As crianças nas relações de consumo

Não há representação maior de inocência e fragilidade do que uma criança. Até mesmo Jesus utilizou a figura desse pequeno ser para demonstrar a pureza necessária para se chegar ao Céu. E isso porque as crianças carregam, em si, uma ingenuidade e uma simplicidade não encontrada nas demais pessoas, as quais, pelos infortúnios da vida, criam carapaças para se proteger das mazelas do mundo.

E isso se reflete nas relações jurídicas, em que, nos tempos atuais, a desconfiança permeia a celebração dos negócios, desde as tratativas até a sua conclusão. Um fator determinante para isso é a prevalência da má-fé, da concorrência desleal, das práticas comerciais predatórias e abusivas e da busca do lucro fácil.

Por isso, muitas vezes a esperança de mudanças se perde nesse labirinto, em que não se observam os valores mais rudimentares que devem permear toda e qualquer relação. A sede desenfreada e insaciável de lucro cegou a sociedade e, nesse particular, os fornecedores de produtos e serviços.

Mas reparem bem. O desejo pelo lucro não é ilícito. Ao contrário, essa é a finalidade de toda e qualquer atividade econômica. O que se deve condenar, contudo, é o abuso, a ganância e a falta de ética e lealdade para alcançar esse fim.

E as crianças, em razão de sua frágil condição, são mais suscetíveis a serem atingidas por essas vicissitudes. Daí porque deve ser maior a preocupação com produtos e serviços que tenham como destinatários finais as crianças, que se qualificam como hipervulneráveis numa relação de consumo.

Sob esse aspecto, a maior atenção deve estar na publicidade e na oferta desses bens, em razão da condição especial desses consumidores, que não têm a plena capacidade de discernir e decidir sobre a sua real vontade e, também, da necessidade de adquirir determinado produto ou serviço.

Desde logo, é preciso esclarecer que as crianças estão inseridas no conceito de consumidor, uma vez que são destinatárias finais de diversos produtos e serviços, embora não tenham capacidade civil para celebrar, sozinhos, os negócios jurídicos para a sua aquisição.

Mas, a capacidade civil não é requisito para ser consumidor, de modo que aos incapazes podem ser aplicadas as regras do diploma consumerista. E se assim o é, as regras que se impõe aos fornecedores nas relações de consumo também se destinam às crianças.

E para essas, deve se exigir o cumprimento das normas protetivas com maior rigor, dada a reduzida capacidade de compreensão que elas têm acerca daquilo que lhes é transmitido.

Segundo o disposto no art. 31 do CDC, a oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.

Trata-se, a toda evidência, da aplicação do princípio da transparência, o qual exige dos fornecedores que prestem todas as informações, acerca dos produtos e serviços, de modo claro e transparente, a fim de que o destinatário da oferta possa discernir de forma consciente sobre o interesse e necessidade de adquirir aquilo que lhe é oferecido.

Ocorre que, no caso do consumidor infantil, sua capacidade de discernimento, por óbvio, é reduzida, razão pela qual deve o fornecedor ser ainda mais cauteloso, divulgando as informações do modo mais simples possível, permitindo que a criança possa compreender os benefícios e riscos que aquilo que está sendo ofertado pode lhe proporcionar.

É certo que os pais têm o dever de observar tudo o que compram para seus filhos. No entanto, isso não exime o fornecedor da sua responsabilidade. O fato de um pai adquirir um produto que possa trazer riscos a seu filho, em princípio não poderá caracterizar um fato exclusivo de terceiro em favor do fornecedor, especialmente se aquele bem for destinado, efetivamente, a crianças.

Isso quer dizer, de modo contrário, que se um pai dá a seu filho um produto que é destinado a adultos e, por essa razão, a criança vem a sofrer algum dano, neste caso o fornecedor não pode ser responsabilizado, salvo se omitiu que o produto era voltado exclusivamente para maiores de idade.

Outro aspecto importante é o da publicidade. Diz o CDC, em seu art. 37, que é enganosa e abusiva a publicidade que, respectivamente, falseia a verdade ou induz o consumidor a erro, e que seja discriminatória, incite a violência, se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança, ou que leve o consumidor a se comportar de modo a prejudicar sua vida e saúde.

Portanto, o próprio legislador previu como abusiva a propaganda que se aproveite da hipervulnerabilidade da criança, estimulando-a a adquirir algo desnecessário ou lesivo. Nessa proibição está, obviamente, toda e qualquer publicidade que a engane, fazendo-a crer que aquele objeto dos seus maiores sonhos infantis é uma coisa que, na verdade, não é.

Por essa razão, os fornecedores de produtos e serviços destinados às crianças devem ter uma maior cautela, pois lidam com pessoas cuja fragilidade é inerente ao próprio ser. A teoria do risco deve ser aplicada com ainda maior rigor nesses casos, pois aquele que opta por ingressar no angelical mundo infantil deve estar ciente do maior cuidado que deve ter no fornecimento dos bens.

E a responsabilidade desses fornecedores não se resume à esfera civil e penal, mas também à social. As crianças são os adultos de amanhã. São aqueles que construirão ou reconstruirão a sociedade. Desse modo, não se deve brincar com os sonhos desses pequenos seres, porque isso pode levar, no futuro, ao pesadelo de muitos.

Thiago Ferreira Cardoso Neves é advogado do Escritório Sylvio Capanema de Souza Advogados e Professor da EMERJ

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