A função social da propriedade urbana entre o jurídico e o político

Esses dias, repercutiu nas redes sociais matéria do Observatório das Metrópoles intitulada Ermínia Maricato: “Faltam juízes que reconheçam a função social da propriedade”. Tratava-se da divulgação em vídeo das aulas proferidas no curso “A cidade do capital e o direito à cidade”, promovido em agosto deste ano pelo Instituto Pólis em parceria com o Centro Ecumênico de Serviços a Evangelização e Educação Popular (CESEEP)*.
A matéria pôs destaque, pela boca da professora, no argumento de que não serão as leis (e tampouco sua apreciação na esfera do judiciário), mas a luta social que poderá resolver os problemas urbanos, em particular, o acesso à cidade pelas camadas mais pobres e historicamente excluídas da população. No centro desse debate, como no título da matéria, está a propriedade e a sua subordinação a uma função social.
A Constituição Federal, nosso projeto jurídico-politico de nação, como diz Wilson Levy, estabelece em seu artigo 5o., no título dos Direitos e Garantias Fundamentais, o direito de propriedade. No mesmo artigo, postula que a propriedade atenderá a sua função social, como medida de contrapeso à noção de um direito absoluto de propriedade, insubordinado, individual, exercido em caráter privado à revelia de um legítimo interesse da coletividade.
De fato, não é de hoje que nossos juristas do campo do direito urbanístico – Edesio Fernandes é um desses expoentes – nos mostram a árdua tarefa de vencer, ainda mesmo nas ideias, na doutrina, a concepção civilista (tradicional) sobre direito de propriedade, e passar a discutir e a operar sob a lógica de uma propriedade garantida constitucionalmente a seu titular, mas também (e desde que) posta a serviço da sociedade.
Se na esfera das ideias há uma difícil disputa conceitual por fazer, no que se refere à função social da propriedade urbana, o desafio é bem maior. Isso porque em áreas urbanas, diferentemente das áreas rurais, o texto constitucional não estabelece parâmetros que permitam objetivar se uma determinada propriedade urbana cumpre ou não sua função social.
Pela Constituição Federal, é o Plano Diretor, instrumento básico de política urbana consubstanciado em lei municipal, que deve materializar o conceito de função social da propriedade em áreas urbanas, definindo, para tanto, parâmetros verificáveis objetivamente. Há muitos arranjos possíveis para isso, mas em geral tem-se adotado critérios associados a um grau mínimo de edificação dos terrenos (aproveitamento/sub-aproveitamento) ou a um grau mínimo de utilização dos imóveis em terrenos já edificados (utilização/subutilização). O pressuposto é que quem está abaixo do mínimo não atende ao interesse da coletividade (por impedir, por exemplo, a otimização de infraestruturas instaladas na cidade).
À propriedade urbana que não cumpre sua função social, cabe, desde que previsto e territorializado no Plano Diretor, o rito constitucional do parcelamento, edificação ou utilização (esta acrescentada pelo Estatuto da Cidade) compulsórios (PEUC), seguido do rito de aplicação progressiva do IPTU, e somente após tudo isso a “desapropriação sanção”, assim apelidada porque a indenização não é prévia e em dinheiro, mas paga a prazo com títulos da dívida pública.
Decorre disso que, ainda que o conceito de função social da propriedade estivesse apropriado sem restrições na teoria, no caso de áreas urbanas sua objetivação é mediada no mínimo pelo Plano Diretor (poderá também exigir lei específica), bem como por diversos mecanismos administrativos que somente após longos anos levariam à “desapropriação sanção”, com o que a propriedade infiel ao preceito constitucional passaria ao domínio do município**.
Na prática, numa discussão judicial sobre função social da propriedade urbana, o Juiz deverá verificar seu cumprimento à luz do Plano Diretor do município onde se localize o imóvel, porque é isso que diz a Constituição Federal. Mas muitos municípios não têm Plano Diretor; muitos planos diretores não definem parâmetros concretos que permitam verificar se uma determinada propriedade cumpre sua função social. E quando o município define esses parâmetros, o subsequente ciclo de obrigatoriedades iniciado no PEUC e finalizado na “desapropriação sanção” ainda está em curso.
Na prática, por tudo isso, em muitas ações possessórias não estão presentes os elementos que levariam – administrativamente, inclusive – à perda da propriedade para o município, pelo mecanismo da “desapropriação sanção” (como tampouco em muitos casos se verificam os requisitos da usucapião necessários à aquisição de domínio pelos possuidores).
Estão corretos nossos juris-urbanistas ao dizerem que a propriedade é apreciada sob a ótica civilista. Está correta a professora Ermínia Maricato ao dizer, por isso, que a luta é política. E também está correta a leitura de que o nosso arcabouço legal para o urbano dificulta a concretização da função social da propriedade, tanto nas cidades quanto em sede de apreciação judicial. Sem tergiversações, é isso que tem para hoje em termos fáticos e jurídicos nessa matéria.
Em 1988, a luta política conseguiu incluir, por meio de emenda popular, o Capítulo da Política Urbana na Constituição Federal, um avanço sem precedentes em termos de democracia e de tratamento de um campo até então renegado. A luta política mirou o ordenamento jurídico para fincar ali a base que virou Estatuto da Cidade que virou Plano Diretor que ainda não virou função social da propriedade. Continua difícil, mas não é pouco.
Hoje, não só pela ótica da função social, mas pela persistência dos problemas urbanos, há decerto muita luta política por fazer. Luta social, gritada, na rua; que deve mirar, também e como antes, a Lei: inexorável instrumento para a concretização de nosso projeto jurídico-político de nação, para a realização de nosso projeto de cidade.

Ana Paula Bruno é Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Analista de Infraestrutura do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Gerente de Regularização Fundiária Urbana da Secretaria Nacional de Acessibilidade e Programas Urbanos do Ministério das Cidades. Professora de graduação e de pós-graduação. E-mail: apbruno@yahoo.com.br

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* Disponível em <http://polis.org.br/noticias/curso-a-cidade-do-capital-e-o-direito-a-cidade-tera-transmissao-online/>
** A punição não é o objetivo; o propósito é que esses mecanismos coercitivos induzam o cumprimento da função social da propriedade, não como um fim em si, mas como um caminho para que se realize um projeto de cidade expresso no Plano Diretor, entre outros suportes.

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