo Camille Flammarion (França) que procuraram estabelecer pressupostos de cientificidade para o recém desenvolvido movimento “espírita”, que acabou ganhando densidade com os esforços sistematizadores do pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail (pseudônimo Allan Kardec).  No acumulado de indagações que esse campo motivou, inclui-se o formidável levantamento feito por Conan Doyle o genial criador da mítica ficção do investigador analítico Sherlock Holmes, com sua História do Espiritismo e, a atenção que deu ao tema o companheiro de estudos dialéticos de Marx,  Friedrich Engels, que apesar do ceticismo arredio ao empiricismo rasteiro deixou aberta a possibilidade de novas pesquisas nesse campo, inserindo entre seus ensaios sobre a Dialética da Natureza, uma leitura muito instigante de 1878 publicada com o título A Ciência Natural e o Mundo dos Espíritos.

         De toda sorte, permanece para além do paradigmático, uma sombra hierárquica no litúrgico desse campo, que não esconde a precedência da religiosidade burguesa dos trabalhos de mesas brancas em contraposição ao animismo do povo de terreiros. Algo que não deixa de impressionar  a jurisdição dos palácios de justiça em face do direito achado na rua.

        Os tribunais razoavelmente acolhem as provas mediúnicas, atestadas pela alta idoneidade de um trabalhador presumidamente reconhecido no labor da espiritualidade a que o próprio Direito faz recepção, como está em parecer absolutamente convicto do meu próprio querido avô, em ilustração kantiana que nunca deixo de homenagear (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Floriano Cavalcanti de Albuquerque, um Juiz à Frente de seu Tempo. In ALBUQUERQUE, Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de. Desembargador Floriano Cavalcanti de Albuquerque e sua Brilhante Trajetória de Vida. Natal: Infinitaimagem, 2013, p 329-338):

                                   

“E que Francisco Xavier é médium, ninguém, lealmente, o contestará, bastando unicamente, sem vê-lo em transe ou ação, considerar a sua já vasta obra, muito acima de sua cultura e possibilidades, produção tão excelente que consagra o seu autor como um dos vultos mais proeminentes e complexos das nossas letras, ao mesmo tempo poeta e prosador, cronista e romancista, sociólogo e filósofo. Mesmo uma só delas dar-lhe-ia direito a um lugar na Academia, Forçosos é, pois, convir que a sua probidade é de tal natureza que ele não se apropria da intelectualidade dos que o servem e nem explora, auferindo o lucro material da venda dos livros, fatos que convencem em absoluto da sua sinceridade e boa-fé” (Trechos da Longa Entrevista do Desembargador Floriano Cavalcanti, ao Diário de Natal. In TIMPONI, Miguel. A Psicografia Ante os Tribunais. O Caso Humberto de Campos. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2010, p. 401-404; conferir também, sobre o assunto ALBUQUERQUE, Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de. A Vida Transcende Além da Terra. Natal: Infinitaimagem, 2016).

 

              De outra parte, num sistema mundo colonizado, a notícia sobre juiz que consultava duendes, leva ao desfecho de seu afastamento da Suprema Corte na qual exercia jurisdição (Filipinas), conforme relata o jornal Philippine Daily Inquirer. Em que pese o fato, disse o Juiz ao Jornal, de ter sido o caso discutido em mais de mil blogs e suscitado mais de 10 mil respostas em todo o mundo, inclusive de apoio de praticantes de magia e ocultismo, o afastamento se consumou com o agravante de que durante as audiências do processo, os médicos da Suprema Corte e do próprio juiz terem afirmado que o réu sofria de problemas mentais.

           Na visão da Suprema Corte, a aliança do juiz com duendes “coloca em risco a imagem de imparcialidade judicial, e mina a confiança pública do Judiciário como guardião racional da lei, isto é, se não torná-lo objetivo do ridículo”. E, diferentemente do que foi considerado, por exemplo, em relação a Francisco Xavier, para o tribunal filipino “fenômenos psíquicos, mesmo assumindo que existam, não têm lugar na determinação do Judiciário de aplicar apenas a lei positivista e, na sua ausência, regras e princípios igualitários para resolver controvérsias” (https://noticias.uol.com.br/bbc/2006/08/18/ult2363u7712.jhtm, acesso em 10.01.19).

             A Dissertação de Clara Adad, defendida no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (CEAM/UnB) sob orientação da professora  Nair Heloisa Bicalho de Sousa guarda a problematização do diálogo que a autora procurou encontrar entre o direito e o candomblé, tanto no sentido de sua genealogia, nascida de filha de santo, quanto na consideração de seu interesse acadêmico-profissional enquanto operadora de Direito, condições que lhe desafiaram a prática e o entendimento:  “o que pode acontecer quando o sujeito de direito se encontra com a pessoa do candomblé?”.

           Na sua percepção, “tanto os valores quanto as questões tratadas nos terreiros do candomblé encontram algumas similitudes com os valores e questões tratadas no direito, no que se refere à busca por resolução de problemas, sendo essas semelhanças e diferenças que me despertaram para a busca do novo, não tanto pelas questões tratadas ou valores revelados, mas, sobretudo, porque tanto o direito quanto o candomblé, nos seus códigos e ritos, trazem uma concepção de pessoa na qual balizam as suas ações, o que gera uma concepção de sujeito de direito a partir da qual viabilizam ou direcionam suas respostas às demandas vigentes”.

           Ao seu modo de perceber “no direito positivo, esses conceitos, historicamente construídos, induzem formas de pensar sedimentadas em verdades absolutas (pretensamente únicas e universais) e, assim, impositivas, uma vez que se fundam numa cosmovisão essencialista, individualista e excludente que tem como modelo de sujeito de direito o homem de tradição eurocêntrica visto como individual. Boaventura de Sousa Santos, no seu livro Se Deus fosse ativista de direitos humanos (2013, p.124), permite-me dizer que aliadas a isto, tradicionalmente as concepções e práticas dominantes dos direitos humanos foram monoculturais, e isso constituiu um dos maiores obstáculos à construção de uma luta de baixo para cima, real e universal, pelos direitos”.

           E se o “direito positivo não consegue alcançar a multiplicidade que constitui o ser “pessoa” para o candomblé, conceito esse que vai além do ser único, indivíduo, já que agrega a esse ser os seus antepassados e descendentes – a ancestralidade. Isso aparece refletida nas inúmeras dificuldades de diálogo e/ou mediação de conflitos entre as tradições do candomblé e a forma de se pensar a pessoa, o sujeito de direito e a justiça no sistema oficial, monista, o que demonstra que o conceito de indivíduo na teoria monista é impróprio tanto para as questões do candomblé quanto para o contexto diverso dos direitos humanos. Por isso, impõe-se, então, a necessidade de um tipo de direito que atenda às múltiplas maneiras de se pensar essa pessoa – um direito igualmente múltiplo, plural ou de múltiplas percepções”.

           Por isso é que ela buscou no pluralismo jurídico e em O Direito Achado na Rua, uma forma de pensar que a levasse, diz ela, ao seguinte questionamento: “até que ponto o pluralismo jurídico pode ser usado como uma ferramenta de abertura do direito para o diálogo crítico com o candomblé”.? E, nesse passo, na tentativa de verificar essa problematização, e proceder à sua análise, procurou  “identificar as concepções de pessoa no candomblé e as concepções de sujeito de direito, de modo a compreender até que ponto o pluralismo consegue alcançar as pessoas do candomblé como sujeitos de direitos”.

           A formulação destas questões, e as respostas que encontrou é o que apresenta no trabalho.

           No primeiro capítulo intitulado Itinerários de constituição da pesquisadora e da delimitação do objeto de estudo traça “o caminho que me constituiu pesquisadora da tradição de matriz afrodescendente, o que se dá no processo das pesquisas: bibliográfica acerca do tema, documental com a análise de fragmentos do processo judicial nº 0004747-33.2014.4.02.5101 – ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal – MPF em face da empresa Google Brasil Internet Ltda. e das pesquisas de campo exploratórias nos terreiros, visitados no período entre abril e dezembro de 2013, registrados em diários de campo e fotografias quando possível. Esses percursos me possibilitaram a delimitação de minha problemática e do objeto de estudo, o candomblé na relação com o direito, como dados desta investigação. Como aporte teórico, utilizei, para esse diálogo, autores do Pluralismo Jurídico e de O Direito Achado na Rua e de abordagens afins, escolhendo como critérios de análise as noções de pessoa e de sujeito de direito”.

           No segundo capitulo Candomblé e sua tradição viva trata do candomblé como possibilidade de preservação de uma cosmovisão africana e da noção plural de pessoa.

           No terceiro capítulo Noções de sujeito de direito e de pessoa no direito positivo, inicialmente, examina posições de autores tradicionais do direito e, em seguida,  daqueles que problematizam o atual sistema de justiça brasileiro, principalmente no que diz respeito à sua concepção monista. Traz fragmentos do referido processo como exemplo de que este direito não atende satisfatoriamente os conflitos a cultura afro-brasileira, no caso o candomblé, deparando-se com a associação entre sujeito de direito e o conceito de pessoa como algo naturalizado, comumente sem problematização sobre o assunto.

           No quarto capítulo Diálogo crítico entre pluralismo jurídico e tradição viva do candomblé, apresenta o pluralismo jurídico enquanto noção de que podemos ter vários direitos numa mesma sociedade, uma abrangência que lhe possibilitou atentar para os elementos do candomblé no Brasil, e assim, perceber a diferença entre estes e os elementos tão importantes ao direito – o sujeito de direito e a ideia de pessoa – por meio dos elementos plurais do candomblé.

           Ao final,  apresenta os principais resultados alcançados, tendo em vista os objetivos traçados inicialmente. Realço a imagem do ser humano como múltiplo, como causa de algumas das dificuldades de diálogo e/ou mediação de conflitos entre as tradições do candomblé e a forma de se pensar a pessoa, o sujeito de direito e a justiça no sistema jurídico que nos insere; um sistema, ainda, monista. Por isso, conclui que o conceito de indivíduo na teoria monista é impróprio tanto para as questões do candomblé quanto para o contexto diverso dos direitos humanos.

           A sua conclusão é “que o direito vigente, em relação às religiões afro-brasileiras, não consegue nem mesmo garantir o mínimo que lhes propõe, como a liberdade religiosa e o direito ao livre exercício de suas crenças, quanto mais ir além, por considerar o conceito de indivíduo da teoria do direito monista impróprio tanto para as questões do candomblé quanto para o contexto diverso dos direitos humanos”.

           Por essa razão, sugere que “é a partir dessa imagem do ser humano como múltiplo apresentado na tradição viva do candomblé, que se pode lograr desconstruir e reconstruir a ideia de sujeito de direito que o direito posto nos apresenta, utilizando como dispositivo o pluralismo jurídico no viés do Direito Vivo e de O Direito Achado na Rua. Essas formas de pensar e fazer o direito são possibilidades para outra epistemologia, de modo a garantir o diálogo crítico entre essas cosmovisões”.

           Trata-se, pois, de um posicionamento que, volto a Luciana Ramos (op. cit.) designa, com Roberto Lyra Filho, como Direito Achado na Encruza, ou seja, “caminhos abertos, múltiplos olhares e possibilidades utópicas”.

           Com  Clara Adad, assim também com Luciana Ramos, é importante pensar na Encruzilhada como possibilidades de caminhos, como início e não como fim do mesmo, como algo sem saída. A Encruzilhada é o lugar da utopia e oportunidade para exercitar a coragem epistemológica para (Re)construir e disputar a concepção de Direitos Humanos; ampliar olhares e aprender novas metodologias e diálogos sociais; construir uma prática acadêmica horizontalizada com centralidade no reconhecimento e respeito às sensibilidades múltiplas, inclusive dos discentes; romper a centralidade colonial na produção acadêmica; avançar nos diálogos e construções coletivas Latino americanas e perceber novas formas e olhares do fazer e viver dos Direitos Humanos; refletir e romper, enquanto academia, com práticas coloniais que provocam racismo, sexismo, homofobia, exclusões geracionais dentro da academia; romper, em suma, com o deslocamento e polarização da condição do sujeito em “Mundo acadêmico”, gélido, ahistórico, impessoal, neutro, e, em “Mundo pessoal”, do sensível, do afeto, das cores, dos toques. Porque a cisão desses mundos promove, na verdade, espaços que produzem sofrimento, exclusão e racismo (Mundo acadêmico) e espaço que se vivencia solitariamente a dor, a raiva e a indignação (Mundo pessoal), cf. RAMOS, Luciana. Tribunal de Inquisição na Modernidade, op. cit.).

           A Dissertação de Clara Adad, atenta a esses deslocamentos sensíveis, remete ao que se pode caracterizar como registro de uma experiência emancipatória. Lyra Filho refere-se a esse exercício de emancipação,  compreendendo neste sentido e, por esta razão, que o Direito não pode ser tido como mera restrição, senão, tal como ele o entendia, enquanto “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.

           E o que será, pois, neste processo, entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade? É perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho,  que “o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito)” [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].

           Nesse eixo teórico insere-se o trabalho de Clara Adad, sociologicamente sensível ao reconhecimento das “novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades” e filosoficamente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito coletivo emergente deste processo. Não é pequena essa contribuição, vale a pena a leitura de sua Dissertação enquanto ela não se transforma em livro.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

 

 

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