Artigo veiculado na 47ª edição do Jornal Estado de Direito
Quando estudei Processo Penal na graduação, e lá se vão aproximadamente vinte anos, era correto afirmar que a matéria permanecia quase que relegada ao ostracismo. Apesar do empenho dos professores, era inviável ministrar conteúdo tão extenso e complexo nos míseros dois semestres então destinados ao seu estudo. Era constrangedora a comparação com a carga horária do Processo Civil. Isso sem mencionar o material de apoio. Aqui e acolá alguns trabalhos de fôlego, mas em geral a doutrina se limitava a praticamente transcrever as regras previstas no Código. Tampouco a jurisprudência, salvo as exceções de praxe, preocupava-se com algo além da aplicação literal dos dispositivos legais. E a Constituição era algo extravagante como parâmetro normativo.
Hoje o contexto é totalmente diverso. A Constituição passou a ser enxergada como o efetivo parâmetro normativo. A jurisprudência concernente apresentou relevado impulso por obra de decisões paradigmas do Supremo Tribunal Federal. É inegável, também, a influência exercida por convenções internacionais, bem como pela doutrina internacional e por decisões proferidas por cortes alienígenas, aquelas por expressa recomendação constitucional, enquanto estas, por necessário apelo ao bom senso. Também a academia tem reservado à matéria seu devido valor. Hoje são incontáveis os estudiosos debruçados sobre os distintos institutos do Processo Penal, com intensa e profícua produção. Infelizmente ainda predominam os manuais que se limitam a repetir ou copiar, não apresentando qualquer reflexão sobre os temas apresentados, contudo, por outro lado, proliferam escritos inovadores, tratando-os com a devida profundidade e cuidado.
A propósito, e a título meramente ilustrativo, apresento dois temas que, não obstante objeto de severas divergências, configuram, em minha modesta opinião, exemplos desse inequívoco avanço do Processo Penal em direção à imprescindível exigência de respeito ao preceito da dignidade da pessoa humana e à consolidação do estado democrático de direito, em estrita atenção à Constituição Federal. Refiro-me à audiência de custódia e à chamada quebra da cadeia de custódia.
A primeira concerne à necessidade de apresentação imediata do indivíduo que é preso ao juízo competente, para apreciação da regularidade da prisão. Para além do intuito de arrefecer o estarrecedor número de encarceramentos, a medida estimula o contato direto do apreendido com o magistrado, proporcionando a este colher elementos mais concretos e próximos à realidade dos fatos e, sendo o caso, presentes os pressupostos legais, somente então deliberar pela necessidade de eventual prisão cautelar. Já se antevê inúmeros problemas de logística, em especial nas localidades onde o Poder Judiciário não está presente. De todo modo, essa é uma contingência que o estado deve superar.
A quebra da cadeia de custódia é construção albergada em julgado do Superior Tribunal de Justiça. Cuida do imprescindível dever de cautela que os órgãos de persecução devem dispor com relação aos elementos de prova, desde a coleta até o momento em que disponibilizados para apreciação pelas partes e pelo julgador. Se nesse intercurso houver alguma ocorrência que não permita o contato com a integralidade da prova, termina ela por ser considerada ilícita. Como exemplo, a interceptação telefônica cuja integralidade do conteúdo não seja apresentada, ainda que sob a alegação de que tenha havido algum problema na tecnologia encarregada da colheita. Por certo, não se dispõe ainda de delineamentos precisos acerca do modelo, mas inequivocamente é orientação da qual não se poderão furtar, doravante, os operadores jurídicos.
Haveria inúmeros outros exemplos a evidenciar o avanço do Processo Penal, em comparação ao tratamento dispensado à disciplina há alguns anos e ao que agora é preconizado, sem embargo, obviamente, das concepções ainda refratárias a essa realidade. Mesmo assim, ainda há muito caminho a percorrer. E não apenas sobrepujando as resistências que se apresentam, mas igualmente com o contínuo e complexo trabalho de aprimoramento do que foi concretizado até o momento.
Autor – juiz Gerson Godinho da Costa, Diretor ESMAFE