Algumas linhas sobre a seletividade do sistema penal

Coluna Direitos Humanos e Sistema Penal: Um debate necessário

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Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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Debate reaceso

A recente condenação de Rafael Braga Vieira pela Justiça Estadual do Rio de Janeiro, a 11 anos e três meses de prisão, além do pagamento de R$ 1.687, em razão da suposta prática dos crimes de tráfico de drogas e associação ao tráfico, pois teria sido flagrado na posse de 0,6g de maconha, 9,3g de cocaína e um rojão, está sendo bastante discutida e criticada nas redes sociais. De acordo com matéria publicada no site Justificando, em 22 de abril de 2017: “Ele nega todas as acusações e afirma que o material foi plantado pelos policiais responsáveis pelo flagrante. Já os depoimentos dos policiais foram a única base para condenação.”

O fato reacende o debate sobre a seletividade do sistema penal, porque Rafael é negro e pobre, como muitos dos réus ou suspeitos que são presos e condenados com frequência pelo sistema. Sem a pretensão de analisar a decisão em si, mas apenas partindo da mesma como um possível exemplo, passo a falar um pouco sobre a seletividade do sistema penal.

Estágios de ação

Lembremos que o exercício do poder punitivo pelo Estado acontece em três estágios distintos: A fase de investigação, promovida (regra geral, salvo exceções como nas comissões parlamentares de inquérito e na investigação direta pelo Ministério Público, por exemplo) pela instituição policial, a fase de processo e julgamento, realizada pela instituição judiciária, e a fase de execução penal, que fica a cargo da instituição penitenciária. Ensina Batista (2005, p. 25) que: “A esse grupo de instituições que, segundo regras jurídicas pertinentes, se incumbe de realizar o direito penal, chamamos sistema penal.”

Agências de criminalização

Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar (2011, p. 43) explicam que o sistema penal é formado por diferentes agências, sendo que as políticas, que são os parlamentos, exercem a criminalização primária, criando as leis penais e suas respectivas punições, em abstrato, e as outras agências, Polícias, Poder Judiciário, Ministério Público e Administração Prisional, realizam a criminalização secundária, que é a ação punitiva concreta exercida sobre determinadas pessoas.

Em razão da fragmentariedade do Direito Penal, característica relacionada com o princípio da intervenção mínima, as agências de criminalização primária operam seletivamente, pois escolhem quais condutas serão criminalizadas. Esse primeiro exemplo da seletividade do sistema penal não é tão acentuado, porque inerente ao próprio sistema.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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Não se pode dizer o mesmo em relação às agências de criminalização secundária. Isso porque, de acordo coma Baratta (2002, p. 176): “Os processos de criminalização secundária acentuam o caráter seletivo do sistema penal abstrato.” A realidade das abordagens policiais, prisões, processos e condenações do nosso sistema penal indicam que o autor italiano tem razão.

A seletividade do sistema

Autores da criminologia brasileira indicam a seletividade do sistema penal como um traço característico da violência e da criminalização operadas contra cidadãos das classes menos abastadas, notadamente os jovens negros.  Nesse sentido, leciona Carvalho (2014, p. 649):

A seletividade racial é uma constância na historiografia dos sistemas punitivos e, em alguns casos, pode ser ofuscada pela incidência de variáveis autônomas. No entanto, no Brasil, a população jovem negra, notadamente aquela que vive na periferia dos grandes centros urbanos, tem sido a vítima preferencial dos assassinatos encobertos pelos “autos de resistência” e do encarceramento massivo, o que parece indicar que o racismo se infiltra como uma espécie de metarregra interpretativa da seletividade, situação que permite afirmar o racismo estrutural, não meramente conjuntural, do sistema punitivo.

Essa seletividade acentuada das agências de criminalização secundárias, que atinge principalmente os negros e pobres, é capaz de causar efeitos prejudiciais aos selecionados, mesmo que indiretamente, como dificultar a observância dos princípios da presunção de inocência e da ampla defesa, por exemplo. Cumpre lembrar, porque oportuno, que, para a realização do Direito Penal, é necessário que o Estado, observe rigorosamente os direitos e garantias constitucionais. Nas palavras de Bitencourt (2015, p. 42):

Significa, em poucas palavras, submeter o exercício do ius puniendi ao império da lei ditada de acordo com as regras do consenso democrático, colocando o Direito Penal a serviço dos interesses da sociedade, particularmente da proteção dos bens jurídicos fundamentais, para o alcance de uma justiça equitativa.

A seletividade do sistema penal, que é mais acentuada no trabalho das agências de criminalização secundária, e atinge, na maioria das vezes, os negros e pobres, é uma das tantas violações de direitos operadas frequentemente pelo sistema. São necessários, portanto, o aperfeiçoamento do trabalho dos agentes do sistema penal, bem como a observância irrestrita dos direitos dos suspeitos, presos, acusados ou réus, independente de antecedentes, condição social, cor da pele etc., a fim da correta realização do Direito Penal.

Referências

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
CARVALHO, Salo de. O encarceramento seletivo da juventude negra brasileira: a decisiva contribuição do Poder Judiciário. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 623 – 652, jul./dez. 2015.
JUSTIFICANDO. Condenação de Rafael Braga gera revolta. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/04/22/condenacao-de-rafael-braga-gera-revolta/. Acesso em: 22-04-2017.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do delito. 4 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

 

Moisés Matusiak
Moisés Matusiak é Articulista do Estado de Direito, Mestre em Direito (UNIRITTER), Especialista em Direito Penal e Processo Penal (UNIRITTER), professor de Direito Penal e Processo Penal (UNICRUZ).

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