Ainda acerca da norma mais importante do ordenamento brasileiro (ou o embate dignidade humana vs. vida)

Já tivemos a oportunidade de verificar como, por trás de algumas das questões jurídicas mais agudas da contemporaneidade, está presente uma espécie de oposição ou embate que se estabelece entre a norma jurídica que prescreve o respeito à dignidade humana e a norma que prescreve o respeito à vida. Gostaria de continuar com o exame desse tema, aprofundando um pouco a análise de alguns exemplos de questões jurídicas controvertidas em relação às quais subjaz tal embate.

Citei anteriormente três exemplos: a discussão acerca do aborto, a discussão acerca da eutanásia e a discussão acerca da qualificação jurídica dos animais não humanos. Cumpre agora complementar a abordagem da primeira discussão, bem como tecer algumas considerações sobre as duas últimas.

No que tange à discussão sobre o aborto – mais especificamente, a discussão sobre a escala de sua liberação ou proibição –, é de se notar que poucos debates revelam a polarização vida/dignidade com tanta clareza. Polarização essa – e esse ponto deve ser bem sublinhado – que se trava decisivamente no campo da retórica (no sentido clássico de arte da argumentação). Dessa forma, ainda que na apreciação científica do sistema jurídico se possa sustentar um modelo (e um método) de convivência e harmonização entre as duas normas e valores, na prática do discurso argumentativo, persuasivo, o recurso à predominância de uma delas poderá definir a solução do debate (em especial num Estado com ampla abertura para a fixação judicial da resposta, como é o caso do brasileiro).

Não é por outra razão que não se pode deixar de dar importância ao tratamento do assunto sob o viés de uma espécie de disputa de normas pelo papel de norma primordial do ordenamento – pois é assim que, na realidade, o problema vem sendo tratado por grupos em oposição, na arena jurídica, na política e em outras arenas.

Se a prescrição do direito à vida for a norma central, que deve ser privilegiada mesmo em face do direito ao respeito à dignidade humana (sob argumentos como a impossibilidade de compreensão plena da vida pela intelecção humana, ou como o de que o direito à vida seria pré-requisito para o deferimento de todos os outros direitos), então uma admissão ampla de hipóteses de aborto (e com mais força a sua legalização irrestrita) encontrará enorme obstáculo (compreendido o aborto como interrupção de vida em formação). Por outro lado, se o prisma de toda a juridicidade for o princípio do respeito à dignidade humana (como já foi afirmado por alguns juristas da escola do personalismo ético), então casos em que se possa vislumbrar a inviabilidade futura de uma vida digna para o nascituro ou para a gestante comportam (com maior facilidade argumentativa) a interrupção da gravidez. Uma vez mais não me preocupo aqui com a busca de uma conclusão definitiva, mas apenas em expor os termos da disputa.

No que se refere ao tema da eutanásia (e também ao da ortotanásia), da mesma forma, a resposta a ser dada varia, se a norma central eleita é a do respeito à dignidade humana (art. 1º, III CF) ou a que prescreve o respeito à vida (art. 5º, caput CF). A centralidade da vida não se coadunaria bem com a permissão para sua extinção em quaisquer casos em que essa vida não encontre aptidão para a plena realização de suas potencialidades (por incapacidade física extrema ou prolongamento meramente doloroso em caso de doenças terminais). Tornar-se-á mais fácil, nessa hipótese, argumentar que a vida é um conceito empírico (ainda que não totalmente passível de apreensão), enquanto a dignidade é um conceito lógico teoricamente construído, não se podendo intervir para abreviar a vida (eutanásia) nem mesmo por decisão de autonomia do paciente, e de modo extremo não se podendo nem mesmo deixar de intervir para prolongar a vida (ortotanásia). De outro lado, chega a ser despiciendo afirmar que se a norma mais importante for a do respeito à dignidade humana, a admissibilidade da eutanásia se torna mais claramente defensável, sob a premissa de que a vida sob certas condições não é digna, não está atingindo o seu fim – no sentido da plena realização do ser humano (cf. RENATA OLIVEIRA ALMEIDA MENEZES, Ortotanásia – O direito à morte digna, 2015, p. 47 e ss.).

Por fim, no que concerne à discussão da qualificação jurídica dos animais não humanos, já se fala com mais frequência nos meios jurídicos em um processo de superação do antropocentrismo (e com ele do personalismo) em prol de um biocentrismo, de modo que, se a vida é o valor fundamental, por que não se admitir direitos aos animais não humanos? Essa terceira polêmica, contudo, merecerá uma reflexão mais detida em separado.

Marcel Edvar Simões

Procurador Federal, Chefe da Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA em São Paulo. Bacharel e Mestre em Direito Civil pela USP. Professor de Direito Civil na Universidade Paulista – UNIP. Membro do IDP, do IBDCivil e da ADFAS.

Picture of Ondaweb Criação de sites

Ondaweb Criação de sites

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit, sed do eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore magna aliqua. Ut enim ad minim veniam, quis nostrud exercitation ullamco laboris nisi ut aliquip ex ea commodo consequat. Duis aute irure dolor in reprehenderit in voluptate velit esse cillum dolore eu fugiat nulla pariatur. Excepteur sint occaecat cupidatat non proident, sunt in culpa qui officia deserunt mollit anim id est laborum.

Cadastra-se para
receber nossa newsletter