A violência contra o servidor público

Coluna Democracia e Política

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Governos neoliberais massacram servidores públicos 

A proposição de Edson Teles defendida no artigo Subjetivação da Violência (Cult 232, 1/3/2018) precisa ser ampliada: a estratégia dominante de expansão da violência brasileira é a subjetivação do outro como inimigo da sociedade. Mas o ódio que se prolífera na violência institucional do Estado não é apenas visível no sistema prisional ou nas ações homicidas das polícias militares nas periferias urbanas. Pior, sequer as práticas sociais punitivas de linchamento são exclusividade de populações mais agressivas. Há um ator social que vive exatamente como as comunidades de bairros o fantasma da “sensação de violência”: os servidores públicos.

A forma da violência atende, no governo estadual, pelo desmonte da máquina pública pelo governo José Ivo Sartori. A vitimização do servidor que o processo de desmonte de fundações e órgãos produz efeitos subjetivos,  não apenas pela extinção de órgãos, demissão de servidores ou relocação de funcionários em outros órgãos.  Por outro lado, os sucessivos ataques de Nelson Marchezan Jr. aos trabalhadores da Prefeitura, reiterados em jantares com a classe empresarial, com as ameaças ao fechamentos de equipamentos como a Carris e o DMAE, atacam a auto-estima do servidor e não estão entre as atitudes desejadas para o bom governante.

Diferente da violência praticada na sociedade, aquela que sabemos que “60 mil pessoas” são assassinadas por ano, produto da desigualdade social que vem se acentuando, há milhares de servidores públicos que vem sofrendo violência psicológica que não aparecem nas estatísticas. É diferente a violência que é praticada por agentes de segurança, que é medida por indicadores diversos, já que a violência contra o servidor púbico é praticada justamente por aqueles que deveriam ou poderiam atuar no sentido de criar condições para o exercício de sua função. Essa violência vem de cima para baixo, do chamado “alto escalão”, das chefias imediatamente impostas pelas autoridades de plantão e que estão imbuídas da mesma ideologia os governantes.  Já estamos vendo uma era de expansão da depressão entre servidores públicos e há casos recentes de suicídios e crises emocionais no ambiente de trabalho que são indicadores notáveis de que a política de arrocho do servidor público tem efeitos no corpo dos servidores.

Fonte: pixabay

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Podemos dizer que os governantes brasileiros responsáveis pela implantação do modelo neoliberal são os que mais estressam seus servidores. Há relatos de comissões internas de prevenção ao acidente e segurança do trabalho no interior do serviço público que atestam casos recentes de desgaste psicológico da categoria. Mas não há registros oficiais que façam a computação dos casos de distúrbios psicológicos em servidores públicos, ainda que o número de licenças médicas por motivos de saúde seja um importante indicador.

Como registrar a violência subjetiva do servidor?

Edson Teles lembra que já há uma computação nacional de dados sobre mortes violentas que registam já “intervenções legais e operações de guerra” como se fosse natural um estado bélico em nossa sociedade. Quando notificaremos as comissões de segurança do trabalho sobre ocorrências de crises dos servidores públicos pelas condições de trabalho impostas por governos neoliberais? Por quanto tempo silenciaremos sobre o fato que servidores públicos estão morrendo por causa das políticas governamentais: como é possível imaginar que servidores públicos, com seus empregos conquistados por décadas, frente a um processo de extinção de seu trabalho, não adoeçam?

Quando tivermos o Atlas da Violência contra o Servidor Público, teremos dados para mostrar que servidores públicos tem um percentual maior de adoecimento em governos de direita do que em governos de esquerda. E quem são as maiores vítimas dos governantes de plantão? Em primeiro lugar, os servidores ligados diretamente as funções de assistência social, pois este campo, já é caracterizado por uma corrosão do sentido público de servir dada as características sociais atuais. Em segundo lugar, todos os servidores ligados a órgãos dos governos que, de uma hora para outra, são ameaçados de extinção. Quanto aumentaram os casos de pânico entre estes servidores?

Então, o que temos é um quadro endêmico de violência que faz vítimas entre negros, pobres mulheres e servidores públicos. Num certo sentido, os últimos sem sempre vítimas invisíveis, já que o mais comum é falarmos de vítimas entre negros. É também, uma vitimização diversa pois a violência é diferente: autores já falam do genocídio que ocorre na sociedade brasileira, da produção do assassinato de milhares de pobres. Pode parecer também à primeira vista, um exagero falar do “sofrimento”, da “dor”, do servidor público, mas a ideia é que crescemos com a ideia de que o serviço público era o trabalho ideal, mas não nos demos conta que a precarização do trabalho do servidor público o levou ao outro extremo num curto espaço de tempo.  O que vem ocorrendo com a sucessiva ação de precarização da função pública é um incremento de estratégias de controle, submissão, um massacre da função pública de forma institucional e sistêmica. Como não perceber o sofrimento de técnicos da FEE, da Fundação Zoobotância, da TVE frente a extinção de suas funções, desagregação de seu trabalho e de seus acervos conquistados se não como massacre de indivíduos concretos, os servidores públicos?

A precarização do trabalho não é algo normal

Não há servidor público que aceite a precarização de seu trabalho como algo normal. Ela é violência em estado puro, pois a morte do servidor não precisa ser real, pode ser simbólica, pelo desaparecimento do sentido de seu trabalho no interior do estado. Enfrentar as políticas de extinção de órgãos públicos, do parcelamento salarial, da não realização de concurso público que acarreta o sobre trabalho no interior das instituições públicas, é condição básica para enfrentar a violência de Estado contra seus membros, os servidores públicos. Centenas de servidores estaduais tem negado o direito de autodefesa de seu trabalho, são tratados como obstáculo pelos governos de plantão. O governo da população, que até então tinha a violência como mecanismo de manutenção de dominação, estende seus braços para o serviço público.

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Teles afirma que regimes de subjetivação como estes giram em torno da necessidade de segurança para justificar medidas fortes de intervenção, entre elas, o ataque aos servidores públicos “é preciso diminuir a máquina, é preciso demitir, é preciso reduzir salários” cantilena liberal para reduzir a função pública, para precarizar para depois privatizar. Não é incrível que a violência de estado não se dirija apenas a sociedade, mas ao próprio estado, aos seus servidores?  O servidor não é só o bode expiatório, é também o inimigo interno a quem cabe ao estado combater. Ora, sabemos que não teremos políticas públicas quando não houver mais servidores públicos, pois eles encabeçam na base sua realização. A esquizofrenia do processo está no fato de que, quanto mais o estado afirma que precisa atender saúde, educação, mais ele desmonta as próprias estruturas responsáveis por sua efetivação.

O discurso neoliberal tem na disseminação da ideia do serviço público como inimigo da sociedade a forma de desestruturar o estado a partir de dentro. Desde a Constituição de 1988, a narrativa de construção do Estado brasileiro tinha como princípio a valorização do servidor público. Aos poucos, entretanto, fomos deixando de lado tudo aquilo que valorizava o servidor, para substituir pela relação de ódio dos dias atuais. O servidor público foi rebaixado a posição de vagabundo, estranho, fora da ordem e da disciplina, e nos termos de Teles, “considerando-se esse outro como estranho, estrangeiro, aquele que não é “nós”. É como se ele fosse um ser contaminado, contagioso, estranho ao corpo social” (p.25). Não é exatamente esse o lugar dado ao servidor público na atualidade.

O servidor público como inimigo

O servidor público foi escolhido como inimigo no momento da implementação de políticas neoliberais. Parafraseando Thainá de Medeiros, “o inimigo foi escolhido e vive na repartição pública”. Ali, as pessoas que circulam são colocadas sob suspeição, culpamos o servidor público pelas mazelas da educação, sem reconhecer que as políticas educacionais são também produto dos governos e seu investimento. O que estamos fazendo? Estamos culpando que tem por obrigação fazer o Estado Social, culpamos o servidor público quando deveríamos estar culpando as lideranças de estado que assumiram o governo. Os servidores que enfrentam situações adversas de trabalho não têm suas histórias contadas.

Você vê por todo o lugar, rádio, televisão, etc., inúmeras redes que alimentam o noticiário com a visão do servidor público como algo a se desvencilhar. E por essa razão, terminam por reproduzir a narrativa que diz que o servidor público é um peso da administração. Ora, o problema que o governo diz ter solucionado com a extinção de fundações e equipamentos nem passa perto da solução do problema.

Os servidores públicos precisam urgentemente construir sua narrativa de sobrevivência em tempos sombrios. Isto é, precisam afirma o perigo para a sociedade das medidas que desmontam a máquina pública. O serviço público é necessário para a sociedade, nele se criam espaços de sobrevivência intelectual, e por esta razão, precisam serem empoderados ao invés de fragilizados. Ouvir o servidor público, deixa-lo assumir suas funções: o dia em que o servidor público juntar-se aos demais movimentos sociais, estará claro que é um sujeito passivo no processo, e daí uma oportunidade de assumir seu poder.

A autoridade pública como vampiro

Por outro lado, é preciso cada vez mais, criar imagens para entender o que se passa com a autoridade de plantão. Não há figura melhor para seu entendimento do que a do vampiro. Como defunto que escapa do túmulo para sugar o sangue dos vivos, nossos governantes encontraram no sangue dos servidores o alimento para seu projeto de governamento. É um ser entre dois mundos, pois ao mesmo tempo que reivindica funções mínimas para o Estado (saúde, educação), faz de tudo o que pode para retirar as condições do exercicio desta função do serviço público.

Nossos governantes em relação aos servidores, comportam-se como o Drácula, de Bram Stoker e não é nova a associação entre vampiros e capitalistas, sempre a espreita para explorar suas vítimas. Mas exatamente porque nossos governantes são os vampiros da atualidade? Porque com suas políticas para com o serviço público, aproximam-se para provocar a morte lenta de servidores aspirando sua substância vital, a vontade de servir ao púbico. Privados de convicções de trabalho, com salários parcelados, com seus olhos vermelhos e dentes pontiagudos retira a vida dos trabalhadores públicos, sua vontade de trabalhar, sua dedicação a função pública. Pode haver maior violência do que a morte de servir ao público para um…servidor público?

É provavel que precisamos incluir na história dos vampiros nossos gestores públicos. Grandes nomes compõem tanto a história literária quanto a história cinematográfica dos vampiros: Baudelaire, Byron na literatura, narraram as peripécias de vampiros e  Nosferatu, de Murnau, foi o primeiro e mais célebre vampiro da história. A ironia política que associa políticos a vampiros, por semelhança de sua imagem  ou ações ainda está por ser criada. A única certeza que temos é que, sejam quaisquer âmbitos, o vampiro é um personagem e uma imagem, um assunto que coloca a questão: o que acontece depois da morte? Diz Claude Lecouteux em “História dos Vampiros”(Edusp): “Desde 1741, o termo “vampiro” assume na Inglaterra o sentido de “tirano que suga a vida de seu povo”. A imagem cai como uma luva para os tempos atuais.

 

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Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

 

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