A Igreja e o Reino da Esquerda

Coluna Democracia e Política

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Fonte: pixabay

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Modelo político atual é infernal

Há um pequeno texto publicado pela editora Aymé, intitulado “A Igreja e o Reino”, de Giorgio Agamben  (não confundir com O Reino e a Glória publicado pela Boitempo) que é rico para explicar mecanismos da política atual. Agamben é professor de filosofia teorética no Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza e sua obra tem dado uma nova direção ao pensamento político contemporâneo. A ideia de Agamben é primorosa: se, como na teologia cristã, a única instituição que não conhece fim nem trégua é o inferno, o modelo político atual, que pretende uma economia infinita do mundo – a neoliberal – é assim, propriamente, infernal.

O argumento do autor parte da análise da Epistola de Clemente aos Coríntios, um dos textos mais antigos da tradição eclesiástica, que inicia com estas palavras: “Da igreja de Deus em estância em Roma à igreja de Deus em estância em Corinto”.  “Estância” é tradução do grego “Paroikousa”, morada provisória de um exilado, colono ou estrangeiro, em oposição à residência de pleno direito do cidadão, que em grego se diz “Katoikein”. Agamben está interessado em definir o messias e a expressão paroikein, viver em estância como estrangeiro, é o termo que designa a morada do cristão no mundo e sua experiência com o tempo messiânico. Ao longo do texto, Agamben quer deixar aberta a passagem do tempo da igreja para o tempo das instituições, quer deixar aberto o canal entre a experiência do tempo messiânico com a experiência do tempo político. Podemos imaginar as razões para isso: o messianismo é uma forma apropriada pela política, a política partidária é a religião por outras formas, e estância, paróquia, é quase um sinônimo de base ou campo político.

 

Retorno de Lula

Agamben refere-se à experiência messiânica do tempo e critica aqueles teólogos que defendem que as primeiras comunidades esperavam o retorno do messias e que “vendo seu atraso, preferiam mudar para ter uma situação mais estável, deixando de ser paroikein, de estanciar como estrangeiros, para começar a ser katoikein, residir como cidadãs, como todas as outras instituições mundanas” (p.13). Não é notável que a ideia da espera do Messias seja um elemento presente no imaginário de esquerda, que luta pelo retorno de Lula à política? Esse messianismo, de que tudo estará resolvido com seu retorno, não é também o mesmo obstáculo para construir novas alternativas para a política de esquerda? Ora, assim como o Messias tem seu tempo, a grande liderança política também tem o seu e nesse sentido, a esquerda perde a experiência política por apegar-se em demasia a experiência messiânica de seus líderes.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Para o autor, não existe atraso em relação ao messias como acredito não pode haver antecipação em relação aos efeitos da eleição de Lula. Agamben lembra que Paulo recorda aos tessalonicenses (1 Tess, 5:1:2) que “O Dia do Senhor vem como um ladrão, de noite” com isto querendo teologicamente dizer que o messias é ho erchomenos, “aquele que vem”, que não cessa de vir. O autor lembra que o sentido original do messias foi compreendido por Walter Benjamin quando escreveu “Todo dia, todo instante, é a pequena porta pela qual o Messias entra”.  Ou seja, é de uma estrutura de tempo que Agamben fala, que não se trata de falar de um agente, mas de um processo: por isso ele distingue o tempo messiânico do tempo apocalíptico. “O apocalíptico se situa no último dia, no dia da cólera: ele vê o fim dos tempos e descreve o que vê. O tempo que o apóstolo vive, ao contrário, não é o fim dos tempos(…)o messiânico não é o fim dos tempos, mas o tempo do fim (…) interessa a Paulo não o último dia, o instante no qual o tempo termina, mas o tempo que se contrai e começa a terminar. Ou se preferirem, o tempo que resta entre o tempo e o seu fim” (p.14-15).

O pensamento de Agamben ilumina traços da política recente. Se Lula é tratado como Messias é porque a esquerda confunde seu papel no tempo em que vivemos. Ele só poderia ser um “messias” da política se vivêssemos um processo de corrosão das instituições – como de fato ocorre, mas o seu papel é diverso.  Ao contrário, penso que a esquerda dá a Lula um papel de messias porque vê seu presente como apocalipse, fim dos tempos, fim dos direitos, fim das conquistas de esquerda, emergência da direita em todos os níveis, processos e instituições.

Não estamos no dia da cólera da esquerda simplesmente porque o tempo passa. O fim da história, de que fala Fukuyama, não aconteceu e o que temos é o tempo que resta entre o tempo atual e o fim dos tempos, exatamente como prevê o movimento ecologista ou os céticos ou catastrofistas. Não é o que foi divulgado recentemente pelo Boletim de Cientistas Atômicos, responsável por ajustar anualmente, o Relógio do Juízo Final? Com ampla cobertura da imprensa, no último dia 25 de janeiro anunciaram que a humanidade está a 2 minutos e meio do Apocalipse. É claro que estes 2 minutos e meio não são literais e sim um símbolo de quão próximos estamos de uma catástrofe mundial. Mas já há um pressentimento do fim com o neoliberalismo qu está aí.

Criado em 1947, o Relógio foi criado pelos cientistas que participaram do Projeto Manhattan, que criou a bomba atômica, no contexto que preparava para o fim do mundo devido ao conflito final. Em 1947, estávamos a 7 minutos da meia noite, agora estamos a 2 minutos. E o tempo passa exatamente como antevê as escrituras de Agamben. No Relógio, influenciam os esforços para tornar o mundo mais seguro, o aumento ou diminuição da Guerra Fria, “o horário é completamente arbitrário” afirmam seus autores, pois trata-se da análise da conjuntura mundial que revela se estamos vulneráveis a uma catástrofe planetária. No Brasil, as vésperas de mais uma eleição, com a disputa encabeçada por ninguém menos que Jair Bolsonaro, para esquerda estamos diante de uma catástrofe política. Falta só criar o relógio.

O tom de urgência para a eleição de Lula é o mesmo do anúncio do relógio de 2017, a ideia de chamar a atenção dos cidadãos para a ação imediata. Lá, para limitação dos arsenais militares, aqui, para a eleição de Lula. Curiosamente, a direita também se encontra frente a seu apocalipse: se a eleição de Lula se confirmar, vem a baixo o projeto neoliberal. Daí os esforços de continuar o golpe dentro do Golpe, que vão desde a sessão do TR4 do Rio Grande do Sul que condena Lula à decisão de um juiz de retirada de seu passaporte. Como para os autores do relógio, o ritmo é inflamatório, o relógio está correndo, o perigo global se aproxima lá, como o perigo político aqui.

 

A esquerda ainda tem tempo

A questão é que a esquerda ainda tem tempo. É preciso usa-lo para encontrar novas lideranças para retomada do poder. Agamben se refere a tradição judaica que via a distinção entre dois tempos ou dois mundos: o olam hazzeh, o seja, o tempo que vai da criação do mundo ao seu fim, e o olam habba, o tempo que começa depois do fim dos tempos.  “Mas o tempo messiânico, o tempo que o apóstolo vive e o único que lhe interessa, não é nem o olam hazzeh e nem o olam habba, é o tempo que resta entre esses dois tempos quando o tempo é dividido pela cesura do evento messiânico” ,que para Paulo, é obviamente, diz Agamben, a ressurreição do Cristo, da mesma forma que para a esquerda, é o retorno de Lula à Presidência.

Antes de a esquerda se perguntar “que candidato tem”, que encontra apenas com resposta uma palavra, Lula, ela deveria se perguntar “quanto tempo tem”.  Se a esquerda pensar que o único tempo que tem é o que vai da reeleição de Lula em diante, ela está perdida. A esquerda precisa pensar em termos do significado da experiência de esquerda no país. Da promulgação da Constituição de 1988 às eleições de Lula e Dilma, que contribuições deu e quais foram os atores principais na conquista de direitos no pais? A eleição de representantes de direita não pode significar uma transformação radical da experiência de esquerda em nosso pais – ainda que pareça isso. Nesse sentido, o golpe que levou Michel Temer ao poder é um instante pontual numa linha de tempo, que a direita, sabiamente, quer fazer ser vista como ato fundador de uma nova era.

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

A esquerda cabe se questionar pelo tempo que leva para a direita terminar o seu projeto. Esse tempo que resta é o mesmo tempo que a esquerda necessita para se livrar dessa representação de tempo. Pois a lição de Agamben para os antigos serve para o presente: a principal vitória da direita com o golpe não foi colocar Temer no poder, foi impor uma representação do tempo à esquerda de que seu…tempo está terminando. Como para os antigos, como afirma Agamben “ao passo que esta, enquanto tempo no qual acreditamos ser, nos separa do que somos e nos transforma em espectadores impotentes de nós mesmos, o tempo do messias, ao contrário, enquanto tempo operativo no qual pela primeira vez captamos o tempo, é o tempo que nos mesmos somos(…) é, ao contrário, o único tempo real, o único tempo que podemos ter”” (.16-17).

“A aparência deste tempo munda” diz Paulo sobre a vida messiânica (1 Cor 7:29-31). Para Agamben, o que as escrituras dizem do messias é que este vive das coisas últimas, mais fundamentais, e não das penúltimas, mais superficiais.  No próprio pensamento cristão, Agamben sugere ao leitor atento, está a solução do impasse da esquerda. Entre fazer o que é fundamental e o que não é para a esquerda (aqui, na minha interpretação da passagem de Agamben) está a mesma solução que o autor encontrou em Paulo, que exprime a realização messiânica através do verbo katargein “que não significa destruir, mas tornar inoperante”. É precisamente neste ponto que se encontra a esquerda, não é preciso encontrar uma candidatura que destrua a direita representada por Bolsonaro, mas algo que a torne inoperante.

Como para Paulo, e da mesma forma a esquerda, não se trata de pensar numa salvação para o estado de coisas no futuro, após as eleições, etc., etc. Se trata do tempo ho nyn kairos, “o tempo do agora”.  Agamben faz seu raciocínio para chegar ao significado da experiência religiosa na igreja de hoje. A crítica que Agamben faz a igreja de hoje é a mesma que se pode fazer a esquerda? Acredito que sim. Ambos têm capacidade de ler o que Mateus (Mt 16:3) chama de “os sinais dos tempos”? Para a Igreja, se trata da capacidade de ler os sinais do Reino do Céu (é disso que trata o título A Igreja e o Reino aqui analisado). Para a igreja, viver o tempo do messias é analisar os sinais de sua presença na história e o nascimento de uma economia da salvação. No final, tanto católicos quanto a esquerda compartilham da ideia de que é preciso chegar ao estado e a economia, mesmo que se trate de economia da salvação.

Pois se o conhecimento tem uma função, é de servir de interpretação para o presente. Agamben lembra que as exigências escatológicas, abandonas pela igreja, retornam de forma secularizada e paródica nos saberes profanos, e entendo que isso serve inclusive para a política “O estado de crise e de exceção permanentes que os governos do mundo proclamam pelos quatro cantos não é senão a paródia secularizada da atualização incessante do Juízo Universal na história da Igreja” (p. 23). O autor pergunta, ao final de seu texto: se a Igreja está apta a captar sua ocasião histórica, a reencontrar sua vocação messiânica, o que significa, seu projeto no caminho do fim, o mesmo tipo de questionamento serve para a esquerda, de que deve reencontrar-se com sua vocação em defesa dos oprimidos, nem que para isso, tenha de superar toda as suas divisões. Pois, a esquerda, da mesma forma, sofrerá das consequências apontadas por Agamben para a igreja atual, o ” risco de que seja arrastada na ruína que ameaça todos os governos e todas as instituições da terra” (p.24).

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Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.
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