A emergência de novas dinâmicas de trabalho, particularmente o capitalismo de plataforma e a uberização, impõe um desafio histórico ao papel do Estado e da legislação na proteção dos direitos sociais e dos trabalhadores . A reflexão sobre as propostas legislativas atuais (PEC 8/2025, PL 1579/2025 e PL 2479/2025) demonstra que a intervenção estatal é vista como um imperativo para reverter a precarização estrutural e resgatar o patamar civilizatório mínimo da força de trabalho.
O trabalho contemporâneo, mediado por plataformas, caracteriza-se por um sistema de controle, organização e gerenciamento que transforma trabalhadores em prestadores de serviços “sob demanda” ou “just-in-time”.Essa dinâmica é um vetor poderoso na eliminação de direitos e garantias conquistadas historicamente.
Isso porque a essência dessa nova dinâmica de exploração reside em dois pilares, o primeiro é o pilar do gerenciamento algorítmico e subordinação: as plataformas utilizam tecnologias digitais e algoritmos para gerenciar, controlar e vigiar seus “parceiros”, customizando a relação de forma pouco transparente. O trabalhador é reduzido a pura força de trabalho, utilizada de forma discricionária. Embora se promova a ideia de “autonomia” ou “empreendedorismo de si”, a realidade é de autogerenciamento subordinado. O trabalhador não tem o poder de barganha para precificar seu serviço ou definir com clareza as regras de distribuição de tarefas ou remuneração. A falta de regras claras aprofunda os mecanismos de subordinação e controle. O segundo pilar é o da transferência integral de riscos e custos: sob a racionalidade neoliberal, as plataformas externalizam os custos operacionais (combustível, manutenção) e os riscos associados à atividade (acidentes, doenças) para o trabalhador . Isso resulta em jornadas de trabalho superextensas, frequentemente superiores a 60 horas semanais, sem descanso suficiente, numa tentativa de garantir o mínimo para a sobrevivência .
Os impactos sociais são alarmantes, materializando-se na degradação da saúde (com altos índices de hipertensão e burnout) e em condições de vida indignas, como a insegurança alimentar entre aqueles que entregam comida. A degradação da saúde associa-se ao incremento de acidentes de trânsito, cujas consequências recaem sobre o sistema de saúde e a previdência social.
O Papel Histórico e Constitucional do Estado Protetor
A necessidade de regulação legal no Brasil ganha contornos específicos devido ao histórico estrutural de desigualdade. A plataformização do trabalho se insere em um mercado de trabalho já marcado pela informalidade, acesso parcial a direitos e racismo generalizado, onde a promessa de inclusão via direito do trabalho nunca foi universalizada.
No Brasil, a regulação das relações de classe foi historicamente o veículo de inclusão dos trabalhadores. A CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e a legislação social instituída por Vargas geraram nos trabalhadores a expectativa de proteção social, alimentando uma promessa de integração cidadã. Embora a cidadania regulada tenha sido um mecanismo de reprodução de desigualdades ao restringir o acesso, ela se tornou o campo legítimo de luta por direitos e por sua efetividade.
O Estado tem o papel de corrigir a perversidade que marca as relações de trabalho, garantindo direitos e fortalecendo a fiscalização, especialmente para os mais vulneráveis. O presidente do TST defende que a CLT é “atemporal” e continua crucial para proteger milhões de trabalhadores, alertando que a “pejotização” e a desproteção das novas formas de trabalho podem levar à “ruptura do tecido social” e ao subfinanciamento da seguridade social .
Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (Art. 1º, IV, CRFB) devem coexistir em harmonia com a livre iniciativa. O desenvolvimento econômico não pode ocorrer à custa dos direitos fundamentais e da equidade.
A Legislação como Instrumento de Proteção e Reversão da Precarização
Diante desse cenário, a legislação surge como a ferramenta essencial para impor um marco civilizatório às novas formas de trabalho. As propostas legislativas (PL) em análise,
que estão em tramitação na Câmara dos Deputados, buscam atuar em dimensões cruciais:
a. Dignidade e Segurança nas Plataformas (PLs 1579/2025 e 2479/2025 ):
Os PLs voltados aos entregadores visam reverter a omissão patronal e a lentidão regulatória.
Remuneração Digna e Transparência: o PL nº 2479/2025 de autoria de Guilherme Boulos, estabelece um valor mínimo de remuneração por entrega e regras de transparência. Isso confronta o gerenciamento algorítmico opressivo, exigindo que as plataformas revelem o valor total, a quilometragem e o percentual retido antes da aceitação do serviço, o que é fundamental para regular a assimetria de poder.
Saúde e Seguridade: o PL 2479/2025 torna obrigatória a contratação e o custeio de seguro de acidentes (incluindo acidentes de trajeto). Além disso, veda a imposição de metas que induzam à velocidade ou à extensão da jornada. O PL 1579/2025 de autoria, da Deputada Talíria Petrone, garante o direito humano fundamental à alimentação ao obrigar o crédito de R$ 20,00 a cada período de trabalho, uma resposta direta à insegurança alimentar da categoria.
Infraestrutura Mínima: A exigência de pontos de apoio físico com água, banheiros e áreas de descanso (Art. 9º, PL 2479/2025) responde à eliminação de uma infraestrutura física mínima que agrava o desgaste físico, mental e social dos trabalhadores.
b. Tempo de Trabalho e Saúde (PEC 8/2025):
A PEC 8/2025, de Autoria da Erika Hilton, ao propor a redução da jornada para 36 horas semanais (semana de quatro dias) sem redução salarial, busca a humanização e o equilíbrio nas relações de trabalho. Essa medida é um avanço na luta pelo tempo livre remunerado, combatendo a escala 6×1, apontada como causa de exaustão física e mental, e visando uma vida melhor, com menos problemas de saúde e mais dignidade.
A chave para o uso eficaz da legislação é a busca por um modelo de “flexibilidade com direitos”. Há um entendimento de que a regulação deve acompanhar as transformações tecnológicas, mas no sentido de vedar o retrocesso social e não de legalizar o aprofundamento da exploração. A legislação deve ser usada para construir um mercado de trabalho que, embora flexível, garanta direitos e proteções mínimas, recusando a redução dos trabalhadores à condição de “sob demanda”.
O Supremo Tribunal Federal (STF) avançou na discussão do Tema 1291 (RE nº 1.446.336), que examina o possível reconhecimento de vínculo de emprego entre motoristas de Uber e plataformas digitais. O debate confronta a tese da autonomia com a realidade de longas jornadas (>10 horas diárias) e baixa remuneração dos motoristas. É evidente a urgência de garantir que a inovação não ocorra à custa dos direitos fundamentais e da equidade econômica.
O presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, reforçou a necessidade de regulação legislativa, defendendo a criação de uma “CLT digital”. Ele deu visibilidade à falta de dignidade dos entregadores, relatando que, na ausência de infraestrutura, comem sobre “uns tijolos” e usam cadeiras tiradas do lixo, questionando se isso é “empreendedorismo”.
Em última instância, o debate legislativo e judicial sobre o futuro do trabalho representa a inflexão estatal decisiva sobre a matéria, moldando se o progresso tecnológico será alcançado de maneira inclusiva e equitativa ou se a vulnerabilidade dos trabalhadores se tornará a nova regra legalizada, um sistema social destrutivo que somente será superado através de luta social.
A legislação, historicamente um campo de disputa entre capital e trabalho, é o principal recurso para forjar um novo pacto social em face da racionalidade neoliberal e do capitalismo de plataforma. A intervenção do Estado, por meio de normas vinculantes que garantam remuneração mínima, segurança social, transparência algorítmica e tempo de descanso, atua como um mecanismo de justiça distributiva. Ao transformar as demandas dos trabalhadores (como alimentação e segurança) em direitos fundamentais impositivos, a legislação força as plataformas a reincorporarem os riscos e custos sociais, garantindo que a inovação tecnológica não seja sinônimo de servidão digital ou de eliminação da humanidade dos trabalhadores.
Referências:
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