Coluna A Advocacia Popular e as Lutas Sociais
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[…] o que caracteriza a propaganda totalitária melhor do que as ameaças diretas e os crimes contra indivíduos é o uso de instituições indiretas, veladas e ameaçadoras contra todos os que não derem ouvidos aos seus ensinamentos[…][1]
As instituições
As instituições possuem um papel, uma missão descrita na Constituição e/ou na lei. Mas é fato histórico e atual que, muitas vezes, o público é confundido com o privado. Não só no Brasil, mas em todo o mundo, o desafio do controle e da participação social. Instituições que mais se assemelham a corporações, apesar de múnus público, agentes que suas ações são voltadas a interesses de certos segmentos, em detrimento de coletividades ou dos direitos humanos, muitos exemplos de desvirtuamento podem ser dados.
Não é novidade, há muito se discute isto. Sérgio Buarque de Holanda, em 1936 já asseverava:
“As Constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias, são fenômeno corrente em toda a história da América do Sul”.[2]
Perceber tal conduta não significa uma defesa positivista oitocentista e cega da lei e sim, identificar que esta repetidamente não é cumprida para a efetivação de direitos humanos fundamentais. Já o contrário, para violá-los, em nossa tradição Latino-americana é muito comum, basta ver os atos institucionais da Ditadura Militar.
Povos tradicionais e originários
Falando de povos tradicionais e originários é recorrente e presente esta realidade. Um bom exemplo histórico são os decretos das Assembleias Legislativas de Províncias do Nordeste, após a Lei de Terras, decretando não mais existir indígenas com intuito de grilarem das terras dos mesmos:
“Ora, a Lei de Terra é criada em 1850. Logo, em 1863, José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, Presidente da Província do Ceará, no relatório que apresentou à Assembleia Legislativa Provincial, em 9 de outubro, dá por extinta a população indígena do Ceará, na sua visão anti-indígena. Não se lembrava, no entanto, de que um pouco antes, em 1846, havia no Ceará Índios até “selvagens”[3]
Em relação aos quilombolas nunca foi diferente. O Estado existia contra eles de forma franca e direta, o que hoje se faz de forma mais sofisticada, bastando ver os inúmeros conflitos atuais, como o do Rio dos Macacos na Bahia:
“Em 1832, entra em vigor o Código do Processo Criminal do Império, que extingue juízes ordinários […] São criados para as Comarcas os Juízes de Direito, e para os Termos, Juízes Municipais. Os Juízes possuíam atribuições e deveres concernentes à destruição dos quilombos.”[4]
Infelizmente, assim foi consolidado o Estado brasileiro, sobre a violação de direitos. Foi pensado, estruturado e fortalecido. Denuncia-se hodiernamente que esta prática não tem mudado: “A subdelegacia de Pinheiro em 1850, após reiterados pedidos, solicita em ofício um forte destacamento para combater índios e quilombolas.”[5]
Atual investida
Todavia, o que se quer aqui destacar é a atual investida contra os indígenas e quilombolas. A lista é ampla e variada e vem de várias frentes institucionais. Vai do Poder Judiciário que quer impor o Marco Temporal da Constituição de 1988 para limitar o direito aos territórios destas populações; passa pelo Legislativo que implanta a CPI da FUNAI e do INCRA para impedir e criminalizar a efetivação do mesmo direito acima referido e que também propõe a PEC 215/2000, que passaria a aprovação da demarcação das terras indígenas ao Congresso Nacional, onde a bancada ruralista inviabilizaria tal expediente; e chega no Executivo, por exemplo, por meio do Presidente da FUNAI, que quer “estimular” a retirada da autonomia das populações indígenas em relação ao seu modo de vida:
“Em entrevista à BBC Brasil, ele diz que buscará recursos em outros setores do governo para financiar atividades econômicas dentro de terras indígenas, como a plantação de grãos, a criação de peixes e a extração de castanhas.”[6]
São diversas as declarações na sociedade e por agentes públicos que visam legitimar a violação dos direitos destas populações. No início do mês, o Deputado Jair Bolsonaro fez comentário retirando condição humana dos quilombolas, comparando-os a gado a animais. A retirada da natureza ou condição humana é uma estratégia secular para legitimar a violação de direitos. Isto foi feito historicamente com indígenas, com africanos, para justificar a escravidão:
“O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador eles servem mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles.”[7]
A justificativa em desrespeitar o direito à terra e ao modo de vida destas populações é muitas vezes feita na defesa de interesses econômicos outros, nesses territórios. Tal postura é inadmissível por nossa Constituição Federal, que determina que a ordem econômica assegure uma vida digna, conforme os ditames da justiça social e ainda estabelece que deve observar os princípios da função social da propriedade, da defesa do meio ambiente e da redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170). Mas não é isso o que pensa o deputado citado, como muito dos parlamentares brasileiros, divergindo do que está posto na Constituição:
“Onde tem uma terra indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que mudar isso daí”.[8]
Procurar se apropriar dos bens destas comunidades não é algo novo no Brasil. Inclusive, por isso, por muito tempo, a legislação não permitia aos indígenas a autonomia sobre seus bens:
“Até à passagem dos selvícolas para centros agrícolas ou sua incorporação à sociedade civilizada, serão os Inspectores, cada um na sua circunscrição, encarregados da gestão de bens daqueles cumprindo-lhes prestar contas anualmente.”[9]
É próprio das Casas Legislativas o debate entre os diferentes, a representação da pluralidade na sociedade. Contudo, isto não pode extrapolar os limites postos na Constituição Federal e nem ser instrumentalizado para violar Direitos Humanos. Isto desconfigura as funções dos poderes e instituições e viola o Estado Democrático de Direito.
Quando a Constituição é desrespeitada ou mesmo é estimulado o seu desrespeito por quem deveria defendê-la, ela não se efetiva. Em nosso caso específico, não efetivá-la, significa não efetivar direitos humanos fundamentais e nem a Democracia. Alguns mais cético poderão argumentar que a sociedade de fato é que deve determinar, dentro de suas correlações de forças, como se darão as coisas, o que significará a instauração, agora formalmente, de uma ordem opressora para a maioria da população em nosso país:
“A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar “a força que reside na natureza das coisas”, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição, quanto mais forte mostrar-se essa convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional.”[10]
Não se nega que há violação dos territórios indígenas e quilombolas. Por isto a importância do ordenamento jurídico assegurar este direito, para termos fundamento para a mudança desta injusta realidade. Sempre haverá forças conservadoras, ou melhor dizendo, do atraso, querendo manter o país onde poucos ganham em cima da exploração de muitos. Mas isto é o que ordem jurídica de 1988 quis mudar, estabelecendo direitos sociais. Por estarem postos na Constituição não estão dados. Estes quase 30 anos de sua promulgação mostram bem este desafio.
A atual conjuntura além de demonstrar, claramente, os limites do ordenamento jurídico, demonstra a necessidade da sociedade novamente se mobilizar em prol de direitos. Os territórios e modos de vida de indígenas e quilombolas estão ameaçados, juntamente com os direitos dos (as) trabalhadores (as) (reforma trabalhista e fim da Justiça do Trabalho) e a previdência social. Se estas iniciativas lograrem êxito, cada vez mais ficará difícil uma reação pautada no bem comum.
Referências
[1] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 477
[2] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p.320
[3] CORDEIRO, José. Os Índios no Siará, massacre e resistência. Fortaleza: Hoje-Assessoria em Educação, 1989, p. 123
[4] Projeto Vida de Negro. Terras de Preto no Maranhão.: quebrando o mito do isolamento. Vol III. São Luis: SMDH/CCN-MA/PVN: 2002, p. 116.
[5] Projeto Vida de Negro. Terras de Preto no Maranhão.: quebrando o mito do isolamento. Vol III. São Luis: SMDH/CCN-MA/PVN: 2002, p .136
[6] Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-39510285. Acesso em: 18 de abr. 2017
[7] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YuUSF286Gkk. Em 19 de abr. 2017
[8] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YuUSF286Gkk
[9] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés [org}. Textos clássicos sobre o direito e os povos indígenas. Curitiba: Juruá, 1992, p.123
[10] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p.24