Bases para a construção do Memorial do Orçamento Participativo (1ª parte)

Coluna Democracia e Política

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Foto: Josh Wilburne/Unplash

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Introdução

Andreias Huyssein, no capitulo “Escapar de la amnesia: los museus como medio de masas”, da obra Em busca del futuro perdido: cultura y memoria em tempos de globalizacion (Buenos Aires, FCE, 2007) assinala que os museus são desde a Revolução Francesa catalizadores da articulação entre tradição e nação, herança e cânone, sendo instrumentos fundamentais da identidade de processos, instituições e nações. Segundo o autor, os museus – estamos aqui adotando, para efeitos didáticos, como sinônimos, quando não o são, como já demonstramos em nosso artigo “O memorial no sistema de museus” – sofreram uma grande expansão a partir dos anos 80, caracterizando uma museomania implacável, assumindo inúmeros papeis que vão de museus para a conservação de uma cultura elitista à meio de massas, com notáveis efeitos sobre as políticas de exibição e contemplação que afetaram os objetivos e bases sobre as quais se fez a oferta museológica.

Hoje os museus inseriram-se no contexto capitalista avançado: a dicotomia entre acervo e exposição foi substituída pelo caráter transnacional dos acervos, o objeto foi sendo substituído por vídeos e são apresentados para consumo catálogos suntuosos para o cidadão. Em diferentes níveis, a museologização caminha para a entrada de ferramentas de consumo nos espaços museológicos, modificando as relações do cidadão/aluno/consumidor com acervos/histórias/objetos. Porque isso é assim? Porque na era da civilização de massa, as práticas de museus tendem a atender as expectativas de seu público, que cada vez mais buscam experiências sensíveis e macroexposições. Para Huyssein, em que pese a “modernização” dos museus, fica ainda uma questão: ”como explicar esse êxito do passado museografado em uma época em que tantas vezes é acusada de perda do sentido da história, de memória deficiente, de amnésia geral? ”  Esta comunicação quer apresentar, por esta razão, as bases para uma proposta de Memorial do Orçamento Participativo neste sentido, bastante tradicional: um projeto que tenha como espelho seu próprio objeto, que seja ele próprio, construído pela participação dos atores e o que isto exige ou implica.

1. Porque um Memorial do Orçamento Participativo agora?

Para pensar o porquê da constituição do Memorial do Orçamento Participativo (MOP), é preciso ter em conta três pontos principais. O primeiro é a existência da proposta de sua criação em tramitação na Câmara Municipal; o segundo são os antecedentes da esquerda na preservação de sua memória e o terceiro é a própria situação do OP na atualidade.

1.1 A iniciativa do vereador Cassio Trogildo

Quanto ao primeiro aspecto, é preciso lembrar que desde 2014, o vereador Cassio Trogildo vem propondo esforços para a valorização da memória do OP na capital. É de sua autoria a sugestão de criação ao Prefeito do Memorial do Orçamento Participativo através da Indicação 64, de 8 de dezembro de 2014.  Aprovada em 15 de junho de 2015, a indicação tomava como base o art. 96 do Regimento Interno do Legislativo, que faculta ao legislador sugerir ações e medidas do interesse da cidade. Trogildo propôs com justiça o termo de criação do Memorial ao Prefeito e ofereceu inclusive o modelo de projeto de Lei, pois considerou que esta era, em primeiro lugar, uma iniciativa do Poder Executivo. Oficializada a Indicação pelo Casa em 16 de junho de 2015, pelo então vereador Presidente Mauro Pinheiro, a mesmo não obteve resposta.

No ano seguinte, Cassio Trogildo protocolou o PLL 281/16, retomando por sua livre iniciativa, já que não obtivera sucesso na sugestão anterior. Em sua exposição de motivos, Trogildo salienta a importância da proposta: ”O processo do OP iniciou em 1989, com a Cidade dividida em quatro Regiões com um efetivo de 630 participantes nas Assembleias Regionais. Ainda nos primeiros anos, o processo já se estabeleceu nas dezesseis Regiões da Cidade e, em 1994, foram criados os Fóruns Temáticos. No momento atual, o OP conta com dezessete Fóruns Regionais e seis Fóruns Temáticos e é orientado pelo seu Regimento, instrumento que determina as regras que regulamentam a atuação do governo e da sociedade civil. ”

Para Trogildo, a importância do OP é o fato de que a partir dele “a participação da sociedade adquiriu novos contornos. ” A novidade está em que, segundo o vereador, “a sociedade civil organizada e a administração pública passaram a compartilhar as decisões orçamentárias”. Para Trogildo, o OP tornou-se referência nacional e internacional selecionada inclusive pelas Nações Unidas (ONU) como uma das “quarenta melhores experiências de gestão local para a Conferência Habitat II (Istambul, 1995)

Foto: ONU

Foto: ONU

Seu projeto de lei que Cria o Memorial do Orçamento Participativo no Município de Porto Alegre é composto por três artigos principais. Pelo Art. 1º é criado o Memorial do OP em Porto Alegre e pelo Art. 2º é discriminado seu objetivo, onde se lê que “O Memorial do Orçamento Participativo reunirá documentação histórica, vídeos, áudios e artes plásticas referentes ao Orçamento Participativo no Município de Porto Alegre”, disponibilizado, segundo o parágrafo único do mesmo artigo, para estudos e pesquisas. O artigo 3º discrimina que a Coordenação do OP é responsável pela definição do lugar onde funcionará o respectivo Memorial.

A Procuradoria da Câmara, através do Parecer Nº 35/17, apesar de reconhecer o papel do legislativo para legislar sobre assuntos de interesse local nos termos do Art. 30, inciso I, da Constituição Federal, o que é reforçado pelo Art. 193 da Lei Orgânica Municipal, no que se refere ao estimulo e valorização das manifestações culturais, sugere que “há previsão legal para atuação do legislador municipal no âmbito da matéria objeto da proposição” mas, no entanto, faz uma ressalva, pela qual descobrimos porque primeiro Trogildo optou por uma Indicação: ”Contudo, a mesma tem conteúdo normativo que implica interferência na gestão do Município, incidindo, com a devida vênia, em violação aos preceitos dos incisos IV e XII do artigo 94 da Lei Orgânica, que deferem competência privativa ao Chefe do Poder Executivo realizá-la.” Trogildo não se intimidou com o Parecer e encaminhou o seu projeto.

1.2. A luta pela preservação da memória de esquerda

O segundo aspecto é relativo as iniciativas de preservação da memória de instituições feita pela esquerda. Não é a primeira vez que a esquerda busca preservar a memória de suas instituições. Em 2011, matéria do site da CUT/RS regista que no dia 9 de maio entidades assinaram em Porto Alegre o Protocolo de Intenções para a criação do Memorial do Fórum Social Mundial. O fato aconteceu no Memorial do Rio Grande do Sul e estiveram presentes o então governador do Estado, Tarso Genro; o sociólogo Boaventura dos Santos; o secretário de Cultura do RS, Luiz Antônio de Assis Brasil; o presidente da CUT-RS, Celso Woyciechowski; o representante da ABONG, Mauri Cruz e o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati. Na época, eram usados os mesmos argumentos que hoje fundamentam a criação do Memorial do Orçamento Participativo: sua importância histórica, o papel de Porto Alegre na sua consolidação, a necessidade para o fortalecimento da democracia.  O próprio Orçamento Participativo é tomado como referência quando, na oportunidade, afirma Tarso Genro” “Nossa capital já era conhecida pelo Orçamento Participativo e ainda assim, durante a realização da primeira edição do Fórum. O projeto, que seria implantado no Memorial do Rio Grande do Sul.

Outra investida da esquerda em memorial similar a proposta de Memorial do Orçamento Participativo foi o Memorial da Democracia lançado pelo Instituto Lula em 1º de setembro de 2015. Então coordenado pelo jornalista Franklin Martins, é um museu virtual com o objetivo de “resgate da memória das lutas de nosso povo pela democracia, pela igualdade e pela justiça social.”  Na apresentação, o Instituto Lula afirma que discutiu a possibilidade de construir um museu físico, mas optou pelo virtual porque “graças à internet, ele pode ser visitado por um número muito maior de pessoas, de todos os Estados e regiões do Brasil, estejam elas onde estiverem – em casa, nas escolas, nos locais de trabalho, nos sindicatos, no trânsito ou nas ruas. É um museu que vai até você. E que você pode visitar na hora que bem entender”, sintetizam seus organizadores.  Ele em realidade, reúne tudo que há num museu real “proposta multimídia, oferecendo aos visitantes textos, fotos, charges, desenhos, cartazes, panfletos e documentos, reproduções de notícias da imprensa, exemplares virtuais de jornais, áudios com trechos de canções e discursos, segmentos de filmes e vídeos etc. No caso dos extras, a linguagem é intencionalmente mais leve e lúdica, buscando dialogar com o público jovem.” Observando-se a forma como os módulos foram organizados, constata-se que obedece a uma periodização tradicional focada na história das lutas dos movimentos populares.

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

1.3 A incerteza em relação ao futuro do OP na capital

A terceira situação envolve a situação do OP neste momento. Na proposta de candidatura do então candidato do PSDB Nelson Marchezan Jr, disponível em https://glo.bo/2pUv6dn, onde em 16 páginas, o candidato enumera, entre os conceitos de seu programa o de valorização da “participação”: “um direito de todo o cidadão, que será estimulado a participar das decisões públicas, ser ouvido, e ter sua opinião respeitada pela administração pública. Serão mantidos todos os mecanismos de participação como o Orçamento Participativo, e outros serão aperfeiçoados e criados, aproveitando as tecnologias de informação do século XXI”. Curiosamente, no mês de março, no Seminário sobre o Orçamento Participativo promovido pela Prefeitura, Nelson Marchezan Jr anunciou a suspensão por dois anos das assembleias que encaminham demandas da população (ZH,3/4/2017). A matéria anota a avaliação do Cientista Político Alfredo Gugliano:

“Do ponto de vista político, inclusive desde a ótica do marketing político da cidade, seu significado é enorme. Por exemplo, quando em Paris se cria um orçamento participativo, o nome da capital gaúcha é mencionado. O mesmo ocorre em Nova York, também em Barcelona e em várias outras cidades em nível internacional. Esse é um patrimônio político tão significativo que chega a ser impossível de medir”.

A resposta do Prefeito, no dia seguinte, foi, no entanto, inconclusiva: perguntado pelo jornalista Marcelo Gonzato se, quando a Prefeitura estiver melhor de recursos, o OP retornará, o Prefeito afirma que não irá extinguir o Orçamento Participativo, mas ao mesmo tempo seu futuro é duvidoso pois sua fala é sempre marcado por um “talvez”:

“Sim. O Orçamento Participativo é isso. Talvez a gente qualifique a demanda, talvez amplie a participação. Talvez trabalhe mais no planejamento da região. Talvez as demandas prioritárias daqui a um, dois anos sejam demandas padrões da prefeitura e nem precisem mais entrar no Orçamento Participativo, e o OP possa discutir questões mais estruturantes da cidade. Vai ser uma grande oportunidade de conversar sobre o OP.”

Os três pontos são importantes porque convergem para a importância da criação do Memorial do OP. Primeiro, porque há uma iniciativa que merece ser aprofundada; segundo, porque a preservação da memória de instituições do movimento social organizado é uma prerrogativa do movimento de esquerda e terceiro, porque a necessidade da preservação da memória do OP é uma exigência da agenda política deste momento, em que há dúvidas na sociedade sobre sua continuidade.

2. Como fazer um Memorial do OP agora?

2.1 O memorial do OP como discurso da experiência popular

O objeto de um memorial ou museu define-se por seu objeto. Qual é o objeto de um Memorial do OP? Os objetos que acompanharam os representantes? A produção literária de pesquisadores? O conjunto das demandas das Assembleias? Entendo que o objeto do Memorial do OP é a sua experiência. Aqui, experiência é o discurso de uma comunidade transformada em objeto de museologia. Senão vejamos.

Foto: camarapoa.rs.gov.br

Foto: camarapoa.rs.gov.br

É correta a justificativa de Cassio Trogildo, mas ela não é suficiente. Não é porque o OP surgiu com mais de seiscentos integrantes e evolui em Fóruns Temáticos, o que denota o envolvimento da comunidade que o torna importante. O que para mim torna o OP objeto de um Memorial é o de constituir-se em um vetor sobre o qual se depositou na capital os discursos sobre valorização da democracia e participação, que, ao contrário dos discursos sobre direitos humanos que ganharam força já nos anos 80, somente nos anos 2000 se constituíram como um discurso apropriado pelos movimentos sociais. Mas estaria o discurso sobre democracia e participação disputando na capital o campo do discurso dos direitos humanos? Ambos começaram a trilhar o terrível caminho da utopia em direção ao mundo real, condenados pela ascensão de movimentos de direita que valorizam o capital mais do que as demandas sociais, as formas de exploração e produção de desigualdades produtos da globalização, estruturas que compelem a humanidade a um futuro sem direitos, sem democracia, sem participação e sem ilusões? Como o movimento dos direitos humanos, o movimento democrático e popular que o OP representa esteve por muito tempo voltado para uma perspectiva de metas futuras. Ambos, ainda que sejam práticas recentes, tem uma história antiga que inicia nos gregos, passando pelas Revoluções Francesa e Norte-americana cuja característica principal é serem o elo de ligação entre Estado e nação, Cidadania e participação, base dos Estados Nacionais.

A experiência popular se inscreve na memória dos movimentos sociais. Ela é, numa palavra, ato pedagógico. Ao vivenciarem situações de democracia participativa, os cidadãos aprendem como funciona a participação popular…participando. Por esta razão não é fácil responder porque o Orçamento Participativo relaciona-se com memória. Podemos valorizar em diversos níveis de memória o Orçamento Participativo. Primeiro, a memória da experiência da participação que alimenta o futuro da democracia participativa, discurso alimentado por analistas das ciências humanas e por um lado, a prática da militância, dos atores políticos. Se a história do OP é o efeito de suas Assembleias e demandas, a memória do OP surge na experiência da participação, da vivência das Assembleias, o que é exatamente o que está em jogo no exato momento em que se aponta o encerramento de reuniões, esse gesto é o da sua desaparição, de sua morte, a tentativa de reduzir seu espaço de reuniões é uma forma de morte promovida pela administração.

Nesse sentido, ao contrário de um Memorial vivo, a proposta atual nasce como um discurso do trauma que a ruptura, no caso, a interrupção das suas assembleias provoca.  Mas é uma boa base para o nascimento de um Memorial do OP ele constituir uma estratégia de sobrevivência somente? Acreditamos que não, ao contrário, para ser um Memorial do OP com futuro, ele deve se servir, deve ter em sua base o embasamento histórico, pois o universalismo da participação, como a filosofia dos direitos humanos é “tanto é um problema quanto uma promessa”, como afirma Andreas Huyssen. Isso significa que a participação é um problema para os governos porque tem um custo, é verdade, mas ele vale apena porque é uma promessa de realização, de prática democrática de um Prefeito, como o próprio defendeu em seu Plano de Governo. Foi o que ocorreu com a doutrina dos direitos humanos: não é o seu alto custo o responsável porque ainda não sejam atingidos na realidade?

Por isso vale para o Memorial do Orçamento Participativo o mesmo apontamento de Huyssen para os direitos humanos: precisamos reconhecer os pontos fortes e fracos do discurso do Orçamento Participativo como discurso da memória. Transformar o OP em fato de memória significa afirma que ambos se interessam pela proteção da democracia participativa e que ambos se recorrem da história para fazê-lo. Ambos querem também, como afirma Huyssen, “corrigir erros do passado e imaginam um futuro melhor para o mundo”. Não é exatamente isto que deve mover a criação de um Memorial do OP? De que é preciso reconhecer que “o OP foi uma grande ideia, uma grande prática, etc., mas vamos reconhecer, teve problemas, distanciou-se do original”. Ambos discursos nasceram da defesa da democracia e como inúmeros outros processos, também são resultado do uso político da memória, pois o legado de uma tradição de participação é peça importante na moldagem da história da cidade, foram necessários vários anos para que o OP se consolidasse na capital.

Andreas Huyssen Imagem: Youtube

Andreas Huyssen
Imagem: Youtube

2.2. O discurso da memória do OP como discurso de seus atores

Muitos estudos já foram realizados sobre o OP mas poucos foram construídos tomando a sua memória como eixo. Ainda que seja retratados momentos a história do OP em vários estudos, a intimidade do laço entre memória e OP não foi explorada: como a memória é a outra face da experiência subjetiva do movimento? Quer dizer, para o memorial do OP representar uma nova fase histórica no desenvolvimento dos discursos de memória, que se segue ao discurso da memória da democracia, discurso da memória dos direitos humanos, discurso da memória da tolerância, é preciso saber o que contém o discurso da memória da democracia participativa. Afirma Huyssen em sua obra Culturas do Passado Presente (Rio de Janeiro, Contraponto, 2016):

” a necessidade de analisar os discursos contemporâneos da memória não como uma segunda natureza, mas como construções complexamente sobre determinadas, geradas por constelações politicas especificas do final do século XX, as quais resultaram do fim das ditaduras na América Latina, da queda do Muro de Berlim, do colapso da União Soviética, do Fim do apartheid na África do Sul e dos massacres genocidas da Bósnia e Ruanda” (p. 197).

Para Huyssen é fundamental tornar explícitos a contextualização histórica de um discurso da memória porque o discurso da memória do OP é um discurso recente e o próprio discurso sobre o seu objeto é merecedor de sua preservação. Podemos ver um discurso entusiasta, necessariamente positivo de seus atores em contraposição a um discurso negativo, de decadência, pronunciado por seus críticos. Que ator discursivo vai ter o privilégio de ter sua fala como condutora da narrativa do Memorial do OP? Vamos basear o conteúdo deste memorial numa linha de tempo que descreva a série de demandas reunidas ao longo do tempo das Assembleias ou da relação do OP com a Prefeitura e a Câmara? O que vamos buscar e onde a base sobre a qual se construirá a sua narrativa? É esta a questão essencial para Huyssein. A resposta é que vamos buscar onde está, na experiência subjetiva de seus integrantes, de seus atores, de seus conselheiros, e exatamente por isso ser o mais difícil é que evidenciar as características da experiência de participação popular é que são, na minha opinião, o foco do trabalho do Memorial do OP porque permite seu significado pedagógico, estratégico e de luta pela mobilização social.

Então, a questão posta em primeiro lugar não é que tipo de acervo vai compor o Memorial do OP, é ao contrário, propor a criação do Memorial do OP como lugar de uma experiência. Mas o que é exatamente que fazemos quando colocamos o problema da experiência de participação popular como acervo, como objeto do Memorial do OP?  Queremos dizer que o MOP tem em primeiro lugar, como objeto a memória do OP como efeito da participação: você pode investigar como atores foram engajados  nesse movimento, como comunidades fizeram-se ouvir, como determinados conteúdos de democracia participativa foram incorporados por lideranças mas também o seu contrário, como atores foram deixados de lado, como comunidades tiveram problemas para se fazer ouvir, como conteúdo de democracia participativa não foram incorporados pelas novas gerações.

O ponto que julgo essencial em um Memorial do OP é demonstrar, através de relatos, como ele desempenha um papel chave na experiência política de uma geração, como ele foi e é uma espécie de vetor pedagógico, de aprendizado de lideranças, que aprenderam a fazer política através de sua participação no OP.

Imagem: Pixabay

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2.3. Recursos de museus a serviço da experiência

Trazer a público a história da experiência de participação popular exige elementos didáticos. É comum, entre os museus, a adoção de linhas de tempo feitas por pesquisadores. É comum a seleção de objetos e o estabelecimento de projetos educativos. Tudo se resume no problema da curadoria do Museu. Mas o Memorial do OP coloca um problema a mais: quem deve ser o curador de um memorial do OP? Quem deve fazer seu projeto? Pesquisadores universitários que estudaram com profundidade o tema em suas dissertações de mestrado e doutorado?  Técnicos que estiveram envolvidos em sua organização ao longo de 25 anos? Ou os próprios delegados do OP, tese aqui defendida, elevados a condição de curadores? A curadoria, como se sabe, é uma disciplina difícil que sobrevive à custa de uma reserva de mercado: ela sobrevive de afirmar quem pode e quem não pode ser o responsável por um discurso museológico.

Há, por outro lado, uma série de regulamentos do OP e suas demandas que são importantes no desenvolvimento desta linha de tempo. Ela é afetada pela participação dos representantes, pelas mudanças do governo, como a que ocorreu em 2004, com a passagem do governo municipal do PT para o governo do PMDB, e, como já apontam pesquisadores, significou uma mudança importante para a memória do movimento. A questão retorna: quem está mais habilitado em narrar esta história? Minha opção é pelos trabalhadores, reunidos em grupos de trabalho e com a participação de pesquisadores e técnicos. Quer dizer, se o OP é uma ação coletiva, o seu Memorial também deve sê-lo.

É claro que nesta etapa está em jogo a apropriação de um discurso por um agente de poder. Desde o início do governo José Fogaça são apontadas mudanças no perfil e no desenvolvimento do OP. Regra geral, estas mudanças foram justificadas pelo governo no poder como necessidades de adequações e intervenções não autoritárias. Segundo seus críticos, o efeito foi levar a uma redução do papel do OP no governo e para seus membros.  Para o Memorial do OP, é importante fazer a distinção entre a sua ideia original e sua prática, porque o que está em jogo são as transformações em uma experiência de participação popular por um lado, e as interferências e relações governamentais por outro. De fato, desde o início, o OP colocou em xeque a representação dos cidadãos na capital, daí que, como assinala Marcia Ribeiro Dias em Sob o signo da vontade popular: o orçamento participativo e do dilema da Câmara de Vereadores, é sempre o problema da participação que se coloca e o poder legislativo, de fato, correu sério risco, viu nascer a ideia de que não era o único porta voz da vontade popular. Numa época em que o político está em queda, isso não era bom.

Na situação atual, é consenso dos observadores que as características originais do OP sofreram um processo de corrosão. Misturaram-se em graus diferentes, identidade ao OP, necessidade de organização, apropriação e crise financeira. Considerando em conjunto, o OP não é o que uma vez foi, forma um aglomerado heterogêneo de práticas de participação. Ao tratar esta experiência, em suas idas e vindas, não devemos permitir que emerja a “saudade de um tempo que se foi” como a base da construção do memorial do OP, porque esta atitude cega ao potencial de internacionalização que mostrou ter o movimento nas lutas sociais. (Continua)

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Primeira parte do conteúdo da palestra “Um projeto para o Memorial do Orçamento Participativo: bases para uma construção…participativa”, ministrado no 1º Seminário do Orçamento Participativo, organizado pelo Vereador Adeli Sell no Plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre no dia 19 de maio de 2017.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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