Coluna Direito Privado no Cotidiano
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Um exercício digno de defesa
A coluna de hoje abordará um tema que inclui e transcende o Direito Privado patrimonial e que tem correlação direta com o Direito Público, a saber: a liberdade.
O exercício da liberdade é, por si só, digno de defesa, não se submetendo o âmbito da autonomia privada a interesses outros que não aquele de quem livremente escolhe, cria, estipula, etc. Não se diga que a autonomia privada não tem limites, pois não é disso que aqui se fala, mas sim do quanto o espaço de atuação segue ou não os ditames de outros que não os do indivíduo que exerce sua liberdade.
A observação acima seria desnecessária se não fosse a tentativa reiterada de mentes coletivistas a tentar subordinar a autonomia do indivíduo ao interesse dos demais, seja em nome do bem público[1], seja para a promoção de virtudes sociais[2] ou, ainda, o eficientismo economicista[3]. Combate-se, aqui, o moralismo jurídico[4].
Dentro do espaço delimitado pela ordem pública, a pessoa escolhe como exerce sua liberdade, sendo defeso a outrem repudiá-la juridicamente sob o pálio do descompasso com o interesse público, o bem comum ou a dissonância da virtude esperada. A autonomia é, por si só, um valor a ser promovido e defendido.
Daí ser necessário extremo cuidado com a exigência de comprovação da função social da propriedade (e da posse), da figura do abuso de direito, da função social do contrato, da boa-fé objetiva e do equilíbrio entre as prestações e do sinalagma. Afinal, a regra é o exercício da liberdade e a exceção é a sua (de)limitação. Cuidado maior ainda devemos ter com que quer o “bem” daquele que o recusa, como se o terceiro soubesse o que é melhor para a pessoa…
Dignidade e interesses
Pelos mesmos motivos, são suspeitas todas as tentativas de tentar limitar a liberdade em nome da defesa do próprio indivíduo ou mesmo de outrem sem que haja indício de que a esfera do terceiro será atingida. O apelo à dignidade do próprio indivíduo ou à moralidade pública, salvo casos de incapacidade de exercício da liberdade ou de efetiva lesão a bens coletivos ou individuais de terceiros, não serve para justificar a intromissão na esfera privada. A maior violação da dignidade é recusar ao indivíduo a escolha do modo de vivê-la. E o interesse do indivíduo não se confunde com o do Estado, não sendo a pessoa mera extensão da sociedade, devendo, portanto, ser respeitada sua individualidade cujo fundamento é a própria dignidade humana e cuja restrição deve estar ancorada no respeito aos demais indivíduos.
É até mesmo um pouco triste que se tenha que dizer isso, vez que era para ser bastante óbvio, o que me faz pensar que, ao contrário da propalada superação do Liberalismo e do Iluminismo, estamos precisando (muito) relembrar os fundamentos necessários para uma sociedade livre, pois em busca de uma determinada justiça coletivista e de uma solidariedade imposta por vias tortas não podemos trocar a vontade do indivíduo pela de outros. É curioso que mesmo diante de tantas lutas por democracia, liberdade e contra o autoritarismo estejamos, candidamente e com um sorriso no rosto, entregando placidamente nossa autonomia às boas-intenções dos detentores da bondade, sejam eles estatistas, sejam eles os defensores das virtudes ou, ainda, os eficientistas.
Referências
[1] Especialmente Léon Duguit que submete todos os institutos privados às finalidades estatais. Segundo Duguit a liberdade “consiste unicamente na liberdade de se cumprir o dever social” (Fundamentos do Direito. Tradução de Márcio Pugliesi. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 48). Contra, bem fundamentando a divergência: MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de Direito e a Constitucionalização do Direito Privado. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 115 e 116.
[2] A crítica é direcionada a muitos “neoaristotélicos”, dentre os quais: GORDLEY, James. Contract Law in the Aristotelian Tradition. In: BENSON, Peter. The theory of contract law: new essays. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
[3] A eficiência enquanto valor é apenas um dentre outros, não servindo de fundamento da ação humana. Por isso, a Law and Economics desempenha papel secundário no prestígio da esfera de atuação da pessoa.
[4] A feliz expressão é de Luís Roberto Barroso, tendo sido utilizada em mais de uma obra, cumprindo aqui consignar apenas exmplificativamente: A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010.
Tiago Bitencourt De David é Articulista do Estado de Direito, Juiz Federal Substituto da 3ª Região, Mestre em Direito (PUC-RS), Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). Bacharel em Filosofia pela UNISUL. |