Adolescer: um direito a ser amparado

Artigo publicado na 44ª edição do Jornal Estado de Direito.

(Para Lucas, que, após 14 anos de acolhimento, e antes de completar seus 16, fugiu, sem deixar rastros…procura-se…)

H. tem 52 anos. É pardo. Robusto. Fala e olhares tranquilos, sem rodeios. Cumpre sua terceira ou quarta pena, em regime fechado. É réu numa ação de Destituição do Poder Familiar. Conversamos, em audiência, por 20 minutos, ao final dos quais ele, apenas ele, decidi: “olhe, doutora, já decidi! Vou abrir mão do poder familiar que tenho sobre meus dois filhos. Sim, dos dois, e já! Estou no sistema prisional faz quase 20 anos e tenho visto, cada vez mais, a molecada de dezoito anos chegando lá, e muitos, muitos deles passaram por abrigos e pela fundação. E não quero isso para os meninos“. A conversa se alonga, mas H. está seguro e seu olhar continua tranquilo, sem rodeios, algo triste, mas reverberando conhecimentos profundos da vida prisional.  O segundo filho ele nem sabia que havia nascido; do primeiro não se recorda do rosto, pois o viu uma só vez, ainda muito bebê. Pede, então, que eu mande logo os meninos para uma família, que os tire do abrigo. Faz algumas considerações sobre a mãe das crianças, sem raiva, e se despede, agora já de novo algemado, com um muito obrigado, olho no olho.

D. e L., filhos de H, já vivem agora em família.

H. tem toda razão. Nós, Estado, sociedade e comunidade não damos conta, efetivamente, de nossa tarefa posta no artigo 4o do ECA, pelo qual somos responsáveis, todos, por assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dosdireitos das crianças e adolescentes referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

  Toda criança que, por alguma peculiar situação, permanece tempos em acolhimento institucional, uma hora ou outra, de meninas e meninos bonzinhos e cordatos, adolescem! E como qualquer ser em estado de adolescer, rebelam-se, brigam, exigem e pedem limites, olhares singulares e poucas vezes os recebem. Uma instituição concentra crianças e jovens em número excessivo! São 20 pela atual regulamentação. Mas, digam lá, que família possui 20 filhos, entre idades de 0 a 18 anos, simultaneamente? Alguns mais carentes, outros quietos demais, outros agitados demais, outros tristes, alguns revoltados, uns que gostam de estudar, outros que odeiam a escola, uns que sentem saudades e o dizem, outros que engolem a dor da falta da mãe, do pai, de qualquer abraço consistente. O que deseja um adolescente que vive num abrigo, sem expectativa de volta ao lar (lar já não há!) ou de achar outro, e de quem esperam, logo aos 18 anos, que alcance autonomia, objetividade, segurança e desempenho (estudar, trabalhar e cuidar-se!)?!

É preciso tirar o véu do descaso que envolve a situação de tantos jovens que estão nas instituições acolhedoras, as quais, apesar do nome qualificativo, um dia apontam ao jovem a porta da rua. E o fazem sem raiva ou desprezo. Aliás, muitas instituições permanecem dando apoio a muitos desses jovens. Mas, fato é que, aos dezoito anos, eles tem que sair e ir à vida. E muitos sucumbem, por medo ou angústia, frente a esse imenso desafio. Fogem, abandonam a escola, constroem vínculos nas ruas e, quase sempre, o tráfico, que está em não poucas esquinas, consiste no destino de muitos. Destino afável esse, que lhes dá dinheiro, sensação de pertencimento e amparo, até a hora do fim, na morte ou na prisão. Tal moto contínuo apenas poderá cessar se, cada vez mais, políticas públicas sejam postas em ação e a sociedade também se mobilize. Programas de acolhimento familiar e de apadrinhamento devem ser alternativas adotadas para permitir que crianças e adolescentes, aos quais a vida imponha afastamento do lar original e dificuldade de serem adotadas, usufruam de vínculos afetivos e amorosos de famílias outras que se disponibilizem para tal gesto de amor. A situação da infância e adolescência, às quais chamamos “abandonadas”, pode sofrer mudança e ser superada em suas mazelas e dores. Basta que abandonemos nós o olhar de piedade que se costuma lançar sobre o tema e entremos em ação, todo dia, sem esperar que, a cada ano, no final dele, o tal espírito natalino nos lembre disso.

Dora Martins – Juíza da Vara da Infância Central de S.Paulo, membro da coordenaria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de SP.

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