A troca de partido e a jurisprudência do STF

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Mudança de partido X mandato

Em sessão de 27 de maio de 2015, o Supremo Tribunal Federal julgou por unanimidade procedente pedido do Procurador Geral da República, formulado na ADi 5081, em face dos arts. 10 e 13 da Resolução 22.610/2007, do Tribunal Superior Eleitoral, decretando inconstitucionais os termos “ou o vice”, constante do art. 10; “e, após 16 (dezesseis) de outubro corrente, quanto a eleitos pelo sistema majoritário”, constante do art. 13,e conferiu interpretação conforme à Constituição ao termo “suplente”, constante do art. 10,com a finalidade de excluir do seu alcance os cargos do sistema majoritário.”.

E foi fixada a seguinte tese: “A perda do mandato em razão da mudança de partido não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário, sob pena de violação da soberania popular e das escolhas feitas pelo eleitor”, nos termos do voto do Relator, Ministro Luís Roberto Barroso.

A aludida Resolução do TSE dispôs sobre a perda de mandato, inclusive procedimento, na esteira de decisões do STF, em mandados de segurança. O TSE tem um polêmico poder normativo – ou regulamentar – previsto no art. 23, IX, do Código Eleitoral.

Para quem acompanha o mundo jurídico e, em especial, as decisões do Supremo Tribunal Federal, tal deliberação não vem sem alguma surpresa. É que o mesmo Tribunal, tempo atrás, interpretara a Constituição para definir que os parlamentares que trocassem imotivadamente de partido perderiam o mandato, apesar de não haver nenhuma norma específica no texto da Constituição Federal que lhe desse amparo.

Essa decisão é uma daquelas que compõem o quadro do “ativismo judicial” do STF. Talvez um motivo importante não apareça publicamente com nitidez, embora debatido nos votos: é que houvera, nos anos anteriores à Resolução do TSE, uma quase descontrolada ocorrência de desfiliação e troca de partidos, muito especialmente, na Câmara dos Deputados, principalmente pelos recém-eleitos.

 

troca

A ADi 5081

O raciocínio desenvolvido na ADi 5081 foi, em síntese, expresso na Ementa: “3. O sistema majoritário, adotado para a eleição de presidente, governador, prefeito e senador, tem lógica e dinâmica diversas da do sistema proporcional. As características do sistema majoritário, com sua ênfase na figura do candidato, fazem com que a perda do mandato, no caso de mudança de partido, frustre a vontade do eleitor e vulnere a soberania popular (CF, art. 1º, par. ún. e art. 14, caput). 4. Procedência do pedido.”.

Explicando os fundamentos da decisão. No sistema majoritário, o candidato escolhido é aquele que obteve mais votos, não importando o quociente eleitoral nem o quociente partidário. Ao contrário, o mandato parlamentar conquistado no sistema eleitoral proporcional pertence ao partido político, e não ao indivíduo, em razão da natureza do próprio sistema proporcional, em que se calculam primeiro os votos obtidos pela legenda ou pelo partido (quociente partidário), para somente após classificar, a partir dos mais votados, aqueles que estão eleitos, individualmente.

Assim, se o parlamentar eleito decidir mudar de partido político, ele sofrerá um processo na Justiça Eleitoral que poderá resultar na perda do seu mandato. Neste processo, com contraditório e ampla defesa, será analisado se havia justa causa para essa mudança. O assunto está disciplinado na Resolução 22.610/2007 do TSE, que elenca, inclusive, as hipóteses consideradas como “justa causa”.

Partido-Politico

Necessariamente, aí começam as dúvidas e o leitor começa a refletir. De onde vem a afirmação de que o povo vota no partido, nas eleições proporcionais? Certamente, não há como extrair essa conclusão da Constituição, porque ela apenas refere o sistema proporcional, que, aliás, pode ser aberto ou de lista (como no Uruguai, por exemplo), coisas de resultados consideravelmente diferentes.

Quem define o tipo de sistema proporcional é o Código Eleitoral (art. 105 e seguintes). Falta ver se a conclusão é extraída da prática política, o que, aliás, não seria suficiente para uma decisão jurídica. Não é. O próprio Relator alerta para a acirrada competição interna no sistema proporcional de lista aberta: “O terceiro problema é que o principal adversário do candidato do partido A é o outro candidato do partido A. Vale dizer: em lugar de ser um debate programático entre candidatos de partidos diversos, o processo se torna uma disputa personalista entre candidatos do mesmo partido”. Outra afirmação do Ministro Relator: “O sistema partidário é caracterizado pela multiplicação de partidos de baixa consistência ideológica e nenhuma identificação popular.”. Como extrair dessas considerações a conclusão de que o mandato pertence ao partido?

De outra parte, como se sustenta o raciocínio, adotado pelo STF, de que o povo é soberano para indicar os agentes políticos nos cargos majoritários, mas não o é para eleger os parlamentares, vereadores, deputados estaduais e federais, pelo sistema proporcional? Certamente, não por considera que a fidelidade e o Partido estariam acima a soberania, ou que não há exercício de soberania na eleição proporcional.

 

População brasileira e participação política

Pensemos conforme a realidade. A população brasileira não tem tradição de participação política. As manifestações de rua dos últimos anos são inorgânicas e sobre aspectos pontuais ou então através das chamadas “redes sociais”, maniqueisticamente contra ou a favor, sem apresentar qualquer programa consistente. Quanto aos representantes proporcionais, isto é, vereadores, deputados estaduais e federais, o voto, na maioria dos casos, opção de undécima hora, é dirigido sobretudo a pessoas, e não a partidos ou programas.

Nas eleições majoritárias, porém, o quadro se altera um pouco, sobretudo nas eleições para Presidente e Governador. Aí passam a contar alguns ingredientes ideológicos, ou programáticos, expressos por distintos partidos, por vagos ou frágeis que sejam. Isso tem aliás a ver com o sistema presidencialista, e suas peculiaridade no Brasil. A pessoa do candidato, ao contrário do que afirma o Ministro Relator, é menos importante do que no caso dos representantes no Poder Legislativo. Basta observar e recorrer às pesquisas já realizadas a respeito do assunto.

voto

A troca de partido por parte de um Governador ou Presidente da República é ato de muito maior gravidade do que de qualquer outro, seja Senador, seja deputado ou vereador. E, excetuada a justa causa, arrasta a possibildade de que o programa de governo apresentado na disputa eleitoral seja modificado, frustrando aí sim, a vontade dos eleitores e a própria soberania.

Aliás, o TSE, na própria Resolução impugnada traz argumentos mais correntes e consistentes, em nosso ver, do que os adotados pelo STF. Eles são reproduzidos com fidelidade no voto do Ministro Relator:

“Os principais fundamentos desta decisão foram os seguintes: (i) a centralidade dos partidos políticos no regime democrático; e (ii) o fato de os candidatos do sistema majoritário também se beneficiarem da estrutura partidária para se eleger, diante das exigências de filiação partidária, escolha dos candidatos em convenção, registro das candidaturas na Justiça Eleitoral, identificação dos concorrentes pela legenda do partido, celebração de alianças; financiamento da campanha com recursos do fundo partidário, utilização dos espaços de rádio e de televisão para a propaganda individual etc. Portanto, haveria um dever jurídico de fidelidade dos candidatos às agremiações partidárias que os colocaram no poder, inclusive no sistema majoritário. Por essas razões, a infidelidade partidária teria a mesma consequência em ambos os sistemas eleitorais: a “devolução” do mandato ao respectivo partido.”

dezoito brumário de luís bonaparte

Marx, em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, analisou brilhantemente a fragmentação desigual da soberania entre o Executivo e no Legislativo, nas condições da França de 1848. Nesse caso, a soberania se partilharia, segundo ele, entre 750 representantes, de um lado, e entre um indivíduo, de outro, o próprio Presidente da República. A Assembleia estava em “uma relação metafisica” com a Nação, enquanto o Presidente em uma “relação pessoal”. Mas não cabe aqui nenhum paralelo com o raciocínio desenvolvido pelo STF. Tudo leva a crer que o STF atacou um problema que já se manifestara em larga escala, consumado de forma escandalosa. Mas não quis ou não soube agir de forma preventiva. Trata-se de uma decisão pragmática, mas de curto alcance.

É bem verdade que há muito mais a dizer, obviamente, no campo da ciência política e da sociologia. É difícil falar de um segmento normativo ao qual não se dedica respeito, em geral. A crise do sistema político é profunda e parece definitiva. O que o Poder Legislativo – e até mesmo as assembleias constituintes – têm produzido no Brasil seria escandaloso, não fosse o fato de que se repetem há décadas os casuísmos, sem reação efetiva.

Uma consideração final: irá o STF, uma vez provocado, declarar a inconstitucionalidade da Emenda 91, promulgada no dia 18 de fevereiro deste ano, que liberou, às escâncaras e mais uma vez (!) a todos os detentores de mandato eletivo para trocar livremente de Partido? Aguardemos.

 Marcus Vinicius Martins AntunesMarcus Vinicius Martins Antunes é Articulista do Estado de Direito – Doutor em Direito pela UFRGS, ex- Professor Adjunto da UNISINOS, ex-professor da Faculdade de Direito Ritter dos Reis, e ex-Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
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