Água: Direito Fundamental?

Artigo veiculado na 27ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

 

Mário Frota*

A água é um direito humano

Como se sustenta nos areópagos internacionais. Em que importa “puxar lustro” ao discurso de pendor humanizante!

O fornecimento de água jamais deveria ser suspenso fosse qual fosse a circunstância.

O problema do incumprimento das obrigações contratuais por parte do consumidor, designadamente do pagamento do preço, situa-se a outro nível. E é susceptível de demandar múltiplas soluções.

O importante, porém, é não confundir inadimplência (incumprimento) com indigência: a inadimplência pune-se; a indigência supre-se através de procedimentos assistenciais – subsidiam-se as pessoas, não as empresas concessionárias de serviços públicos. Mas não tem de se punir necessariamente com o “corte”… a “bolsa” é mais sensível!

Empresas há a operar no sector que agem despudoradamente, sem um mínimo respeito pela dignidade da pessoa humana.

Em Fafe, contra-razão, a Indáqua – concessionária monopolista – suspendeu o fornecimento a um escritório em cujo interior um munícipe exercia a sua atividade profissional. Em causa a cobrança de uma pretensa tarifa de um contador-totalizador que direito nenhum poderá sufragar. O totalizador é instalado em proveito e no interesse da empresa, logo, não é lícito que os eventuais encargos recaiam sobre o consumidor. Mais a mais não havendo lugar ao pagamento de um qualquer aluguer do contador. E qualquer taxa que o substitua é de análogo modo ilícita.

Requerida a providência cautelar, o tribunal levou 90 dias (leu bem: noventa dias) a decretar a medida cautelar.

Noventa (90) dias! Ouve-se, lê-se e não se crê na solução provisória, embora, com tamanho compasso de espera de permeio!

Foto: Fred Noy, ONU

Foto: Fred Noy, ONU

Em Azeitão, porque o consumidor reclamara da forma ínvia como a Águas do Sado, S.A., se eximia ao cumprimento de uma ordem do tribunal arbitral, a empresa suspendeu o fornecimento de água à casa da família, em que se incluem dois menores de 10 e 13 anos, obviamente em idade escolar.

O consumidor recorre ao tribunal. Excedeu o mês o período em que a família visada estivera privada de água em sua casa. Porque a providência foi decretada a destempo.

Ouve-se, lê-se e…pasma-se!

Portugal, tanto “progresso”, “modernices” nos planos da moral sexual, violência e arrojadas cenas de sexo q. b. nas televisões em horário vespertino ao alcance das crianças e…, quanto à garantia de fornecimento de água, de fiabilidade, de continuidade no abastecimento, mesmo pelo recurso aos tribunais, “rigorosamente, absolutamente nada”!

Exigem-se pagamentos acumulados de 10, 15 anos contra a lei que estabelece a prescrição em 6 meses… Recorrem os serviços às execuções fiscais quando a jurisdição idónea é a judicial, que não a administrativa e fiscal! Em atropelo permanente às regras mais elementares. E contra interesses e direitos dos consumidores.

Importa, por conseguinte, indagar: em que país estamos? Viveremos sob a coordenada das leis, em um Estado de Direito? Viveremos deveras? Ou sob o império do poder dos monopólios e oligopólios e do terror que espalham em seu derredor?

Não estamos a falar de um ignoto povo lá para as terras do fim do mundo, lá para o Cuando-Cubango, na Angola de que fugimos a sete pés após cerca de cinco séculos de permanência…

Estamos a falar de um país europeu, ainda que amparado a este recanto entre as “anharas” da Estremadura espanhola e as salsas águas do Atlântico, que os nossos nautas sulcaram em circunstâncias trágicas, por vezes…

Estamos a falar de um País que deu novas perspectivas ao mundo, estreitou as distâncias, expandiu a fé, concorreu para o reconhecimento dos direitos humanos, se miscigenou, e se Deus fez o branco e o negro, exibe como criação sua o “mulato”, o “mestiço”… como diria o imortal Gilberto Freire!

Para consumo interno, em matéria de direitos humanos, de direitos dos consumidores… bem se pode dizer como nos ritos processuais: “aos costumes disse nada!”

Portugal pode louvar-se em atitudes do jaez destas? Noventa (90) dias para o decretamento de uma providência cautelar em matéria de abastecimento de água a uma instalação onde a vida se”consome” dia-a-dia e a água se torna algo de “imprestável”?

Que volta se poderá dar a isto?

Os juízes também se dão conta de que são consumidores? Ou não consumirão água para as abluções matinais, nem para a confecção da sopa “tranca-do-estômago”, como diz o povo, tão-pouco para a higiene com que é mister se apresentem sob a toga que lhes confere o ar austero, distante, imparcial com que hão-de apreciar e julgar os feitos que se lhes submetem? Claro que estas observações podem enfurecer corporativamente quem se ache intocável mercê dos pergaminhos de que se orna a função.

Claro que poderíamos evitá-las. Mas não haverá quem as não ache oportunas e convenientes? Não há que adaptar a rigidez das leis às circunstâncias de facto que envolvem a realidade subjacente?

Teremos de continuar – pelo medo, pela ausência de coragem cívica, pelo dobrar permanente da cerviz perante quem detém uma parcela de poder, seja ele qual for – a compactuar com todos estes descasos, estes atropelos, os dos serviços públicos essenciais, os dos diferentes órgãos de soberania, em que o poder judicial se inclui, que dá assim cobertura aos desmandos e perpetua o sofrimento das pessoas, das famílias, dos consumidores, em suma, como categoria a que se imputam direitos e deveres?

Quem foi que disse que direito não é também sentimento? E que deveríamos evitar a “jurisprudência dos sentimentos” (Befhül Jurisprudenz)?

Portugal séc. XXI: o incontornável reino das tropelias, onde os direitos dos consumidores são “mercadoria” ao alcance da exploração de uma qualquer multinacional (de uma qualquer EUROCONSUMERS, SA, holding a que pertence a Deco-Proteste, Ld.ª e, no Brasil, a Proteste…), com resultados notórios, mas em que os direitos das pessoas vão pelo cano, vão água abaixo!

 

Proposta carreada ao parlamento pela APDC

Que para os serviços públicos essenciais, em caso de procedimento cautelar deduzido pelo consumidor, a medida correspondente haja de ser decretada em 48 horas… impondo-se a imediata suspensão da medida de “corte”

Perspectivas a debater no seio da sociedade portuguesa no particular da gestão da água e da consideração devida ao consumidor, centro de imputação de direitos

PREÇO

  1. Como é composto o preço da água que consumimos?

1.1. No preço – porque não haver para as moradias que têm jardins um preço para o consumo doméstico e outro para o consumo do jardim (piscinas excluídas)?

 

DESPERDÍCIOS

  1. Os desperdícios na cadeia de distribuição:

2.1. Em quanto montam? Na rede primária – da fonte até ao local da distribuição: 30%, 40% 60% ou mais?

2.2. Em quanto montam? Na rede secundária – da distribuição local (rupturas, assistência técnica, desvios) : 30%, 40% 60% ou mais?

2.3. Que valores atingem na utilização pública – regas de praças, jardins, rotundas, etc… com água a jorrar livremente para os passeios, aspersores a regar a rua, quando deviam estar a regar a relva, etc…?

2.4. Que valores se apresentam para as novas construções – como é pago, como é consumido, etc…?

 

OBRIGATORIEDADE DA LIGAÇÃO À REDE PÚBLICA E SUSPENSÃO DE FORNECIMENTO

 

  1. Há obrigatoriedade de conexão à rede pública. Então como se define o corte unilateral da empresa concessionária ao consumidor? Se é obrigatório, não pode haver exclusões! Qual o regime de exclusões e até onde vai a competência dos concessionários? Onde começa o público e acaba o privado?

 

PRIVATIZAÇÃO DA GESTÃO E INTERESSE PÚBLICO

  1. Como são atribuídas as concessões? O regime da privatização da gestão. Como é feito o controle da prestação do serviço das concessionárias? As concessões podem ser revogadas por inadequação manifesta aos deveres a que se adscrevem as concessionárias?
Foto: Maria Puppim Buzanovsky

Foto: Maria Puppim Buzanovsky

PROCESSO DE RECLAMAÇÃO E RESPECTIVA GESTÃO

  1. Reclamações – atribuições e competências da Entidade Reguladora? Tarifas, qualidade ou prestação? Ou nada? Para que serve a Entidade Reguladora?

 

RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS

  1. Taxa dos resíduos sólidos urbanos:

6.1. porquê a taxa do lixo agregada à factura de água? E dependente da mesma?

6.2. o porquê de se pagar taxa de saneamento baseada na água utilizada na rega (dos jardins, etc..)? Se a mesma volta à terra sem necessidade de tratamento?

 

FACTURAÇÃO POR ESTIMATIVA?

  1. Leituras e contagens/facturação: se há obrigatoriedade da facturação mensal, não deveria haver leitura mensal? Porquê ter facturações baseadas em estimativas, que são no segundo mês corrigidas com leituras reais? Como se esclarecem as distorções?

 

CONTADORES, AVARIAS E REPARAÇÕES

  1. Qual o regime para avarias de contadores? Porquê uma lei especial para os concessionários de água prevendo facturação até 6 meses antes da descoberta do problema? É para premiar a incompetência? Será que quem faz a leitura não pode verificar se o contador funciona? Em qualquer empresa privada: se não facturou, não recebeu! E não pode ir buscar, por direito, os 6 meses anteriores! Esta cláusula deveria ser banida e integrada a leitura física (por pessoa ou electrónica) mensal obrigatória. Os custos são negligentes ao pé do desperdício?

 

CONCESSIONÁRIAS, GESTÃO E PREBENDAS…

  1. As concessionárias também têm prémios de gestão? Baseados em que parâmetros? Isso não influencia os preços? Ou os preços mais altos vão influenciar resultados?

 

MAUS AGOIROS

  1. O anúncio da elevação do preço da água por parte da Ministra do Ambiente, em época de depressão e de sacrifícios, a que estratégia obedecerá? O que se pretende com este eterno esmagar do consumidor que não pode confiar numa administração eficiente e cujos desperdícios paga com língua de palmo?

 

Carta de direitos dos serviços públicos essenciais

O debate terá de ser permanente e instante! Teremos de pugnar por uma CARTA DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS, bem mais extensa, bem mais abrangente, bem mais rigorosa para que aspectos como os aventados não constituam um permanente quebra-cabeças para o consumidor!

Os consumidores assistem impunemente ao malbaratar dos seus direitos ante a nula intervenção da administração pública sempre que desvarios do estilo ocorram. E com que frequência tal sucede!

Há que produzir, neste particular, uma lei mais para se poder deitar fora inúmeras leis que, descoordenadamente, regem os domínios de que curamos.

Mas para tanto a administração pública terá de fazer um esforço de molde a que as nossas perspectivas se contemplem. A mais não aspiramos!

 

*Director do CEDC – Centro de Estudos de Direito do Consumo – Coimbra

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