Bases para o futuro de Porto Alegre

Porto Alegre

Se queres prever o futuro, estuda o passado.

Confúcio

A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás;

mas só pode ser vivida, olhando-se para frente.

Soren Kierkegaard

 

Os ideais de futuro

A passagem do aniversário de Porto Alegre é uma oportunidade para refletir sobre as bases para o futuro da capital. Em “Mundos Possíveis”, artigo que abre a coletânea “O futuro não é mais o que era” (Edições Sesc, 2013), Adauto Novaes coloca a questão de como um mundo em transformação termina por transformar seu próprio espírito, com isto querendo referir-se ao fato de que as transformações técnico-científicas do mundo moderno transformaram não apenas os costumes, a ética, as mentalidades, mas todas as dimensões da vida e nela o autor inclui-se a política.

Novaes cita Santo Agostinho e os estóicos para quem o tempo é um enigma vertiginoso, e, se sua definição de tempo vale para a política, isto significa que a “política do passado não existe mais e a do futuro, ainda não nasceu”.

Para Novaes, a saída deste dilema encontra-se na filosofia de Paul Valery para quem “o que não existe mais está no coração do que existe”: nesse sentido, as coisas vagas e os ideais de futuro, como Novaes lembra de Montesquieu nas Cartas Persas, fazem parte da estrutura de nossas sociedades. Mas ao contrário do que afirma Novaes, não é somente o desenvolvimento tecnocientífico que produzem os fatos da vida mas também a política. Mas enquanto que os autores selecionados por Novaes nos trazem uma visão sombria sobre o futuro, como é o caso de Heidegger e Wittgenstein,  Hannah Arendt, em seu “O que é a politica”, defendeu uma visão otimista com grande entusiasmo.

Para Arendt, a política” trata da convivência entre os diferentes”: para a autora, o que é importante é que a “política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas”. Nesse sentido, desde suas origens, a política da capital também esteve envolvida na organização da diversidade social da cidade: dos homens bons dos primórdios de sua organização a seus atuais 36 vereadores, o que temos na política da cidade é esta caminhada em direção a igualdade relativa de representação.

 

A política local

Cada vez mais, mas não sem problemas, a diversidade social da cidade emergiu no legislativo. Se nas origens tínhamos um legislativo identificado apenas a uma classe social, a elite, no presente,  a câmara municipal possui os mais diferentes representantes de distintos grupos sociais.

Entre os maiores investimentos para 2016 estão as obras de mobilidade (R$ 128 milhões). (Foto: Reprodução)

Novaes lembra que, nos autores que refletiram sobre o futuro, é constante a ideia de que o reinventamos sem cessar. Mas a invenção política se torna um problema quando o cidadão tem medo: Novaes lembra que, para Paul Valery, a célebre frase “nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, enunciava o fim da civilização ocidental e revelava o pressentimento de que tanta tecnologia era capaz de matar a humanidade. Da mesma forma, não é o que acontece com a política local atual, quer dizer, quando vemos a política local se transformar em pano de fundo das questões nacionais, com sua polarização e agudização de conflitos entre direita e esquerda?

Por isso, ensina a filosofia, se queremos saber do futuro da politica local,  é preciso se perguntar que política, que lideranças, que projetos de governo e instituições estão sendo palco da experiência política hoje das novas gerações. O que Valery pressentia para seu tempo, podemos pressentir para o nosso. Não é o que acontece quando hoje os cidadãos de Porto Alegre vão às ruas divididos, seguindo os movimentos nacionais em torno do destino do governo federal, onde a emoção toma o lugar dos argumentos?

Nesse mundo, a política deixa de ser uma instituição libertadora para se transformar no seu contrário.

Nossos problemas políticos não são diferentes dos problemas apontados por Novaes do pós-guerra: persiste em nossa cultura política local o fim da faculdade de trocar experiências. O espaço político que o parlamento local representa é o espaço da troca de experiências, de argumentos, da construção de políticas públicas locais. A inclusão de novos atores sociais foi feita pelo legislativo por sua participação nas comissões permanentes, audiências públicas e outros espaços de participação.

Mas observando a experiência política das ruas, a crescente polarização social, vemos reforçada a passagem retomada por Novaes do ensaio O Narrador, capitulo de Magia e Técnica, Arte e Política, de Walter Benjamin (Editora Brasiliense):

“Salta aos olhos: o valor da experiência caiu de cotação. E parece que a queda contínua indefinidamente. Basta abrir o jornal para constatar que, desde a véspera, uma nova queda foi registrada, não apenas a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo moral sofreram transformações que jamais pensamos serem possíveis”.

Benjamim está se referindo a vida do mundo do pós-guerra, que evoluiu para a ameaça de conflito atômico. Para Benjamin, esta conclusão  vem da constatação de que depois do conflito, contar uma história, isto é, trocar experiências, foi uma faculdade que se reduziu. Naquela época, queria-se esquecer a tragédia da guerra. Se, assegura Novaes, não ter filosofia era a filosofia que convinha ao tempo de Benjamim,  não ter politica é a que convém ao nosso?

A rejeição a política, por esta razão, é uma forma de alienação. Do que estamos falando? Da destruição da experiência política atual, que vemos nas ruas, da rejeição das instituições políticas, da repercussão da crise política que afeta a cidade de Porto Alegre, da experiência da catástrofe vista no cotidiano da capital.

Uma olhada nas redes sociais de Porto Alegre é particularmente instrutiva: diante das grandes questões da vida política que repercutem na vida do portoalegrense, a esmagadora maioria da população se recursa a discutir baseado em argumentos e prefere a experiência da vida coletiva emocional, a da passeata como festa entre iguais e o registro propiciado pelas máquinas fotográficas do que ter a experiência do debate com base em argumentos.  Nesse sentido, a política como experiência de debate é substituída pela experiência confusional, como define o sociólogo Michel Mafessoli, emergência da polarização política como novo tribalismo local. Não é por esta razão que, recentemente, aconteceu mais um conflito físico entre partidários de direita e esquerda no bar Odeon, um dos mais tradicionais do centro da capital?

Para refletir sobre o futuro da política local, é preciso questionar que tipo de experiências políticas os cidadãos estão experimentando neste instante.

Os movimentos políticos recentes transformaram a vida dos cidadãos porto alegrenses, ou ao menos, daqueles envolvidos e dispostos a ir às ruas para fazer política, o que não é a maioria da população. Sua rotina foi alterada de forma acelerada, os cidadãos tomaram as ruas transformando o seu presente em imediato.

No mesmo  dia, enquanto uma mesa redonda discute o futuro da cidade, outra, na Faculdade de Educação, reúne intelectuais para discutir os rumos da política nacional e a defesa do estado de direito. Mais tarde, mais uma manifestação de intelectuais está convocada para o Largo da Epatur. Estas ações significam que somos capazes de fazer em poucos meses ou horas aquilo que levávamos décadas, nos posicionarmos frente a uma agenda pública.  Mas ao mesmo tempo, diz Novaes, o homem vive muito pouco seu próprio tempo.

O portoalegrense vive naquilo que seus antepassados, desde os colonos açorianos, viveram e não apenas naquilo que eles deixaram, o espaço urbano.  Essa ideia de alma da cidade, o sentimento de que para ser feliz na capital é preciso assumir a herança, a tradição, as perdas, as esperanças, os erros, e as vitórias deste povo, é, segundo Novaes, o que se perde com a aceleração da história, quando os acontecimentos se sucedem sem que se possa refletir sobre eles.

 

Jorge BarcelosJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.
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