Coluna Democracia e Política
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A dívida
A dívida é o motor do crescimento econômico e subjetivo da economia contemporânea, diz Maurizio Lazzarato em “La fábrica del hombre endeudado”. É o núcleo estratégico das políticas neoliberais, a fabricação da relação credores e devedores é base das política neoliberais, e portanto, para combater o neoliberalismo, a esquerda necessita urgente de uma crítica política sobre sua lógica.
Foi no governo Antônio Brito que assinou a renegociação da dívida do Estado do Rio Grande do Sul e que trouxe hoje uma situação insustentável para as finanças gaúchas. A afirmação é do cientista político Marco Weissheimer que desde o ano passado vem reiterando críticas no Jornal Sul21 contra a política econômica do governo. Em artigo publicado sobre o tema em 2015, assinala que “O Movimento da Auditoria Cidadã da Dívida Pública tem denunciado a existência de um Sistema da Dívida estruturado par manter uma drenagem permanente de recursos públicos para o sistema financeiro e defende uma auditoria dessas dívidas para expor esses mecanismos à sociedade”.
O mesmo argumento é dado por Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida: “O refinanciamento da dívida com a União foi um esquema bem pensado, onde os bancos públicos pararam de refinanciar as dívidas dos Estados que foram obrigados a adotar planos de ajuste fiscal, programas de privatização de patrimônio público e assunção de passivos de bancos”, lembrou.
O argumento de Lazzarato desenvolve-se exatamente a partir deste ponto. Para ele, as classes dominantes construíram um dispositivo de polarização extrema entre credores e devedores e que só beneficia os primeiros. Tudo colabora para o aumento da dívida: políticas monetaristas, políticas de redução salarial, políticas de redução de investimento social, políticas de transferência de recursos para empresas, tudo enfim converge para a criação de valor para a iniciativa privada.
Privatização das universidades públicas
O projeto neoliberal teve um avanço com a publicação do editorial neste último domingo (24), em que o Jornal O Globo pede o fim do ensino superior gratuito no Brasil. Você leu direito: o fim do ensino público superior gratuito, isto é, a defesa explicita da privatização das universidades públicas, criticado pela esquerda como um objetivo na contramão do interesse público e da democracia é agora a nova bandeira da direita em expansão em nosso país.
No discurso da direita, o ensino superior gratuito é injusto porque as vagas são ocupadas pelos alunos ricos num sistema que leva os pobres para a iniciativa privada. Quer dizer, ao invés de propor reparar a injustiça, o jornal propõe mantê-la retrocendendo conquistas sociais. Ora, é justamente seu caráter público que tem garantido que pobres, pretos e índios tenham acesso e não apenas um grupo social, o dos ricos.
É o mesmo argumento falso usado pela classe média como estratégia de impor uma privatização. O mesmo discurso aponta seu sucateamento, além de apontar gastos excessivos. Com isso, a direita mata dois coelhos com uma cajadada, quer dizer, entrega de mão beijada as universidades para a iniciativa privada e também os hospitais universitários que vem mantendo seu padrão de qualidade graças aos servidores. Diz o professor Renato Janine Ribeiro a respeito:
“A USP recebe o mesmo porcentual do ICMS paulista desde a década de 1980, e neste tempo criou novos campi, novas faculdades, aumentou muito o número de alunos, deu saltos de qualidade científica e tudo o mais. Sua pior gestão foi a de um reitor nomeado pelo governador José Serra, contra a vontade da maioria dos votantes na universidade. Não representava as forças vivas da USP.”
Acumulação capitalista
O discurso da crise, da necessidade de austeridade e controle sobre os gastos de estado são a desculpa para financiar a acumulação capitalista, a ideia é justamente transferir recursos e instituições do estado para a iniciativa privada e para setores financeiros. Esse esforço de privatização dos serviços de Estado, de transforma-lo em terreno de acumulação e rentabilidade de empresas privadas, segue à risca os planos impostos pelo FMI já em andamento na Europa, Grécia e Portugal e cujo objetivo é englobar o Brasil como “terra fértil”. Não se trata de resgatar a universidade pública para a sociedade, se trata de promover sua liquidação.
O pior é que a liquidação da universidade pública, segundo o discurso editorial do Jornal O Globo é apenas uma das etapas, pois o editorial prevê que se a economia não se recuperar, é preciso reformar o Estado, o que significa ampliar impostos e conclui, de forma pornográfica com relação a universidade pública: “[…] para combater uma crise nunca vista (?) necessita-se de ideias nunca aplicadas. Nesse sentido, porque não aproveitar para acabar com o ensino superior gratuito”?
Fora da cena, fora de qualquer espaço de diálogo, o caráter pornográfico da proposta está em constituir-se em algo completamente “fora do lugar”: após décadas de conquistas sociais em defesa da educação pública, assumir seu retrocesso só pode ser algo “fora da cena, fora do lugar”, exatamente como faz o universo pornô. Pois a pornografia é expor aquilo que deve ser oculto, é explorar o corpo como objeto voyeristico, é transformar o outro em objeto de consumo, exatamente como faz a proposta do jornla O Globo: não é a revelação das verdadeiras intenções neoliberais de governo, que agora vem ao espaço público? Não é a exploração do trabalhador enquanto objeto de consumo sem direito algum, inclusive a educação?
Ainda que fosse um sistema com problemas, o esforço de camadas populares sempre as levou ao ensino superior graças a existência em nosso país da universidade pública. O que está em discussão no fundo é o uso de impostos arrecadados junto para financiar políticas públicas para as camadas populares para transferi-los para a iniciativa privada. Nesse mundo, inverte-se a lógica do devedor e do credor estabelecido pelo Estado de Direito: agora, não é mais o cidadão credor de seu Estado por políticas públicas de educação, é o Estado que cobra do cidadão que pague individualmente por seu estudo.
O que está no interior deste pensamento? Para Lazzarato: “A economia da dívida expressa de tal modo um capitalismo no qual substitui os assalariados e a população, os fundos de pensão, o seguro de saúde e os serviços sociais “por administrar-se[tudo e a a todos] em um universo competitivo, como se fosse uma função empresarial”(p. 34). Quer dizer, o que o capital faz ao estado é apresentar um processo de privatização da Previdência, da assunção das políticas sociais pelos cidadãos (processo de individualização) , transformando a proteção social numa função empresarial, base da economia da dívida.
O que tais iniciativas ocultam? Ao forçar o cidadão a pagar por saúde privada ou estudantes a pagarem por seu estudo, introduz a sociedade em um sistema de captura, um sistema que transforma todos os cidadãos em devedores. Esse sistema de gestão macroeconômica funciona como dispositivo como é definido por Foucault, cuja características principal é influir diretamente sobre a capacidade de mando de um grupo social sobre a sociedade. Ao nos tornar individados pelas mais diferentes razões – pela contratação de um plano de saúde, pelo pagamento da universidade privada, etc – estabelece uma relação de poder. O crédito e a dívida e a relação credor/devedor impõe não apenas uma relação de subordinação dos cidadãos ao capital, impõe uma modalidade de controle da subjetividade, o homem endividado, de que fala Lazzarato.
O controle da subejtividade social se dá pela construção de uma nova moral, diferente e complementar a moral do trabalho. A ideologia do trabalho preconiza o esforço recompensa, enquanto que a moral da dívida pressupõe a promessa e a culpa (de pagar a divida e de have-la contraído). É este o discurso que unifica o pensamento de direita: se o estado tem uma dívida, a culpa é sua, cidadão. No neoliberalismo, somos todos livres, exceto das dívidas que outros contraem em nosso nome.
É que no neoliberalismo, o grau de nossa liberdade é dado não pelo reconhecimento de direitos, mas pela assunção de um modo de vida baseado no consumo, nas obrigações com o pagamento de impostos, enfim, em tudo o que for compatível com o mercado. Diz Lazzarato: “A dívida é uma relação de poder universal porque tudo mundo está incluido nela(..). Por esta razão a relação credor/devedor se sobrepõe as relações capital-trabalho, Estado benfeitor-usuário e empresa-consumidor e as atravessa, instituindo como devedores a todos, cidadãos, trabalhadores, usuários e consumidores”.