Catástrofes naturais X Desenvolvimento da cidade
No último dia 11 de fevereiro, durante a sessão plenária da Câmara Municipal de Porto Alegre, o vice-prefeito Sebastião Melo apresentou, a pedido da bancada do PT, seu relatório sobre o temporal que atingiu a capital no último dia 29 de janeiro e que provocou destruição e transtornos na cidade.
Daqui para frente será preciso fazer melhores previsões e regulamentar e proibir certas ações na cidade pois o que o capitalismo financeiro também faz, como bem demonstra Raquel Rolnik, é transformar nossas cidades em vítimas fáceis, inclusive, das interpéries naturais. É preciso novos sacrifícios para enfrentar as agruras do crescimento econômico: o temporal de sexta-feira mostra que o tema da reforma urbana é atual. A catástrofe climática que ocorreu pode se repetir.
O temporal colocou a discussão do modelo de desenvolvimento da capital. Porto Alegre, como todas as cidades, acompanha o modelo de desenvolvimento insustentável do pais e as mobilizações populares em defesa da reforma urbana tem mais um fato em que se apoiar. De agora em diante, é preciso exigir mais dos órgãos públicos, principalmente do poder Executivo, do DMLU e da CEEE, que definem o que é possível ou não fazer em caso de tragédias.
A tempestade impõe assumir novas obrigações mas só isto também não é suficiente, eis a questão.
A tempestade mostrou que a cidade é um sistema vulnerável e que os efeitos das mudanças climáticas globais, das políticas públicas de desenvolvimento urbano e do lobby de empresas de engenharia e arquitetura – descobrimos agora que mármores podem cair sobre nossas cabeças –produzem o cidadão como vítima. O que se vê é que o clima da cidade está se alterando mais rápido do que as previsões dos metereologistas, que precisam agora corrigir seus modelos e aprimorar seus equipamentos que estão se tornando simples demais.
Que outros temíveis mecanismos climáticos ainda vamos conhecer como o “downburst“? Afirma Isabelle Stengers em No tempo das Catástrofes (Cosac Naif, 2015) que apenas as previsões pessimistas terão espaço no futuro “estamos nessa nova época, diante não apenas de uma natureza “que deve ser protegida” contra os danos causados pelos homens, mas também de uma natureza capaz de incomodar, de uma vez por todas, nossos saberes e nossas vidas”.
A catástrofe não é apenas um efeito do clima. É o modo de crescimento da cidade que é posto em questão pelos fenômenos extremos (Baudrillard), outra forma de dizer que é a política e as desigualdades que estão no centro do furacão: Flávia Moraes tem razão, as catástrofes continuam sendo feitas por nós mesmos. O aquecimento global só nos mostra que um dos efeitos da globalização é que as catástrofes climáticas que vemos em outros países também nos atingem.
A luta pela redução de seus efeitos passa pela revisão do modelo de crescimento econômico, pelo combate ao desemprego – que expõe moradores de rua às interpéries – e a crítica aos responsáveis por uma urbanização de risco, que com seus prédios magníficos e frágeis nos lembram a crítica de Paul Virilio às Twin Towers anos antes do ataque.
O que eram as centenas de peças de mármore decorativo vindo ao chão na Avenida Borges de Medeiros do que a prova de que tais edifícios são “tão belos quanto frágeis”?
O que era o estado de pânico do diretor da CEEE confrontado com a perspectiva da demanda por instalações elétricas subterrâneas senão revelador de que o imperativo de ganhar em nossa sociedade é incapaz de ver suas próprias ações como um ato criminoso? E se um dos postes de rua atingisse um cidadão, de quem seria a responsabilidade? Stengers diz que o “que se anuncia não é se não a possibilidade de uma New Orleans em escala planetária”: não é o que se vê desde maio de 2008 quando um ciclone atingiu a capital e depois, no ano passado, com as enchentes, de que o pior ainda estava por vir?
E ainda não acabou: é sua face social a mais preocupante. Enquanto que os habitantes das zonas mais ricas da capital tinham reestabelecida sua energia e água, os habitantes das ilhas do Guaíba tinham de mobilizar-se para ter acesso a estes direitos.
O que podemos aprender com a catástrofe
A catástrofe foi, no entanto, nosso primeiro momento de experimentação de políticas de superação de desastres. A ideia de colocar apenados do regime semi-aberto, militares e trabalhadores do interior contratados à serviço da recuperação da cidade responde a pergunta “o que fazer” que emergiu nas primeiras horas. A prestação de contas à Câmara pelo vice-prefeito Sebastião Melo do que foi feito, no entanto, oculta um fato perigoso à democracia local.
Pierre Ronsavalon em “El buon governo”(Manantial, 2015) afirma que transparência, prestação de contas e “escuta” fundamenta a democracia prática, regime superior à democracia de autorização baseada nas eleições.
A tempestade não põe na parede o poder de decisão do Executivo, ela põe em xeque a democracia da capital. Primeiro porque a produção de leis e a discussão de plenário deixou de ser o centro da vida política e foi substituída pela tomada de decisões em todos os campos. Não foi isso que permitiu a ascensão de Sebastião Melo no cenário da tragédia ao assumir para si o papel de protagonista na condução da reconstrução da cidade? Segundo porque, quando isso acontece, significa que o ágora público que o legislativo representa perde sua capacidade de colaborador do governo, colocando a democracia em risco.
A primeira lição da tragédia é que o Legislativo da Capital precisa retomar o seu papel de protagonista na tomada de decisões frente as catástrofes. Mesmo com toda a agilidade e eficiência demonstrada pelo prefeito em exercício em resolver os problemas da capital, ainda assim, tivemos um mal governo nestes dias porque o poder Legislativo, que representa os cidadãos, ficou na condição mero espectador.
Não se trata dos vereadores acompanharem o movimento de recuperação da cidade, o que de fato ocorreu, é preciso que compartilhem com as autoridade seus momentos de tomada de decisão. Por quê? Porque os cidadãos foram vítimas da catástrofe e o parlamento que os representa deve ser capaz de apontar o que sentem seus cidadãos num momento de perigo (Benjamin).
O que a tragédia mostrou é que o legislativo tem um espaço a ocupar na prevenção das catástrofes na capital, elaborando leis para ampliar a sua capacidade de reagir as tragédias. Por esta razão é apropriada a discussão sobre resiliência proposta por seu Presidente: o Parlamento deve assumir, após encerrados os trabalhos de recuperação, a questão do que fazer para evitar novas tragédias.
Usando de seus instrumentos institucionais (audiências públicas, leis) para discutir as condições políticas públicas de enfrentamento de situações de risco na cidade, deve encaminhar as novas demandas colocadas ao poder público, como geradores nas casas de bombas, fiação subterrânea e formas de arquitetura urbana que representem menos riscos para a população, entre outras. Isso também inclui verificar se as promessas e leis feitas em relação a proteção dos riscos da cidade se transformaram em políticas e reconhecer que ser eleito não é só representar a sociedade, é assumir sua dimensão cognitiva, isto é, de que são portadores da memória e da vontade da sociedade. Diz Ronsavallon:
“A sociedade está cada vez mais definida pelos acontecimentos que estruturam (ou desestruturam) a vida dos indivíduos: o problema não é só saber se somos um trabalhador ou cientista, mas quais os acontecimentos ou eventos pessoais que temos enfrentado”.
A lição da catástrofe à governabilidade é a necessidade da retomada da vitalidade democrática, de que os governantes também tem de atender as soluções propostas pelos governados para soluções reais de longo prazo para os problemas urbanos.
Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito – Doutor em Educação e autor de Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014).