Artigo Publicado na 50ª edição do Jornal Estado de Direito
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O que estamos vivendo
É isso que estamos vivendo. É bem verdade que a Constituição de 1988 já foi, em certo sentido, um oásis no deserto neoliberal. E bem por isso, encontrou tamanha resistência. O projeto de Estado Social ali contido foi logo contrastado com eventos como a queda do Muro de Berlim, com a teoria do fim da história (nada além do horizonte do capitalismo) e o Consenso de Washington, em 1989. É desse período o chamado Documento Técnico n. 319, do Banco Mundial, em que se preconiza a necessidade de repensar do papel do estado.
No Brasil, três Pactos Republicanos para um Poder Judiciário célere e eficaz, em 2004, 2009 e 2011, colocaram em prática a receita desse documento. O resultado pode ser identificado na EC 45/2004, redistribuindo competência (e com isso legitimando o discurso de que não há mais razão em uma estrutura própria para lidar com as relações entre capital e trabalho), criando o CNJ e a possibilidade de súmula vinculante, ou o PJe, instituindo um modelo fordista de produção judicial, que elitiza o acesso à justiça e impõe preocupação maior com a forma do que com o conteúdo, além de adoecer juízes e servidores, ao estimular o trabalho por produção, chegando mesmo a eliminar o tempo de descanso, além de facilitar a padronização das decisões e, pois, a previsibilidade buscada pelos ideólogos do referido Documento.
O desenvolvimento de estratégias de gestão por meta e a ode à conciliação a qualquer preço também fazem parte desse projeto, em que o Estado Social não tem espaço. É parte disso o NCPC, bastando, para demonstrá-lo, referir o exemplo dos artigos 927 e 932, com suas determinações de observância às súmulas (mesmo não vinculantes). O corte de orçamento da Justiça do Trabalho, realizado para que haja uma mudança de postura na realização dos direitos sociais que essa justiça promove, assim como o documento chamado “Uma Ponte para o Futuro”, que parece guiar os passos do governo interino resultante do golpe recentemente vivido no Brasil, seguem a mesma trilha. A busca do (não)Estado, em que a figura do Estado só não deve desaparecer completamente, porque precisa atuar em favor do capital, concedendo isenções fiscais, salvando bancos e recuperando empresas.
A questão não é nacional
A questão não é nacional. Na França, este ano, uma ampla reforma trabalhista foi imposta ao Parlamento. Na Itália, o desmanche vem ocorrendo mais expressivamente desde 2012, e em 2015 oito decretos legislativos extinguiram ou mitigaram boa parte dos direitos trabalhistas. A pauta do Congresso Nacional, em parte já efetivada, como na alteração promovida no art. 896 da CLT, pretende fazer terra arrasada também aqui.
É interessante observar que os problemas identificados pelos entusiastas desse projeto de morte ao Estado Social são reais: o descumprimento reiterado da ordem jurídica, a inflação legislativa, a ausência de motivação em decisões judiciais, a falta de empregos, o aumento expressivo de demandas judiciais.
A perda de referências dos três poderes do Estado
É real e apropriada também, a preocupação com o crescimento indefinido das estruturas do Estado e com a significativa perda de referências dos três poderes do Estado. O legislador não legisla em nome de um bem comum, senão premido por interesses setoriais, no passo daqueles cujo lobby em Brasília revela-se mais forte. O executivo não sabe o que fazer diante de um “mercado” a quem se atribui características humanas (fica nervoso, preocupado, cauteloso ou agressivo conforme estejam favoráveis os ventos da acumulação do capital), não tem autonomia para quase nada, nem dá conta do cinturão de miséria e violência cada vez maiores, que esse mesmo mercado “impiedoso” produz. O judiciário produz suas próprias regras (as súmulas) criando uma verdadeira legislação paralela e rompendo de vez com o equilíbrio entre os três poderes.
Em um primeiro momento, o diagnóstico pode ser o de que todo poder está concentrado nas mãos do Judiciário. E se esse é o poder do Estado que pode garantir direitos sociais, tudo vai bem. Mas precisamos ter cuidado. O Poder Judiciário, em realidade, está sendo morto de dentro para fora, consumindo suas próprias entranhas.Essa autogestão do Poder Judiciário, que tem permissão legal para produzir uma legislação paralela e aplicá-la como lhe convier, é também o seu veneno. Isso porque o fortalecimento se dá apenas em relação às decisões de cúpula, notadamente o STF e o TST, em âmbito trabalhista. Enquanto as decisões de nossos ministros valem mais que a lei, a possibilidade de criação do direito a partir dos fatos, especialmente no primeiro grau de jurisdição, em que o juiz tem contato com as partes, torna-se cada vez mais difícil.
Esse esvaziamento da função do juiz de primeiro grau não tem efeito negativo apenas para o juiz ou seu jurisdicionado, afeta diretamente a democracia e, portanto, o Estado Social e Democrático de Direito.
É certo que a instituição de um pacto entre as características inerentes ao capital (produção de miséria, concentração de renda, esgotamento de recursos naturais, etc) e a necessidade de sobrevivência desse sistema (e do próprio ambiente em que vivemos), que resulta no reconhecimento da necessidade de garantia de direitos sociais, produz demandas. Essas demandas, na lógica de organização social que adotamos, dependem de um Poder Judiciário forte e eficaz. Nada de novo nesse discurso. A existência da Justiça do Trabalho no Brasil decorre do reconhecimento da necessidade de garantir, através de um judiciário forte e independente, direitos que na realidade da vida a classe destituída de poder econômico e político não consegue exercer.
Sem democracia, não há liberdade
E não é só da Justiça do Trabalho que se trata. Sem uma magistratura independente, que tenha condições de determinar que uma instituição financeira não cobre juros extorsivos, que um político influente não abuse de seu poder nem promova atos de corrupção, entre tantos outros exemplos que poderiam ser aqui referidos, não há democracia. Por consequência, não há liberdade. Essa é a base a partir da qual toda a lógica dos direitos sociais fundamentais é construída e que se inscreve como uma necessidade de sobrevivência do próprio capital, porque onde faltam condições mínimas de existência digna, onde transformamos pessoas em animais, o que sobra é a barbárie.