Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
JUSTIÇA PROCEDIMENTAL. A Prática da Mediação na Teoria Discursiva do Direito de Jürgen Habermas, José Eduardo Elias Romão, Brasília: Maggiore Editora, 2005, 195p.
O livro que José Eduardo Elias Romão traz a público tem origem em sua dissertação de Mestrado, cujo título “Direito e Democracia no Brasil: a Mediação entre Faticidade, Validade, Tupinambás, Gringos e Orixás” já revela o formidável trabalho de reconstrução histórica, social e teórica que dá fundamento a uma “nova prática” de mediação de conflitos que, aqui, o autor apresenta com detalhes.
De fato, numa inédita abordagem que recupera a formação jurídica no Brasil, desde a sua pré-modernidade ou embriogênese, tal como recorta o autor, até a sua localização no processo contemporâneo de constitucionalização democrática como participação de todos, o livro oferece uma teoria crítico-discursiva do direito apta a dar conta de problemas teórico-metodológicos (de conhecimento) e problemas sociais (de reconhecimento) envolvendo o protagonismo de Tupinambás, Gringos e Orixás.
Não se trata, pois, de recurso metafórico, mas de resgate analítico de um amálgama normativo indiferenciado constituído pelos elementos religiosos, parentais, morais, tradicionais, consuetudinários e burocráticos, inscritos na materialidade do Direito pelos sujeitos que se representam e se constituem como identidade, historicamente, em nossa formação social.
Vale dizer, o autor adverte ser necessário aferir o envolvimento participativo que confere efetividade ao sistema jurídico, sob pena de perda de sua legitimação. Em artigo (“A elite brasileira e as leis que não pegam”, publicado em 05/02/06 no Caderno Constituição e Democracia, Faculdade de Direito da UnB, n. 4, p. 6) o autor reafirma este entendimento, mostrando como nossa história contém fatos e mais fatos que atestam a capacidade do povo brasileiro de reivindicar e lutar por liberdade e igualdade; sempre denunciando que se a lei não pegou, de duas, uma: ou se faz regras com legitimidade ou então se faz regras com legitimidade.
Quer o autor, com isso, por em relevo a dimensão mediadora do protagonismo social que traz efetividade às normas. A lei, – salienta ele em seu artigo já citado – que deve ser compreendida como uma redução escrita de um significativo processo público de discussão, não poderia ser capaz de exprimir todas as intenções, todas as vontades e todas as expectativas agregadas ao curso de sua produção. Por isso, devemos olhar para as leis e ver todo um processo legislativo muito maior do que o conjunto de parlamentares que o integra.
Desde essa perspectiva, aliás, já vinha fazendo inserção da noção de legitimação no elemento designativo do procedimento de mediação por entender dar-se aí o desenvolvimento de um processo comunicativo pelo qual ocorre, por um lado, a resolução de problemas e, por outro, a aplicação de um Direito efetivamente válido, em boa medida alternativa de acesso à justiça, que não se restrinja a acesso ao Judiciário (Romão, José Eduardo Elias. A Mediação como Procedimento de Realização de Justiça no Âmbito do Estado Democrático de Direito, in Azevedo, André Gomma de. Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação, Série Grupos de Pesquisa n. 1, vol. 2, Editora Grupos de Pesquisa, co-edição Maggiore Editora, Faculdade de Direito da UnB, Brasília, 2003, págs. 49-68; idem, Justiça Procedimental: a Resolução de Conflitos no Paradigma do Estado Democrático de Direito, in Alexandre Vitorino da Silva…(et. al), Estudos de Direito Público: Direitos Fundamentais e Estado Democrático de Direito, Estudos de Direito Público, Faculdade de Direito da UnB/Editora Síntese, Porto Alegre, 2003, págs. 71-94)., em Romão, pensada, a mediação, como uma pedagogia da autonomia (A Mediação como Método para Resolver Conflitos Sociais, Observatório da Constituição e da Democracia, Faculdade de Direito da UnB, n. 5, julho de 2006, p. 6).
As leituras oferecidas na senda de tal revisão paradigmática, conduzem, obviamente, a um reposicionamento crítico, tanto no plano do conhecimento, quanto no de sua realização, incluindo o processo de formação e de qualificação dos operadores jurídicos. E elas dão ensejo a uma concepção de Direito que, do ponto de vista racional, o deslocam para um modo de realização mais próximo dos padrões de efetividade democrática, concretizável por estratégias de mediação, e, portanto, refratário ao funcional procedimento adjudicatório da racionalidade legal-burocrática.
A mediação, neste passo, como a concebe o autor, se orienta pelo esforço de trazer ao Direito, uma dimensão dialógica, fundada no compartilhamento da autoridade que administra a relação conflituosa ao contrário da tradição decisionista que impõe a resolução do conflito. Trata-se de uma forma de mediação próxima a que propõe Warat:
“A mediação seria uma proposta transformadora do conflito porque não busca a sua decisão por um terceiro, mas, sim, a sua resolução pelas próprias partes que recebem auxílio do mediador para administrá-lo. A mediação não se preocupa com o litígio, ou seja, com a verdade formal contida nos autos. Tampouco tem como única finalidade a obtenção de uni acordo. Mas, visa, principalmente, ajudar as partes a redimensionar o conflito, aqui entendido como conjunto de condições psicológicas, culturais e sociais que determinam um choque de atitudes e interesses no relacionamento das pessoas envolvidas. O mediador exerce a função de ajudar as partes a reconstruírem simbolicamente a relação conflituosa” (Warat, Luis Alberto, Surfando na Pororoca. O Ofício do Mediador, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004).
Com essas premissas o autor investiga, em seu trabalho, o tema do acesso à justiça sem reduzi-lo a uma “função” da burocracia estatal. Busca, deste modo, compreender o discurso de aplicação do Direito adequado ao novo paradigma do Estado Democrático de Direito. Especificamente ele quer descrever um procedimento de resolução de conflitos pelo qual quaisquer sujeitos possam sustentar publicamente suas próprias pretensões de validade sobre as normas que organizam a vida em sociedade.
Supondo, sob o marco teórico e metodológico habermasiano, que apenas são válidas as normas jurídicas às quais todos os possíveis atingidos possam dar seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais, o autor procede à reconstrução histórica da capacidade de “assentir” (ou não), ou melhor, da autonomia que está na base de qualquer processo de decisão. E assim, reconstruindo a constituição do Direito no Brasil, verifica que apenas a autonomia (e não o Estado) pode atribuir lastro e, portanto, validade ao direito vigente.
O autor tenta elaborar um procedimento capaz de reconhecer o sujeito, em seu próprio contexto sócio-cultural, como participante do processo de resolução dos conflitos sociais que o afetam. Embora tenha como ponto de partida situações e problemas reais vivenciados em determinados locais e por determinadas pessoas, tal procedimento pode propiciar a conexão entre visões tópicas e comunitárias – dependentes de estruturas conceptuais particularizadas — com a linguagem universalizável e especializada da Constituição.
Esse procedimento descrito com base na Teoria Discursiva do Direito e da Democracia se assemelha ao método da mediação (porque se trata de procedimento autocompositivo), tal como consignado na Lei n. 13.140/2015 (Lei de Mediação). Diferentemente do método da adjudicação que prevalece no Judiciário brasileiro, o procedimento descrito pauta-se pela participação, pela não-coação, pela inclusão e pela intersubjetividade.
Por isso, o autor sustenta que o procedimento resultante da pesquisa recusa a denominação “método alternativo” posto estar adequado aos princípios constitutivos do paradigma do Estado Democrático de Direito.
Não se trata, diz ele, de um procedimento em oposição ao serviço prestado pelo Judiciário brasileiro. Faz o autor no trabalho a crítica do modelo decisório da adjudicação, que impera nos Tribunais, na medida em que pretende contribuir para uma descrição cientificamente apropriada do problema da “Justiça” brasileira.
Ainda que se possa negar que o procedimento em apreço esteja expressamente orientado para reconhecimento da autonomia e que, por essa via, possa maximizar o potencial comunicativo dos processos de resolução de conflitos, ainda assim, o simples fato de considerá-lo como procedimento constitucionalmente adequado à realização de justiça contribui para qualificação do debate.
Por fim, cumpre ressaltar que neste procedimento o acordo final não representa o fim último e único do processo: a promoção do crescimento pessoal e a melhoria da comunicação entre as pessoas implicadas são escopos igualmente valiosos. O processo de mediação ou a ação comunicativa nele caracterizada ocorre não apenas quando se chega a um acordo, mas principalmente quando se logra que os participantes do conflito tenham compreendido “mais claramente” o que lhes importa, as alternativas que possuem e, sobretudo, que eles têm autonomia para decidir sobre seus próprios interesses e necessidades.
O trabalho de José Eduardo Elias Romão materializado em seu livro, se sustenta pelo rigor teórico da análise que ele desenvolve. Mas não se desprende da realidade em cujo chão suas opções ganharam consistência. Formado na experiência da pesquisa-ação que é a base do Programa Pólos Reprodutores de Cidadania realizado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, o autor se investe das condições de possibilidade indicadas, conforme mostra a Professora Miracy B. Sousa Gustin, sua coordenadora: por um processo de apropriação e produção de conhecimentos sobre as práticas jurídico-sociais necessário ao exercício da cidadania por parte dos movimentos e grupos sociais e (que) estimula estudantes e lideranças comunitárias a redefinirem seus papéis na construção da cidadania em espaço comunitário (“(Re)pensando a Inserção da Universidade na Sociedade Brasileira Atual”, in José Geraldo de Sousa Junior (et al.), (orgs), Educando para os Direitos Humanos. Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade, Porto Alegre: Faculdade de Direito da UnB/Editora Síntese, 2004, págs. 55-69).
Neste programa o autor teve forte atuação no projeto Organização Popular em Vilas e Favelas (Núcleo Sócio-Jurídico de Mediação e Cidadania), cuja prática utiliza o procedimento de mediação com o objetivo de intermediar a resolução de conflitos atribuindo à própria população e suas lideranças a responsabilidade da gerência de sua vivência comunitária e autonomia no encaminhamento das demandas particulares e coletivas (Gustin, Miracy B. Sousa, op. cit.).
O autor, que depois transformaria suas ideias em políticas, ao tempo que exerceu a função de Ouvidor-Geral, na CGU (Gestão Jorge Hage), acaba de receber, representando a sua Instituição (Petrobrás Distribuidora), neste último dia 14/5, por meio da Rede de Ouvidorias, premiação no II Concurso de Boas Práticas da Rede de Ouvidorias: primeiro lugar na Categoria Metodologias inovadoras no tratamento de manifestações de ouvidoria.
Aqui, em seu primeiro livro, ele conclui que seu trabalho assevera em linguagem metafórica dedicação ao conhecimento das veredas, ou melhor, da racionalidade que não se coaduna a um Direito sinônimo de controle porque o procedimento da mediação exige, por extensão, o reconhecimento do Direito como emancipação.
Com efeito, o livro de José Eduardo Elias Romão traz, assim, substância nova para a linha de investigação inscrita na proposta de O Direito Achado na Rua que sintetiza, desde Roberto Lyra Filho e sua concepção de Direito elaborada sob os pressupostos da Nova Escola Jurídica Brasileira, uma percepção não meramente descritiva e conformista, mas ao contrário, problematizante e dialética, segundo a qual o Direito é modelo avançado de legítima organização social da liberdade.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. |