As raízes profundas do Viralatismo

Ao tratar de futebol Nelson Rodrigues diagnosticou o país, “Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade.”[i]

            Embora  o cronista tenha tratado a questão como “um problema de fé em si mesmo”[ii], no entanto, o comportamento descrito por Nelson Rodrigues não pode ser entendido como uma culpa, para tanto é preciso ir além e perceber como tal atitude se origina e é difundida. Mais do que uma postura que emerge espontaneamente, trata-se de algo que emerge de uma tradição tecida política e epistemicamente de forma deliberada longo de séculos. O “complexo de vira-latas” não brota do seio da população, mas é reflexo de toda uma estratégia urdida de cima para baixo, de origem externa e elitista. Tão pouco é um fenômeno brasileiro, mas de todo o sul global.

Pode ser visto como a expressão do sentimento de inferioridade inerente à condição colonial, sendo assim nominado, por ser a face menos oculta do fenômeno colonial, claramente perceptível por estar sempre jogando um balde de água fria no sonho de um “país grande”. Fanon assim sintetiza este sentimento: “todo povo colonizado, isto é, todo povo no seio  do  qual  nasce  um  complexo  de inferioridade, de colocar no  túmulo a originalidade cultural  local  – se situa  frente a  frente  à  linguagem  da  nação  ‘civilizadora’,  isto  é,  da  cultura  metropolitana.  O colonizado se fará tanto mais evadido de sua terra quanto mais ele terá feito seus, os valores culturais  da  metrópole.  Ele será tanto  mais  branco  quanto  mais  tiver  rejeitado sua negrura”.[iii]  Mignolo nomina esta sensação como sendo uma “ferida colonial”, ou seja, “o sentimento de inferioridade imposto nos seres humanos que não se encaixam no padrão construído  pelos relatos do modelo Euroamericanos. ”[iv]     

Diante desta situação de autonegação, a esperança de redenção está em copiar modelos e práticas, sem qualquer juízo prévio de sua justiça, viabilidade ou ao menos adequabilidade. O apelo à cópia das práticas “euroamericanas” é reiterado no tratamento dos problemas mais latentes. Tal ímpeto é tão grande a ponto de Roberto Schwarz afirmar que “a cópia é o nosso pecado original”[v].

Diante de contradições tão viscerais, posturas adotadas pelos oligarcas brasileiros ante ao tarifaço decretado por Trump, seus agentes, naturalmente investidos do sentimento de redenção pela sujeição à uma nação central, não hesitam em afirmar que a saída se dará pela obediência ignóbil ao arbítrio estadunidense. Qual é a novidade disso? No período militar ressoou a frase de Juraci Magalhães “o que é bom para o Estados Unidos é bom para o Brasil”, pontificando um mantra enraizado no modo como as elites locais compreendem o Brasil.

O “complexo de vira -latas”, necessita ser visto como fruto de uma racionalidade, que se ramifica nos amplos espaços culturais, alicerçado na repressão ao pensar autêntico e engajado, oriundo do que Salazar Bondy chamou de consciência mistificada, na qual o pensamento não é um produto que expressa a comunidade de onde se origina, mas ao   contrário, uma forma de ocultamento do modo de ser dessa comunidade. Assim se configuraria uma racionalidade inautêntica.

Entre otras ocurre cuando la filosofía se construye como un pensamiento imitado, como una transferencia superficial y episódica de ideas y principios, de contenidos teóricos motivados por los proyectos existenciales de otros hombres, por actitudes ante el mundo que no pueden repetirse o compartirse en razón de diferencias históricas muy marcadas y que a veces son contrarias a los valores de las comunidades que los imitan. Quien asume este pensamiento calcado cree verse expresado en él o se esfuerza en vivirlo como suyo, sin poder encontrarse en las imágenes que lo conforman. La ilusión y la inautenticidad prevalecen en este caso y se pagan con esterilidad, que denuncia una falla vital y es siempre colectiva. Esta ilusión antropológica tiene, no obstante, un lado veraz. El hombre de la consciencia mixtificada expresa por esta consciencia su defectos y carencias. Si en lugar de producir sus propias categorías interpretativas una comunidad adopta ideas y valores ajenos, si resulta imposible para ella darles vida nueva y potenciarlos como fuente de proyectos adecuados a su salvación histórica, si los remeda en su carácter extraño y hace de ellos principios de conducta pese a su inadecuación, es porque en su mismo se prevalecen los elementos enajenantes y carenciales.[vi]

            A mistificação como prática colonial também é analisada por Memmi, que retrata o papel conformador consolidado por esta atitude ideológica, quando da confrontação do colonizado com a imagem de si mesmo. A mistificação colabora com a definição do lugar subalterno e a compreensão falseada da essência do colonizado.[vii]

             A posição de subalternidade, manifesta no complexo de vira-lata, longe de ser uma atitude que brota do seio do povo é algo construído por forças exógenas, mas que se ancoram em interesses aristocráticos nacionais. Pois as elites locais não se vinculam ao povo, índio negro ou mestiço, mas com o padrão eurocêntrico, como explica Quijano:

Por outro lado, nas outras sociedades ibero-americanas, a pequena minoria branca no controle dos Estados independentes e das sociedades coloniais não podia ter tido nem sentido nenhum interesse social comum com os índios, negros e mestiços. Ao contrário, seus interesses sociais eram explicitamente antagônicos com relação aos dos servos índios e os escravos negros, dado que seus privilégios compunham-se precisamente do domínio/exploração dessas gentes. De modo que não havia nenhum terreno de interesses comuns entre brancos e não brancos, e, consequentemente, nenhum interesse nacional comum a todos eles. Por isso, do ponto de vista dos dominadores, seus interesses sociais estiveram muito mais próximos dos interesses de seus pares europeus, e por isso estiveram sempre inclinados a seguir os interesses da burguesia europeia. Eram, pois, dependentes.[viii]

A busca pela imitação de países centrais, não possui nenhuma novidade, por isso o “complexo de vira lata” é expressão da mímica colonial. Movido pelo sentimento de inferioridade, o colonizado anseia pela inserção na cultura do colonizador, assim, assume uma prática imitativa, nela reproduz visões de si mesmo  pautadas pelos elementos culturais e sociais da cultura dominante. Tal realidade é bem descrita por Bhabha: “A mímica surge como objeto de representação de uma diferença que é ela mesma um processo de recusa. A mímica é assim o signo de uma articulação dupla, uma estratégia complexa de reforma, regulação e disciplina que se “apropria” do Outro ao vislumbrar o poder.”[ix]

Nessa situação de ambivalência e deslocamento produzido pela mímica, o sujeito colonizado encarna uma posição em que é “quase o mesmo” em relação ao colonizador, mas não o é de forma integral.  O que  implica em fazer do colonizado um eterno subalterno, pois mesmo adquirindo  todos os elementos da cultura colonizadora, nunca fará parte dela, a não ser como apêndice. A imagem imperfeita decorrente da mímica, denuncia de forma latente a posição de inferioridade assumida pelo colonizado, pois  ao ser a própria imagem imperfeita do colonizador, deixa claro que pode ser  no máximo assemelhado a ele.[x]

O deslizamento mimético produz uma ilusória identificação, com tamanho efeito, que aquilo que é nacional e faz parte da sua cultura se torna estranho, ridículo e provoca aversão. Com isso alimenta-se um círculo vicioso de colonialidade, pois ao negar-se a si mesmo e sua condição, em razão da tentativa de pertencer ao mundo do colonizador, o qual é visto de forma sublime, acaba por impedir as possibilidades de autenticidade, elemento fundamental para romper com o sentimento de inferioridade. Mesmo diante do maior esforço jamais será como colonizado, nem será integrado a esta cultura, pois a rejeição é um elemento definidor destas relações. A uma tendência de desencontro e exílio, pois passa a localizar-se no que Bhabha chama de “Entre-lugar”, afinal ao adotar posturas miméticas “não é um europeu e nem mesmo um indiano, não é nem um nem outro. É um ser inclassificável que perdeu a essência de sua própria cultura, sua própria identidade ao tentar se apropriar de algo considerado superior que é a cultura da metrópole”.[xi]

A mímica colonial revela-se como sendo uma eficaz e incrementada estratégia de poder e do saber colonial, como expõe Bhabha, ela se mostra ao Outro, como fonte de fundamentação, mediante a cópia tem-se a relativização da cultura subalterna.  Sua prática, oriunda do sentimento de inferioridade, ao invés de amenizá-lo acaba por fortalecê-lo, pois reflete a cultura de submissão e autonegação inerente à “ferida colonial”.

 

[i] RODRIGUES, Nelson. O complexo de vira-latas. Disponível em https://www.ufrgs.br/cdrom/rodrigues03/rodrigues3.pdf
[ii] Idem.
[iii] FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. 2º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p.12.
[iv] MIGNOLO,Walter. A idea de américa latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007, p. 17
[v] SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2009,  p. 126.
[vi] SALAZAR BONDY, Augusto. Existe una Filosofía de Nuestra América? México-DF: Siglo XXI, 2011, p. 81-82.
[vii] MEMMI, Albert. O retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 126.
[viii] QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.  Disponívelem https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf   P. 134
[ix] BHABHA, Homi. O local da cultura.trad.: Myriam Àvila, Eliana Lourenço Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2014, p. 140.
[x] idem.
[xi] Idem.
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Samuel Mânica Radaelli

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