Publicado na 44ª edição do Jornal Estado de Direito.
Antes de 2005, havia a concordata. E havia, também, a “indústria da concordata”. Por esta designação,aludia-seàs extraordinárias distorções viciando o instituto. Na concordata, o devedor comerciante alegava encontrar-se em dificuldade e obtinha em juízo o “favor legal” de pagar as dívidas quirografárias em até 2 anos. As petições iniciais repetiam fórmulas genéricas e vazias, atribuindo as dificuldades vagamente aos efeitos de inespecíficas crises econômicas. Era só um modo “legal” de fazer caixa em detrimento dos credores.
Em 2005, veio a recuperação judicial (RJ), um instrumento mais sofisticado que a concordata. Nesta, os meios de superação da crise estavam rigidamente estabelecidos em lei (por exemplo: pagar à vista com deságio de 50% ou em 2 anos, sem deságio), enquanto na RJ, admite-se qualquer meio apto a promover a reorganização da empresa. Na concordata, os credores não tinham nada a fazer, senão aguardar o depósito das prestações. A lei lhes facultava opor embargos à pretensão do devedor, mas este expediente não era utilizado simplesmente porque sua procedência acarretava necessariamente a da falência, com maiores prejuízos ao embargante. Na RJ, os credores, reunidos em assembleia geral (AGC), têm um papel ativo, pois cabe a eles aprovarem o plano de reorganização da empresa.
Pois bem. No atribuir aos credores esta relevante função se encontra a grande vantagemmas, também, a grande vulnerabilidade da RJ.
No início, as AGCs eram mesmo um ambiente propício à manifestação da vontade da maioria dos credores. Os primeiros planos previam algum alongamento das dívidas em 2 ou 3 anos e um modesto deságio. Paulatinamente, porém, as prorrogações de vencimento e o tamanho dos descontos se ampliaram. Hoje, são comuns planos prevendo o pagamento das obrigações em 20 anos, mediante o comprometimento de percentual ínfimo do faturamento (1 ou 2 %) e com a remissão integral do saldo devedor existente no vencimento. Um exagerado sacrifício é imposto aos credores, para a superação de uma crise que, ademais, nem sempre é real.
Mas, em tese, este ingente sacrifício não representaria qualquer distorção do instituto da RJ porque nenhum plano pode ser válido e eficaz se não tiver sido aprovado pelos credores, reunidos na AGC (ou pela quase maioria deles, na hipótese do art. 58, § 1º, da Lei n. 11.101/05). Quer dizer, em tese, a maioria dos credores preferiu sacrificar substancialmente seu crédito, porque fizeram um cálculo de interesses: aceitam a perda presente em troca de ganhos futuros, em novos negócios com a reorganizada empresa do devedor.
O que acontece na realidade, contudo, é algo bem diverso. Os devedores perceberam que conseguem controlar a AGC. Alguns credores preferem realizar a perda imediatamente e, à margem do processo judicial, cedem seus créditos ou outorgam mandato irrevogável a pessoas indicadas pelo devedor. No final, a AGC que parece ser a legítima manifestação da vontade da maioria dos credores não passa de um pastiche: mera formalidade para cômputo de votos favoráveis à aprovação do plano pelos agentes do devedor.
Mas, muito além dos cessionários e mandatários, o principal fator que submete a AGC ao controle do devedor em recuperação judicial consiste na renegociação de suas dívidas com um dos bancos com os quais trabalha. Faz-se um arranjo lateral e reservado, em que o banco escolhido, mediante garantias apropriadas, acabará atendido em seus interesses e fornecerá até mesmo novos recursos. Este banco votará favoravelmente à aprovação do plano, porque o prejuízo que lhe trará a novação recuperacional será largamente compensado pelos ganhos advindos do arranjo feito com o devedor.
Controlando a AGC, o devedor acaba impondo sério prejuízo aos seus credorese “fazendo caixa” em detrimento destes, em particular dos que não participaram da arrumação (cedentes, mandantes e o banco eleito).
Para combater esta distorção, os credores mais prejudicados e o Judiciário dispõem de parcos recursos legais. Nem sempre há elementos consistentes para o desarme do controle do devedor sobre a AGC. Esta distorção somente será coibida quando os credores passarem a adotar atitudes cooperativas. O banco escolhido numa RJ certamente será o prejudicado em muitas outras. Com a devida atenção às balizas da legislação antitruste, eles podem colaborar para se protegerem mutuamente das distorções da RJ. A teoria dos jogos, desde Nash, aponta os caminhos. E já há muitos anos, no Reino Unido, esta colaboração tem sido experimentada de modo satisfatório (London approach).
Fábio Ulhoa Coelho, Professor Titular de Direito Comercial da PUC-SP. Autor do livro Comentários à Lei de Falências e Recuperação de Empresas, publicado pela Editora Saraiva.