Coluna Valdete Souto Severo
A falácia da “reforma”
Muito já foi dito sobre a chamada “reforma” trabalhista. A começar pelo fato de que nem deveríamos chamá-la reforma, na medida em que não se propõe a melhorar ou consertar problemas decorrentes de um suposto anacronismo da legislação trabalhista.
Em realidade, a CLT há muito vem sendo alterada. Poucos são os dispositivos que mantêm sua redação original. E examinando as legislações que operaram as piores alterações no texto dessa consolidação de leis, é fácil perceber a relação direta entre o desmanche dos direitos trabalhistas e os períodos de investida autoritária. Daí, já se percebe a direta relação entre direitos sociais e democracia.
Trata-se de um raciocínio simples. Apesar de a democracia relacionar-se especialmente com os chamados direitos individuais, de cunho flagrantemente liberal, é certo que a participação na vida pública, a possibilidade de pensar e atuar politicamente, expressar livremente o pensamento, escolher representantes e defender visões diferentes de mundo, são possíveis apenas em uma realidade na qual as pessoas não tenham que se preocupar com condições básicas de sobrevivência.
Brecht já dizia que “para quem tem uma boa posição social, falar de comida é coisa baixa. É compreensível: eles já comeram”.
Essa é, na mais simples compreensão do tema, a relação direta entre direitos sociais e possibilidades democráticas. Por isso, governos autoritários tendem a eliminar, seja formalmente, seja na concretude das relações materiais, os direitos sociais.
Direito do Trabalho e o capital
O Direito do Trabalho é exatamente o conjunto de regras que rompe com as classificações próprias do Direito moderno. Não há como inseri-lo nas “caixinhas” tradicionais do estudo jurídico. Não estamos diante de um direito individual ou coletivo, as regras trabalhistas são ao mesmo tempo, ambos: um direito social. Suas regras habitam tanto a esfera privada quanto a pública. Até mesmo a sagrada separação entre direito material e processual é superada pelo Direito do Trabalho, especialmente no Brasil, através da opção do legislador de 1943. Basta pensarmos na questão do ônus e do dever de prova. A CLT estabelece deveres de documentação, em regras materiais, cujo objetivo é produzir dever de prova, em âmbito processual. O empregador, portanto, deve materializar a relação de trabalho na CTPS do trabalhador, registrar horário, tomar recibo do salário que paga, exatamente para que, em caso de judicialização do conflito, haja um modo de o Estado reconstruir a realidade desse vínculo. As regras materiais, portanto, fixam deveres de prova, rompendo com a separação, até hoje cara ao processo civil, entre os âmbitos do direito material e processual.
Tudo isso não é obra da genialidade dos legisladores da década de 1940, nem estou aqui defendendo a tese de que a CLT é um conjunto de regras que nada deve à classe trabalhadora. Não podemos esquecer que Direito é instrumento de conservação da ordem do capital e que mesmo o Direito do Trabalho está inscrito nessa mesma racionalidade. Só assim conseguimos compreender, por exemplo, o fato de que uma legislação de proteção a quem trabalha contenha regras sobre a despedida pelo cometimento de falta grave, que colocam o trabalhador em situação de absoluta desvantagem e precarização, em relação ao tomador do trabalho. Só assim podemos compreender a existência de regras que vinculam a atividade sindical ao Estado, com o claro intuito de adestrar a força coletiva dos trabalhadores.
O Direito do Trabalho não é revolucionário, e por mais que represente um espaço de contenção da tolerada exploração do trabalho pelo capital, é capitalista e, portanto, comprometido com a manutenção das coisas exatamente como elas estão. É por isso que apesar de reconhece-lo como direito fundamental, e de compreender os limites que impõe à ânsia devoradora do capital, ainda assim convivemos pacificamente com a possibilidade de realização de horas extras ou de trabalho em ambientes insalubres, e, pois, nocivos à saúde humana. Isso, entretanto, não o condena.
Ao contrário, a compreensão da realidade histórica, de pressão da classe trabalhadora sobre os detentores do capital e das necessidades do próprio sistema de dar conta da miséria gerada pela exploração ilimitada da força de trabalho, que faz surgir regras trabalhistas, nos permite compreender que o Direito do Trabalho, embora sirva ao capital, tem um potencial transformador, exatamente porque desvela os problemas do sistema que adotamos, estabelecendo limites que, levados a sério, tendem a tensionar a realidade capitalista.
O Direito do Trabalho, exatamente por ser uma “concessão duramente arrancada do capital”, sempre esteve na mira dos “reformadores”, cujo ideal é a formação de uma sociedade em que não haja limites à concentração de renda, à exclusão social e à exploração dos recursos humanos e naturais. Em uma tal realidade, não há espaço para direitos sociais, cujo conceito é construído exatamente em face do reconhecimento da necessidade de o Direito (liberal) ceder espaço a uma lógica social de convívio humano, a fim de evitar que as características próprias do sistema do capital se tornem de tal modo agudas, a ponto de comprometer inclusive as possibilidades de vida na terra.
Equilíbrio entre capital e trabalho
O que estamos vivendo no Brasil, em relação aos direitos sociais, é um ataque, que não teve início com o golpe parlamentar de 2016, mas a partir dele assumiu ares de maior ferocidade. Mais um elemento a nos demonstrar a direta relação entre direitos sociais e um convívio democrático. Em tempos de exceção, interessa que a maioria da população trabalhe da forma mais precarizada possível, sem tempo para pensar e construir alternativas de convívio social.
Desde que a Constituição de 1988 erigiu os direitos trabalhistas à condição de direitos fundamentais, estamos tentando construir uma realidade menos assimétrica na relação de troca entre capital e trabalho. Em larga medida, porém, sequer conseguimos fazer valer esses direitos. O principal deles vem sendo sistematicamente negado, com o beneplácito da Justiça do Trabalho.
O direito à relação de emprego protegida contra a despedida arbitrária, fixado no art. 7o, inciso I, da Constituição não existe na realidade das relações de trabalho. A jurisprudência majoritária não reconhece o dever de motivação do ato de dispensa. Essa falha na concretização da ordem constitucional determina, na prática, a impossibilidade real de que trabalhadores e trabalhadoras exerçam seus direitos durante o período de vigência de um vínculo de trabalho. Eis porque a maioria absoluta das pessoas que recorrem à Justiça do Trabalho, para discutir lesões a direitos fundamentais trabalhistas, apenas o fazem quando já perderam o emprego.
Eis, também, a razão pela qual é mentiroso o argumento de que existem direitos demais para os trabalhadores e trabalhadoras no Brasil. Na realidade concreta da vida, esses direitos não são respeitados, senão pela vontade do tomador de trabalho. Essa foi, porém, a retórica utilizada pelos “reformadores” do golpe. Um discurso que seduz, porque é insistentemente reproduzido pela mídia e porque vem sendo utilizado para promover o desmanche de direitos trabalhistas, desde a década de 1990. Vários exemplos podem ser dados, desde a Lei 9.601 que cria o chamado “banco de horas”, passando pela súmula 331 do TST, até chegar, em tempos mais recentes, às leis do motorista, do auxiliar “autônomo” de carga e descarga, das trabalhadoras domésticas ou da “parceria” nos serviços de beleza. Todas legislações anteriores ao golpe. Todas elementos de um mesmo percurso, que não se alterou sequer nos períodos de governo pretensamente de esquerda.
A retórica da exceção
A quebra das regras do jogo, que permite a retirada da Presidenta eleita de seu cargo também não é algo novo na realidade brasileira. Muitos outros foram dados ao longo dos anos de nossa história recente, tal como a possibilidade de reeleição, engendrada por FHC para permitir o exercício da função presidencial por mais um mandato. A ruptura com o modelo democrático de escolha dos governantes foi possível porque já havíamos, há algum tempo, rompido com algumas outras premissas necessárias ao convívio democrático. Basta ver a forma como os movimentos sociais e paredistas vinham sendo tratados pelo Estado, seja através da ação repressiva, seja por meio de decisões como a liminar concedida pelo STF, que praticamente elimina a possibilidade de greve em alguns setores do serviço público. Direitos trabalhistas foram eliminados ao longo das últimas décadas, por legislações flexibilizadoras, mas também por atos do executivo ou decisões do Poder Judiciário, de que é exemplo aquela que reduz o prazo prescricional para a cobrança do FGTS, de 30 para 05 anos. Em 2016, o impeachment consolida a retórica da exceção, ao romper com o mais elementar direito liberal: o de ser governado por quem foi eleito pela maioria dos votos. Trata-se, portanto, de um episódio emblemático, que não pode ser esquecido quando tratamos da “reforma”.
A partir daí, parece que tudo está permitido. E é nesse contexto de exceção que a Lei 13.467 foi aprovada em 2017, por um congresso que admitiu publicamente demitir-se de sua função de controle da legalidade das propostas legislativas que examinava. O relatório do Senador Ricardo Ferraço refere-se a problemas no projeto de lei que, só não seria alterado, segundo ele, em razão da promessa de Temer de que editaria medida provisória concertando o que fosse preciso. Ora, qual é a função do Congresso Nacional, ao discutir e aprovar propostas de lei, senão a de efetuar o primeiro controle de legalidade, constitucionalidade e convencionalidade do que ali se propõe? Que tipo de acordo justifica uma tal atitude do Senado Federal? E que urgência é essa que permite a alteração de mais de 200 artigos da CLT, sem qualquer discussão pública real e aprofundada?
Em abril de 2018, às vésperas de ver caducar a MP 808, editada por Temer apenas três dias após a entrada em vigor da Lei 13.467/2017, e diante das declarações do Deputado Rodrigo Maia, de que não colocará em votação a aludida medida, é possível afirmar que não havia urgência, nem acordo para a correção dos “problemas” da lei. Havia interesse na aprovação de um verdadeiro código empresarial, que pudesse ser inoculado na CLT com a perspectiva de, em pouco tempo, determinar a morte por asfixia, do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho.
Consequências do desmanche
Esse objetivo, há muito denunciado por quem milita pela efetividade do Direito do Trabalho, sempre foi negado pelos “reformadores”. Diziam eles buscar competitividade, geração de empregos e enfrentamento da crise econômica. Afirmavam que nenhum direito constitucional trabalhista seria afetado. Enganaram-se os que neles acreditaram. O trabalhador intermitente, pelo texto da “reforma”, perde o direito às férias, ao salário mínimo, ao repouso remunerado. O “autônomo” perde todos os direitos trabalhistas que a Constituição consagra. A regra constitucional de jornada máxima de 8h é rasgada pela previsão de que é possível contratar, individualmente, trabalho por 12h consecutivas, sem prejuízo da realização de horas extras e com possibilidade de supressão do intervalo. A despedida é ainda mais fragilizada, seja quando promovida de modo individual, seja através de planos de demissão voluntária com possibilidade de cláusula de quitação geral.
O resultado concreto da “reforma”, e isso nem os reformadores conseguem mais negar, é o aumento do desemprego , da concentração de renda e da precarização social. Fazia muito tempo que em Porto Alegre não víamos tantas lojas fechadas, tantas pessoas morando na rua, tanta gente pedindo comida.
Os verdadeiros objetivos dos “reformadores”, porém, ainda correm o risco de serem alcançados. São muitos os trabalhadores e trabalhadoras que não conseguem emprego no país (12,7 milhões segundo dados oficiais, que sequer contemplam aqueles que jamais tiveram CTPS anotada). São tantos os que já estão sendo contratados de modo precarizado, entre eles, professores universitários, jornalistas, médicos, advogados, muitos dos quais – por ingenuidade, ódio de classe ou simples alienação – apoiaram a “reforma”. São muitos também os despedidos em planos de demissão voluntária, acordos fraudulentos ou simples “desligamento”, palavra perversa que representa muito bem a forma como o capital lida com os seres humanos que dependem do trabalho para sobreviver.
Também há um número expressivo de pessoas que temem ajuizar demanda trabalhista, em razão dos obstáculos criados pela “reforma”. Sabem do risco de ter que pagar o advogado da empresa ou o perito judicial, caso o Estado não se convença acerca da lesão alegada. Sabem que o processo é público e que seus nomes estarão disponíveis para a consulta dos tomadores de trabalho, na rede mundial de computadores.
Ajuizar ação trabalhista, no Brasil, sempre foi um ato de coragem. Hoje é um ato de coragem extrema, que talvez não possa mesmo ser exigido daqueles que dependem do trabalho para sobreviver.
Na realidade dos vínculos existentes, o efeito principal da “reforma” é o reforço do discurso assediador. A Justiça do Trabalho, de espaço de cidadania, passa a constituir argumento para a retórica da submissão. À frase “se não está contente, vá procurar seus direitos”, soma-se: “e verás o que te acontecerá, pois terás que pagar meu advogado”.
O efeito mais grave desse desmanche, portanto, é a impossibilidade de um agir democrático. A precarização dos direitos trabalhistas faz com que a maioria absoluta da população brasileira tenha que voltar a se preocupar com a subsistência física, abrindo espaço para toda a ordem de desmanche, inclusive dos direitos liberais mais elementares, como a presunção de inocência ou o direito à manifestação.
Regras trabalhistas fortes e efetivas, fundamentadas no princípio que as faz necessárias historicamente (princípio da proteção), constituem uma verdadeira “arma democrática”, pois em uma realidade capitalista, são esses os direitos que permitirão uma sobrevivência minimamente digna. Quem não come, não mora, não vive de modo minimamente saudável, não terá condições de promover um agir político comprometido com avanços (ou contenção de retrocessos) sociais.
Há quem diga que todo esse processo destrutivo é resultado de um ódio de classe de quem não suportou a inclusão por renda realizada nos últimos anos em nosso país. Há quem diga que nossa herança escravista determina um olhar diferenciado para quem trabalha, assimilando-o como alguém que nunca seremos, alguém que pode ser revistado todos os dias, humilhado, tornado coisa. Há, ainda, quem aponte o movimento internacional do capital financeiro como o grande responsável pelas maldades praticadas na legislação trabalhista. Talvez estejamos vivendo o resultado de todas essas implicações. Agora, consumado o golpe à classe trabalhadora, com a aprovação dessa lei empresarial inserida no texto da CLT, precisamos buscar elementos para o seu combate. E deve ser um combate intransigente, que não reconheça validade a qualquer das regras da Lei 13.467. É preciso expulsá-la do ordenamento jurídico, senão por revogação expressa (talvez possível, a depender do que fizermos com nosso voto este ano) ou por decisão do STF (em algumas das tantas ADI’s lá ajuizadas), ao menos pela construção de uma jurisprudência que torne letra morta todas as aberrações inseridas no texto da CLT, reconhecendo-as como tentativas de aniquilamento do princípio da proteção, que é a razão histórica pela qual temos regras trabalhistas. Essa é a única forma de mantermos hígida a ordem constitucional de 1988 e o pacto que ali instituímos.
Em claras palavras, se há sentido para o Direito do Trabalho, e se ele é, como os demais direitos sociais, condição de possibilidade de uma convivência minimamente democrática, é preciso rejeitar regras que desprotejam e que, por isso mesmo, podem ser qualquer coisa, menos regras trabalhistas constitucionalmente válidas. Isso depende da atuação comprometida e insistente da advocacia trabalhista, do compromisso constitucional, da ressignificação da luta sindical. Dependerá, portanto, da nossa atuação concreta.
É certo que esse compromisso, que em larga medida dependerá da visão de mundo e do tipo de sociedade em que a maioria dos advogados, advogadas, procuradores, procuradoras, juízes e juízas do trabalho querem viver, nada resolverá acerca do estado de exceção em que estamos mergulhados. Será um passo importante, mas insuficiente. É preciso reconhecer que o que está em jogo, quando enfrentamos o tema da “reforma”, é a frágil experiência democrática que tivemos a partir da ordem constitucional de 1988 e que sacrificá-la poderá nos fazer mergulhar, novamente, na escuridão do autoritarismo que só se impõe com a força, a tortura e a morte de quem aposta numa convivência plural, inclusiva, solidária.
Valdete Souto Severo é Articulista do Estado de Direito – Mestre em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. |