Assédio Sexual na ONU: o que isto diz para todos nós?

Coluna Assédio Moral no Trabalho

Conforme relatório divulgado pela ONU na última terça-feira, 1/3 (um terço) de todos os funcionários e terceirizados da Organização das Nações Unidas sofreu assédio sexual nos últimos dois anos.
Ainda que o relatório tenha por base apenas 17% (dezessete por cento) dos trabalhadores elegíveis – 30.364 funcionários da ONU e de suas agências – que responderam a um questionário conduzido pela companhia Deloitte em novembro de 2018, cuida-se de dado preocupante e intolerável no interior de uma entidade que prima pela defesa dos Direitos Humanos, primordialmente a igualdade e a não violência.

Os dados apresentados

Foto: Pixabay

Segundo conclusões do citado Relatório, tem-se que:
– 21,7% dos participantes disseram ter ouvido histórias sexuais ou piadas ofensivas;
– 14,2% dos participantes afirmaram ter sido alvo de comentários ofensivos sobre sua aparência, corpo ou atividades sexuais;
– 13% dos participantes sofreram tentativas indesejadas de atraí-los para conversas sobre questões sexuais;
– 10,9% disseram ter sido sujeitos a gestos ou uso de linguagem corporal de natureza sexual que os envergonhou ou ofendeu;
– 10,1% disseram ter sido tocados de maneira que os deixou desconfortável;
– 17,1% disseram que as ações foram tomadas em um evento social relacionado ao trabalho enquanto mais da metade dos funcionários que sofreram assédio sexual disseram que os atos aconteceram no ambiente de trabalho;
– dois de cada três assediadores eram homens e,
– apenas uma em cada três pessoas disse ter tomado medidas após sofrer o assédio sexual.

Histórico de abusos

António Guterres, secretário-geral da ONU, avaliou que a pesquisa revela “algumas estatísticas alarmantes e evidencia o que é preciso mudar” para aperfeiçoar o ambiente laborativo da organização.
Não é a primeira vez porém, que o tema de violência sexual sacode a ONU.

Foto: Minusca/ONU

Nos últimos anos, a ONU recebeu sérias acusações de agressão sexual contra seus funcionários principalmente na África.
Sexo oral por biscoitos: uma menina de sete anos contou que fez sexo oral em soldados franceses em troca de uma garrafa de água e um pacote de biscoitos.
E, uma adolescente de 14 anos narrou:

“Eu passava pela base da Minusca (a missão da ONU no país) no aeroporto quando me atacaram. Os soldados estavam armados. Um segurou meus braços enquanto outro arrancou minha roupa. Jogaram-me em um pasto, e, enquanto um me segurava, outro me estuprou.”

Outra jovem de 18 anos afirmou ter sido estuprada por soldados da ONU no Congo, quando foi pedir comida:

“Três homens armados se jogaram em cima de mim e disseram que me matariam se eu os denunciasse. Todos eles me estupraram”, disse a garota. (1)

Em que pese a ONU tentar diferenciar assédio sexual (praticado por pessoal da ONU contra outras pessoas do quadro de funcionários) de abuso sexual (praticado contra populações), cuida-se de uma cultura institucional da ONU, que parece inclusive, permissiva em relação a esses comportamentos.
Um relatório do jornal The Guardian mostrou que trabalhadoras na ONU foram ignoradas ou mesmo demitidas depois de reportar assédio sexual ou outro tipo de violência sexual, enquanto os agressores de dentro da organização continuam a agir com impunidade. E, a Associated Press investigou cerca de 2 mil casos de violência sexual por Forças de Paz da ONU entre 2004 e 2012, e encontrou poucos agressores presos. (2)
Diz-se que, um obstáculo à busca de justiça é a imunidade diplomática da ONU. Uma convenção de 1946, com o intuito de proteger os funcionários da organização de sistemas judiciários corruptos, dispõe que a ONU “proverá meios adequados para resolução de […] conflitos”, o que se traduziu em um judiciário interno à organização. Esse sistema é o único a que as sobreviventes podem recorrer caso sofram agressão por um funcionário da ONU, nos casos em que as autoridades locais não tomem as medidas cabíveis. (3)
Inobstante o assédio sexual e o bullying não refletirem o comportamento padrão da maioria daqueles que servem a ONU (mais de 100 mil pessoas), seguramente, tal contexto compromete os valores pregados pela organização.
Esta percepção de desconfiança e impunidade no seio de uma das organizações de defesa dos Direitos Humanos mais relevantes é de se lamentar e reflete triste realidade que se entremostra presente em todos os níveis sociais e lugares, numa longa cultura de assédio sexual e laboral e abuso de poder.
Em direção ao compromisso da ONU de tolerância zero à violência contra as mulheres (4), há muito para se caminhar…

Referências:

(1) Ademais, em janeiro do ano passado, uma funcionária subordinada acusou Luiz Loures, Secretário-Geral Assistente do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), de assédio sexual. Por deter imunidade diplomática absoluta, Loures está isento de investigação criminal. Em vez disso, as acusações foram investigadas pelo sistema judiciário interno da ONU, e, em fevereiro, um painel de investigadores da UNAIDS declarou que Loures estaria absolvido, tendo a decisão final cabido ao Diretor Executivo da agência, Michael Sidibé. No final de fevereiro, Loures anunciou que estava deixando seu cargo. Michael Sidibé. Por sua vez, também estará deixando o cargo em virtude de sua débil postura contra o assédio sexual e bullying. Disponível em: https://noticias.r7.com/internacional/relatorio-expoe-assedio-sexual-sofrido-por-funcionarios-da-onu-16012019 Acesso em: 19 jan. 2019.
(2) Disponível em: https://theintercept.com/2018/03/24/onu-metoo-agressao-sexual/ Acesso em: 19 jan. 2019.
(3) Ibidem.
(4) A ONU criou um grupo de trabalho sobre assédio sexual e lançou um serviço telefônico de apoio para as vítimas.

Ivanira
Ivanira Pancheri é Articulista do Estado de Direito, Pós-Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (2015). Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (1993). Mestrado em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (2000). Pós-Graduação lato sensu em Direito Ambiental pela Faculdades Metropolitanas Unidas (2009). Doutorado em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (2013). Atualmente é advogada – Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Esteve à frente do Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo. Participa em bancas examinadoras da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo como Professora Convidada. Autora de artigos e publicações em revistas especializadas na área do Direito. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, Processual Penal, Ambiental e Biodireito.

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