Assistência social e a desigualdade no Brasil

Coluna Lido para Você

 

 

 

 

Direito e Assistência Social, Organizado por Simone Aparecida Albuquerque, Karoline Ferreira Aires Olivindo, Sandra Maria Campos Alves. Brasília, DF: Fiocruz Brasília, Minstério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Série Direito e Assistência Social, 2014, 134 p.

A Desigualdade no Brasil: deve e pode ser superda? Relatório sobre a dignidade humana e a paz no Brasil 2005-2007. Elaboração do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Francisco Whitaker Ferreira). São Paulo: Olho d’Água, 2007, 160 p.

 

A pedido do Blog Justificando, e como projeto de uma leitura celebratória, escrevi um comentário sobre o Artigo 6o. da Constituição Federal de 1988: Direitos Sociais sob ameaça de retrocesso?

Fonte: Arquivo Agência Brasil

Meu ponto de referência foi tomar, no marco de 30 anos da Constituição Federal de 1988, a ressonância das manifestações que se multiplicam sobre o acontecimento, tanto mais quanto se arma na conjuntura política, um claro processo de desconstitucionalização e de desdemocratização, agudizado pelos acontecimentos pós-2016, com o afastamento da Presidenta da República e a substituição do projeto de sociedade e de governo, por uma programa econômico neo-liberal. Expus as características desse movimento  em pelo menos dois textos (Estado Democrático da Direita, in BUENO, Roberto (org). Democracia: da Crise à Ruptura. São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, p. 407-412; Resistência ao Golpe de 2016: Contra a Reforma da Previdência. In GIORGI et al. (orgs). O Golpe de 2016 e a Reforma da Previdência. Narrativas de Resistência. Bauru: Canal 6, (Projeto Editorial Práxis), 2017, p. 242-246).

Na linha de comentários celebratórios, contribui para o repertório de análises sobre os 30 anos, numa entrevista  que realça a incompletude concretizadora do projeto ainda em construção da Constituição de 1988 e as tensões que ele vivencia, nesse contexto de retirada de direitos (http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7230-a-constituicao-e-ainda-projeto-de-construcao), numa publicação do IHU-Unisinos (IHU On-Line, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 519, ano XVIII, 9/4/2018, p. 67-71): o processo em curso teve início com o afastamento da presidenta da República eleita, se faz atentado à Democracia, à Constituição e, em última análise, aos trabalhadores, com a Constituição argüida contra a própria Constituição. Ou ainda com iniciativas de reformas constitucionais e legislativas, retirando direitos, transferindo ativos e reorientando o orçamento público para transferir o financiamento de políticas sociais para subsidiar a lucratividade financeira e industrial em nítido movimento de estrangeirização O que nos impõe postura de engajamento, resistir em face de ameaças e avançar sem temer enfrentamentos, sabendo que as energias utópicas acumuladas nessa experiência podem animar o protagonismo que mobilize, nas crises, as forças emancipatórias do social.

Os direitos inscritos no art. 6o. da Constituição de 1988, resumem e traduzem o  grande programa social formulado pelos Movimentos Sociais (Populares e Sindicais).

Agora, sob ataque direto justificando.cartacapital.com.br/2016/09/12/direitos-sociais-garantidos-pela-constituicao-estao-sob-ataque-de-um-governo-ilegitimo-2/, tal como conferido pelo professor Pedro Pulzatto Peruzzo, abre-se a perspectiva de que o próprio Judiciário, que sobre esse dispositivo pouco tivesse diretamente constrangido as promessas nele contidas, ao contrário, como mostra o professor Peruzzo,  houvesse inclusive iniciado uma hermenêutica de proibição de retrocesso social, sustentando haver obstáculo constitucional à frustração e ao seu inadimplemento pelo poder público, ou em perspectiva de controle constitucional de políticas públicas, tenha afastado a dirimente da reserva do possível que  não se constitui justificativa para que o Poder Público possa se eximir das obrigações impostas pela Constituição, renda-se ao movimento neo-liberal de desconstituição desses direitos e do programa social nele investido.

Nesse ponto, em relação a este Lido para Você, mais que nunca descortina-se a preocupação já anunciada por Gomes Canotilho, acerca da multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo  e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real.  Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13) tal como se deu, por exemplo, no STF na decisão unânime em reconhecimento à constitucionalidade das cotas raciais para acesso à universidade (ADPF 186).

No arsenal dessa luta,  o social (direitos) se posiciona contra a mercadorização intensificada pelo mercado (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer,  segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados)  e se busca o acesso público contra a onda de privatização que quer avançar sobre os bens da vida. Por isso a luta é, inclusive, semântica, quando se disputa até no plano judicial, a politização da reivindicação social (ocupação da moradia, terra e território), em face da tentação criminalizadora (invasão e esbulho possessório), o que levou o STJ a decidir não poder ser considerado esbulhador aquele que ocupa terra para fazer cumprir a promessa constitucional da reforma agrária.

Finalizei meu comentário, mais uma vez, com Canotilho, na Entrevista citada, para por em relevo a necessidade de recuperar no Direito Constitucional, sobretudo no campo dos direitos sociais, o impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias políticas da justiça e pelas teorias críticas da sociedade, que o fazem definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo político. É preciso incluir, pois, no Direito Constitucional outros modos de compreender as regras jurídicas, orientadas pelas indicações de O Direito Achado na Rua, enquanto perspectiva de direitos verdadeiramente emancipatórios. (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2015).

Tenho em mente essas questões quando leio os dois livros que apresento. No primeiro, resultado de discussão proposta no I Seminário Direito e Assistência Social, realizado em 2010, o objetivo foi mobilizar os operadores do Direito com o intuito de aprofundar o conhecimento, a produção jurídica e a implementação da política pública de assistência social.

A obra oferece o produto das reflexões teóricas e críticas das ações cotidianas, tanto no âmbito da atuação institucional, como na atuação individual. Foram desenvolvidos, assim, temas como direito à assistência social na normativa internacional e no direito constitucional brasileiro; desafios para implantação das ações de assistência social e, do direito na lei ao direito na prática; compondo uma narrativa singular dos intérpretes convocados para essa discussão aguda no País.

Dividido em cinco capítulos: 1. Experiências e práticas na assistência social; 2. Sobre direito e assistência social; 3. Direito à assistência social: desafios para a sua implementação; 4. Do direito na lei ao direito na prática; 5.Sistematização e conclusões; o livro esboça um catálogo de relatos, análises, conceitos e categorias fortes na compreensão teórica e política da questão de fundo objeto da edição.

Assim, comparecem ao debate: Samuel Rodrigues (O direito como benesse); Ophir Cavalcante Junior (A união de assistência social/direito e direito/assistência social); Casimira Benge (Em defesa de uma política pública que garanta o bem estar social); Nádia Márcia Correia Campos (Consolidação do PL-SUAS); Marivaldo Pereira (Construindo novos parâmetros para se aferir a norma, a aplicação dos direitos no âmbito da assistência social); Ieda Castro (Uma visão intersetorial e ampliada de proteção social); Márcia Biondi Pinheiro (Participação da sociedade no processo de consulta pública do CNAS); Rômulo Paes de Sousa (O SUAS na proteção social); Maria Luiza Rizzotti (O direito à assistência social); Diogo Rosental Coutinho (Qual é o papel do direito e do jurista na assistência social?); Carolina Gabas Stuchi, Luis Eduardo Regules, Ana Paula Motta Costa e Márcia Helena Carvalho Lopes (Direito à assistência social: desafios para a sua implementação); Aldaiza Sposati. Alexandre Ticonello, Mário Volpe e Vicente de3 Paula Faleiros (Do direito na lei ao direito na prática); Brenice Rojas Couto e Karina Batista Sposato (Sistematização e conclusões).

Participei do seminário e me fiz presente no livro com o tema O direito à assistência social na normativa internacional e no direito constitucional brasileiro. A partir do enunciado do tema procurei fazer o enquadramento teórico-positivo do jurídico que o organiza, porém em perspectiva crítica que figure a dimensão emancipatória, como tal, formulada pela vertente de O Direito Achado na Rua, que formula o jurídico enquanto enunciação dos princípios da legítima organização social da liberdade.

Deste modo, na clausura do texto, o seu arremate é exatamente no sentido da necessária articulação entre projeto de sociedade e sua representação no plano constitucional. Tal como ali foi dito, a Constituição de 1988, dita Constituição Cidadã, inscreveu como chave de sua interpretação o significado participativo que representa construir sentidos no diálogo com o social: a categoria Assistência Social como direito, Direito Universal,  tem que ser concretizado por mediações que não podem ser redutoras. É preciso que os agentes públicos, os agentes reguladores, não façam essa leitura redutora, empobrecedora, porque as dimensões da alteridade são construídas diariamente. A cada dia são descobertas novas reivindicações de direitos no plano de um constitucionalismo fraterno – que precisam ser incluídos e não excluídos (p. 39-47).

Se na acepção de constitucionalismo fraterno pode-se avocar a categoria política fraternidade extraída do princípio esquecido desde a tríade do século XVIII (liberdade, igualdade, fraternidade) , para erigi-la à condição de chave interpretativa do Direito,  por ela pode-se chegar a designar no constitucional e no institucional, ao que se chama de reconhecimento de solidariedade. No julgamento da questão indígena sobre seus direitos à terra Raposa Serra do Sol, o relator da matéria no Supremo Tribunal Federal, Ministro Carlos Ayres Britto disse, cabalmente: os artigos tais e tais dessa Constituição são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade e a igualdade civil moral de minorias.

Por isso a atenção necessária para o que revela o segundo livro. De um lado, perscrutar o que no social compõe o índice da indignação da população brasileira diante dos atentados à dignidade humana e à paz que ocorrem em nosso país (p.9). De outra parte, identificar por meio de qualificada pesquisa a medida da percepção da desigualdade persistente na sociedade, conformando atitudes de impotência que ou naturalizam as assimetrias da estratificação social ou confirmam que a quase totalidade das ações empreendidas permanece no nível de práticas assistenciais, sem efeito estrutural significativo. Vale dizer, subordinar-se a uma injunção da política que faz parecer que a desigualdade é fator endêmico de divisão em nosso país  e não um chamado ao protagonismo das comunidades (cristãs) na luta para a superação da injusta desigualdade (p. 11).

O livro conduz a pesquisa portanto para esse sentido protagonista e por meio dele expõe o quadro da desigualdade hoje no Brasil, confrontando os dados obtidos a um conjunto de reflexões que se irresignam com o conformismo naturalizador desse fato social: a desigualdade é mesmo natural?

Quatro reflexões são propostas: 1. O ponto de vista Teológico – “A origem de todo mal está na ganância”, – Desigualdades socioeconIomicas na Bíblia, a cargo da pastora luterana Ivoni Richter Reimer (p. 93-106); 2. O ponto de vista Sociológico e Antropológico- As Ciências Sociais e a “naturalização” das desigualdades, a cargo dos acadêmicos Juracy A. M. De Almeida e Vera Lúcia V. De Almeida (p. 107-117); 3. O ponto de vista econômico e de Políticas Públicas – O “Paîs Injusto”  e sua reprodução secular: como desvendar a cultura da desigualdade, a cargo do professor e economista  Guilherme Costa Delgado (p. 118-16); e o ponto de vista jurídico – Desigualdades sociais e protagonismo político. Direito e projeto de vida (p. 127-151), que me incumbi de desenvolver.

Sobre articular Direito e Liberdade, com a mediação de um jurídico instituído nas lutas sociais por reconhecimento da dignidade do humano, direito achado na rua, finalizo por designar a atenção à chamada para que se reponha no debate acerca das reformas estruturais pelas quais passa o País, a nota do social que se vai perdendo e que acaba por retirar a dimensão ético-jurídica que deve presidir a sua orientação, ou seja, definir políticas públicas que sejam obedientes a valores. Na medida de seu potencial transformador das instituições e dos perfis de desempenho, esses valores vão permitir organizar, na sociedade e no estado, padrões de cooperação, solidariedade e participação, por meio dos quais, à lógica excludente e alienante que se sustenta no primado da acumulação, se oponha, como prioridade da ação – de governo e da sociedade – a lógica democrática que se sustenta no primado de uma equitativa distribuição.

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
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