Coluna Instante Jurídico
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Black Mirror
Pre-scriptum I: O texto a seguir apresenta pequenos spoilers sobre a série Black Mirror.
Pre-scriptum II: As reflexões que fazem parte deste texto foram elaboradas a partir da análise de uma obra de ficção. Eventuais críticas não foram dirigidas a pessoas específicas. Qualquer semelhança com pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
A coluna de hoje foge um pouco de sua proposta inicial. Em verdade, a inspiração que deu origem às próximas linhas é fruto das discussões realizadas com o professor André Karam Trindade, em uma de suas aulas no Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Guanambi, situada no interior da Bahia.
Na referida ocasião, eu e outros ouvintes fomos sugestionados a assistir uma série britânica cujo argumento gira em torno do uso excessivo das tecnologias em cenários distópicos preenchidos por temas relacionados com a nossa cotidianidade.
A esse respeito, devo acrescentar que nunca fui simpatizante de produções televisivas realizadas além do Atlântico, entretanto, lembrei-me que a positividade de algumas experiências só ocorre se você está receptivo; então foi, a partir daí, que resolvi assistir Black Mirror.
O simbolismo por trás da série
Através de uma rápida pesquisa na internet, descobri que embora essa obra prima da TV tenha estreado na terra da rainha no ano de 2011, somente agora ela começou a se popularizar no Brasil. Digo isso porque, apesar de serem muitos os sites que noticiam detalhes sobre o seu conteúdo, poucos são aqueles que o analisam com a devida profundidade.
Seguindo a fórmula de um antigo programa de televisão estadunidense conhecido no país como Além da Imaginação – onde cada episódio apresenta um conto fechado sem qualquer ligação direta com o seu antecessor –, Black Mirror explora, de forma bastante inteligente, temas como: arte, terrorismo, entretenimento, aprisionamento, luto, escolhas, voyeurismo, política, religião, punição, etc.
Em verdade, a série é uma produção perturbadoramente simbólica, sobretudo se pensarmos no nosso momento atual como sociedade.
Mas, falemos apenas de um episódio.
O nosso “Waldo” de cada dia
Costuma ser assim: em ano de corrida eleitoral, deparamo-nos com um contingente de novos candidatos, alguns, inclusive, bastante curiosos. Falo, aqui, dos chamados “políticos-personagem”.
Como é de conhecimento geral, esse nicho da política é formado, muita das vezes, por atores, cantores, humoristas, atletas ou sub-celebridades que, diante da proeminência dada pela mídia, se transformam, aos olhos do grande público, na esperança de cidades, estados ou mesmo de toda uma nação.
Não por acaso, afinal, em tempos de Lava Jato, já não tem sido difícil encontrar eleitores desapontados sinalizando que irão votar em tais personalidades como forma de protesto, quando não, em branco ou até mesmo nulo.
Tal realidade já não é uma surpresa, tanto, que foi retratada no episódio The Waldo Moment.
Na série, Waldo é um mascote virtual de um programa de TV, cuja personalidade sarcástica cativa os telespectadores. Em busca de audiência, o diretor do programa envolve o personagem em situações polêmicas, principalmente, quando resolve lançá-lo como candidato a um cargo público.
De uma forma inesperada, Waldo se torna um importante representante das insatisfações dos cidadãos de seu país. Ao perceber a influência exercida pelo personagem na formação da opinião pública, um de seus criadores decide voltar atrás e acabar com aquela nova situação, entretanto, isso não se mostra mais possível, dado a popularidade adquirida pela criatura.
Nesse sentido, Waldo se torna mais do que um personagem; ele passa, assim, a ser visto como um verdadeiro representante capaz de mudar a situação do país.
Uma pausa para a reflexão
Ao final do referido episódio, é natural que perguntemos coisas como: qual seria mesmo o DNA da nossa atual Democracia? Como se questiona a legitimidade de algumas candidaturas? Seria exigindo que o candidato faça testes para provar que sabe ler e escrever? Ou será que deveríamos investigá-lo à exaustão?
Penso que às vezes estamos tão inebriados pelo entretenimento que essas coisas nos proporcionam, que acabamos esquecendo a substancialidade dos atos. O que é curioso, é notar que, nessas horas, ao tempo em que “político-personagem” não existe, ele se faz real, e se me permitem dizer, costuma ser maior do que todos os adversários.
Eis um dos dilemas de uma Modernidade Líquida[1]. A volatilidade das relações faz com que abandonemos a fixidez de épocas anteriores par dar espaço à lógica do agora, do gozo e da artificialidade.
E isso nos leva ao busílis da questão. No Brasil, o senso moral acende uma luz amarela todas as vezes em que alguém passa a exercer o poder de forma dúbia.
Nos termos aqui trabalhados, esse comportamento consequencialista não seria um tanto quanto contraditório? Digo isso porque parcela considerável do eleitorado sabe que alguns dos candidatos ditos “personagens” não oferecem política, mas, apenas, entretenimento – seja dentro ou fora do espaço público.
Como é possível perceber, além das esperadas críticas ao sistema político atual, a série se permite ir mais além. Através de um olhar mais atento, vemos o quanto ela foca na figura do eleitor, isto é, de como o fenômeno da identificação transforma cidadãos conscientes em meros coadjuvantes do processo eleitoral.
E o que isso nos ensina? Se observarmos bem, duas coisas: a primeira, de que a adoração irracional de ídolos impulsionados pela mídia pode, eventualmente, significar um risco para o futuro; a segunda, de que uma população que não sabe escolher os seus representantes está fadada a continuar com os mesmos problemas do passado.
Eis algumas das razões pela qual a série assume relevância.
O restante deve ser perscrutado pelos próprios leitores.