Jorge Barcellos – Historiador, Mestre e Doutor em Educação/UFRGS.
A investigação sobre a vida cotidiana é um campo aberto à pesquisa. Ela serve aos operadores do direito como apoio teórico para determinar as causas que levam aos conflitos nas organizações em geral, e no serviço público, em particular. A pesar de inerente a natureza humana, a existência de conflitos já produziu um campo acadêmico preciso como a de Gestão de Conflitos, responsável pelas estratégias de resolução de conflitos em instituições. No campo do direito, a resolução de conflitos é a matéria prima da decisão judicial em diversos níveis, sendo o processo judicial a construção da narrativa e da argumentação dos atores em conflito.
Meu interesse, no entanto, é para as razões de conflitos no movimento organizado dos servidores públicos em geral, onde o tema é de interesse por duas razões. A primeira é que é um auxiliar na formulação das estratégias simbólicas de organização do serviço público que revelam a importância das formas de solidariedade de base na luta pela melhoria das condições de existência profissional. Por outro lado, é o campo privilegiado do exercício da dominação porque é na vida cotidiana do serviço público que são decididas as relações de subordinação, que se estabelecem os códigos secretos que submetem os livres de espírito aos de coração espúrio. Quando estas questões são resolvidas adequadamente no serviço público, os cidadãos obtém melhores serviços de suas instituições e menos conflitos serão colocados à análise dos operadores de direito do interior das instituições públicas. Fim das sindicâncias por motivos de conflitos pessoais e internos da instituição.
Um fenômeno pouco investigado na vida cotidiana do serviço público envolve o campo das relações interpessoais: é o papel que nesse meio cumpre a inveja. Sim, você leu direito: aquele provérbio que diz “a inveja mata”, também pode ser aplicado ao serviço público. Você poderia imaginar todo o campo criminal de processos que se originam pelo simples fato de uma ação criminosa baseada no sentimento de inveja. Mas deixemos este interessante campo de lado para nos limitarmos aqui em especial as relações entre servidores efetivos e cargos em comissão, entre diretores comissionados e funcionários de carreira, que observo melhor. Elas são marcadas pelas mesmas atitudes comezinhas que marcam os piores seres humanos no seu dia a dia. Imaginemos uma instituição pública qualquer composta em seu interior por cargos de carreira e cargos comissionados, isto é, servidores que tiverão acesso por concurso público e indicados pelos partidos políticos de plantão.Está dada a razão para a existência de inumeros conflitos, já que os cargos em comissão também invejam: querem ser como os servidores efetivos, querem ter acesso aos direitos que estes servidores adquiriram por que foram, numa palavra, concursados. Servidores comissionados acreditam que servidores públicos concursados são privilegiados: na verdade, são detentores de um capital que necessita ser preservado a longo prazo na instituição, daí sua valorização. Servidores concursados acreditam que servidores comissionados obtém seu cargo por indicação: na verdade, são detentores de um capital que só serve para quem tem o poder de indicá-los, o político. Sendo indicados muitas vezes temporáriamente, sem conhecimento das rotinas de trabalho, constituem um custo para a instituição porque precisam a prender a rotina de trabalho da instituição, ao contrario dos concursados, que já detém este conhecimento. Em qualquer caso, basta a menor oportunidade para que os melhores talentos sejam perdidos. É o caso dos servidores efetivos que em muitos órgãos públicos, onde as carreiras padecem da fraqueza de planos de cargos ou remuneração, abandonam o serviço público. Acontece com muitos professore, que assumem para logo desistir, ou servidores de carreira, que disputam concursos para cargos com salários mais atraentes.A mentalidade que diz que serviço público bom é serviço público mal remunerado é tipicamente liberal. Essa mentalidade habita a consciência de parte dos servidores comissionados.
Desde que você começa a andar pelos corredores de uma instituição pública, pode ser uma Câmara Municipal, um posto de atendimento do INSS, uma repartição pública qualquer, aprende-se que há uma divisão nítida entre servidores efetivos e cargos comissionados, entre os que detém o poder e aqueles que não o detém. Aqueles que não conseguem passar num concurso público conquistam seu cargo por indicação política e por isto sentem-se frustrados em sua carreira profissional. Sabem que tudo é temporário, que não tem a certeza da estabilidade. Trabalham, mas sentem raiva, tristeza e fúria por isso. Se não conseguem ter as vantagens dos servidores públicos, desvalorizam-nos, rejeitam suas reivindicações nas oportunidades que podem exercer um poder contrário. Esta é a raiz da inveja no serviço público.
Isso acontece sempre que pessoas são forçadas a conviver em instituições. O serviço público não é diferente. Veja o caso daquele servidor efetivo que foi prejudicado por um servidor comissionado num serviço público qualquer. Ele já foi chefe de departamento, acumulou conhecimento sobre a área, estava na expectativa de uma promoção, um cargo de chefia. Então, num processo autoritário, quando uma nova oportunidade de trabalho surge, a troca de uma diretoria, ele é preterido. “É a indicação do partido”, lhe dizem. É também a inveja, em estado puro em ação, que faz com que os julgamentos sejam parciais e as escolhas, orientadas por critérios que não a experiência profissional. Ninguém, nem mesmo os servidores públicos, podem escapar a essa tragédia que é comparar e ser comparado, confrontação que põe em destaque as virtudes da experiência do servidor, a beleza de alguém que escolheu o serviço público para dedicar a sua vida. O problema de muitas de nossas instituições é que a escolha de lideranças deveria ser a justiça profissional mas é a indicação política.
O problema na maioria das vezes são os medíocres que ocupam os postos de chefias no serviço público. É claro que ali ou acolá um integrante da carreira, servidor efetivo, ocupa um cargo de poder por mérito, por seu conhecimento, por sua dedicação ao serviço público. Quando isso acontece, o serviço aprimora-se e o trabalho é feito de forma solidária. Mas a maior parte das vezes, os indicados politicamente querem ser melhores e superiores que seus colegas do serviço público, querem admiração por seu atos e não tem limites em seus impulsos. A avaliação que fazem de seus colegas efetivos é sempre para pior. Sua experiência do serviço, nula. São incapazes de valorizar a experiência anterior e nem sequer se mostram sensíveis as manifestações de seus subordinados. São profissionais que fazem de tudo para que os servidores mais antigos sejam reduzidos em seu espaço e valor. Esse ato de desvalorização profissional domina o serviço público. É uma das formas da inveja.
A inveja existe no serviço público porque muitos servidores – efetivos, comissionados – são incapazes de aceitar as diferenças, de que há diversas competências profissionais e que nem sempre somos reconhecidos imediatamente no nosso valor. Eles são tomados por um sentimento que os impele a agir negativamente nas instâncias administrativas: o saber cede espaço ao poder sem nenhuma cerimônia. Ali seu estratagema possibilita fugir da situação que os humilha, inverter as relações interpessoais, mas, ao mesmo tempo, é um atraso para o serviço público que o sustenta. Este servidor comissionado, transformado em algoz, nunca crescerá como profissional. O problema é o que fazem para chegar aonde desejam. É aqui que mora a inveja: sua origem está naquelas aspirações mais distorcidas e repugnantes da função pública. São desejos frustrados que fazem com que chefias comissionadas no serviço público concentrem-se de forma obsessiva na destruição de direitos adquiridos de seus colegas efetivos, ou ao contrário, busquem solapar as conquistas daqueles que se encontram organizando um trabalho de valor no serviço público.
Tais profissionais são fracos de espirito no serviço público. Eles traem a confiança dos demais por postos e vantagens; submetem-se a hierarquia e ao conservadorismo, incapazes que são de ouvir a razão, fazer justiça e ouvir a manifestação de colegas: a má fé está no fato de que constroem seu espaço não por seus méritos, mas pela destruição dos direitos e méritos alheios, privando os servidores competentes de seu próprio espaço de trabalho. Projetos tradicionais e de sucesso sucumbem as prerrogativas de ocasião e a descontinuidade de políticas públicas é sua consequência nefasta mais visível. Esquecem que cada profissional do serviço público – seja efetivo ou comissionado – é responsável pelo espaço que conquista no serviço público e que não há nada mais digno do que honrar as relações de afetividade que somos capazes de construir ao nosso redor: o servidor amoral que pratica atos arbitrários é um trapaceiro que só age quando está perdendo espaço no serviço público.
Isto é péssimo para o clima de trabalho no serviço público. Como atender o cidadão, executar projetos, organizar rotinas de trabalho, isto é, criar uma cultura para a vivência da cidadania no serviço público quando todos trapaceiam com todos e não há mais em quem se possa confiar? Como estabelecer relações duradoras de trabalho, relações que só podem ser de servidor com servidor interessado no público, quando a inveja toma conta do serviço público e se sobrepõe em ações que ferem, um a um, os servidores, envenenando a vida no serviço público? Isto está sempre acontecendo em algum órgão público de sul a norte do pais: se um cargo comissionado conquista uma chefia importante, ele tenderá a lutar pela redução dos direitos dos cargos efetivos E quando os servidores efetivos são muito invejados, dia após dia, serão sufocados por aqueles que nas suas costas diminuem o seu valor. Aqui, você não tem mais colegas. Tem inimigos. A inveja no serviço público provoca uma inversão de valores: tudo o que você julga louvável torna-se objeto de zombaria. Esta é outra forma do serviço público morrer.
Não nos enganemos: o serviço público é um ambiente hostil. Ele é agressivo com seus membros e o mau cheiro chega a cada setor, de um jeito ou de outro. Os servidores de carreira sabem que, detrás da carapaça de uma chefia importante, esconde-se um profissional que é mau nas relações com seus pares. Porque os servidores invejosos também vão aos corredores e ouvem que não conseguiram empreender e que só chegaram ao seu cargo por indicação e não por mérito. Os servidores efetivos os olham com desdém por isso, eles o detestam. Esse clima organizacional é péssimo para a vida.
Vejamos outro exemplo. Num órgão público qualquer, um servidor comissionado chega a um cargo de chefia. Os demais servidores efetivos já foram seus colegas, o conheciam de um gabinete ou setor, e em outra oportunidade já até discutiram juntos. Eles inclusive já o ensinou a trabalhar em rotinas da Casa, que ele desconhecia. Porém, ao estarem de lados diferentes do balcão, não se reconhecem mais. Aqueles que eram cúmplices dos gabinetes, dos setores, que discutiam como mudar o mundo, agora se escondem sob as atribuições de chefias. O mundo, antes, era de iguais, de colegas de trabalho e não importava se eram cargos comissionados ou efetivos. Agora, pela primeira vez, o servidor efetivo sente-se desigual. Ele sofre, chora. Mas está tudo decidido: ele não terá seu projeto aprovado. Não existe defesa, não existe sequer solidariedade de base. Numa palavra, suas ideias não são consideradas.
Um dia tudo pode vir à tona, entretanto. Um belo dia, quando o servidor comissionado abandonar a chefia, encontrará seu colega servidor efetivo. Nesse instante, olhares fugirão e as palavras serão buscadas sem sucesso. Tais profissionais não conheciam a natureza da ação que estavam realizando, e, quase como um reflexo condicionado, preferem ficar ao lado do poder e dos poderosos do que ao lado de seus antigos colegas. Nada mais covarde. O poder desmobilizador da inveja é que ela afasta as formas de sociabilidade de base em nome da preservação dos lugares estabelecidos. Ela nega antigas afetividades, é capaz de destruir, em segundos, o que foi construído em anos. É um tipo de reflexo condicionado, uma reação instintiva de sobrevivência praticada no ambiente do serviço público.
Toda vez que a inveja faz uma vítima nos corredores do serviço público, elas são vitimizadas três vezes. Ora é um servidor público efetivo que tem seus projetos recusados, ora é outro profissional que tem seus direitos desrespeitados. A primeira vitimização em tudo isso está na sentença que diz: “você é um excluído porque é melhor do que nós”. Em outras ocasiões, o servidor efetivo também é diminuído: não, seus projetos não são tão bons quanto parecem, não, seus direitos não são tão certos assim quando comparados como o mercado. Em tudo isso está a segunda exclusão que diz: ”somente com seu rebaixamento é que posso me afirmar”. Finalmente, pode ocorrer ao servidor público que, realizando serviços afirmativos para a construção do interesse da sociedade, ainda assim, seja vítima da inveja de seus pares. Eles, principalmente quando ocupando os altos cargos da administração, são os mesmos responsáveis pela redução de direitos conquistados. A terceira vitimização ocorre porque, se você pergunta a eles “ porque reduzir os direitos que conquistei?” ele não sabe responder. Esta é a terceira vitimização, porque tais profissionais não fizeram mal algum a eles ou a instituição.
O servidor comissionado que inveja seu colega efetivo é alguém que sente um dano que ninguém praticou. O invejoso é uma vítima imaginária, uma falsa vítima da estrutura. Ele também se sente injustiçado, mas tudo é produto de sua imaginação. Se um servidor público efetivo é mais qualificado, faz melhor seu trabalho, porque ele se sente mal com isso? A resposta: porque ele é aquilo que eu deveria ser e não sou. É por isso que tais profissionais que invejam permanecem na mesma posição, seja a de chefia de um órgão público ou na posição de um diretor, se for o caso, ou na coordenação de uma área especifica. Eles se atormentam porque são incapazes de aceitar que servidores públicos efetivos são diferentes, porque diferente é o seu trabalho, sua formação e forma de acesso à função pública. Eles se atormentam porque são incapazes de aceitar a diminuição que sentem pelo sucesso do trabalho alheio, os direitos produtos da luta social de servidores públicos, etc. etc. São, ao final de tudo, processos simbólicos subjetivos que determinam as escolhas, a abertura de oportunidades de sucesso a uns ou o fechamento de oportunidades a outros.
Há, entretanto, um caminho para superar a inveja no serviço público: é quando aqueles que detém espaço de poder esquecem de pensar em seu EU e identificam-se com os objetivos da instituição pública que defendem. Se o serviço público for democrático, e seus diretores, coordenadores e dirigentes identificarem-se com seus ideais, eles seguirão alguns preceitos básicos para combater a inveja em seu meio.
O primeiro é a coragem de enfrentar situações adversas. Elas podem ser do interior da institução, quando enfrentamos disposições que julgamos erradas estabelecidas por nossos superiores. O segundo é inverter os termos da inveja: ao invés de invejar os melhores, aprender com eles. A isto se chama emulação. Fim do mais patético dos objetivos, ser melhor, o mais poderoso agente do serviço público. O terceiro é a defesa absoluta da sinceridade e da verdade. Porque o servidor público invejoso mente, pois desvaloriza o profissional que diz que valoriza. É preciso tirar do serviço público a má fé, a traição, a trapaça. Quer dizer, somente combatemos a inveja com a justiça.
Esta é a grande lição do estudo da inveja para uma moralidade no serviço público. Somente com a aplicação do critério racional da justiça pode-se combate-la. No serviço público significa fazer o que tem de ser feito, premiar os bons e punir os maus. Kant, a esse respeito, tem uma definição apropriada: “haja baseado na máxima que gostaria de ver adotada como lei universal”. A inveja se combate no serviço público de uma forma muito simples, com muito trabalho, dedicação e sem jamais ter como meta o sucesso, fonte de inveja, preservando os melhores. Cada vez que um servidor público dedica-se mais ao seu trabalho e menos com o sucesso que obtém o seu colega, mais próximo estaremos de um serviço público cordial.