A crise presidencial da Ditadura, a Constituição e o Prefácio de Ulysses

Fonte: Agência Brasil

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Democracia

A renovação periódica dos mandatos presidenciais figura por um dos traços que compõem o semblante republicano da democracia constitucional.
E assim ocorre, com mais razão de ser, nos países da periferia, onde os riscos de abalo e queda constitucional, deveras frequentes, procedem grandemente da indigência, do abandono, do analfabetismo político das massas proletarizadas, bem como das privações e sofrimentos sociais da classe média pauperizada e decadente, ambas vítimas perpétuas do subdesenvolvimento, que é na América Latina o ventre das ditaduras e o flagelo das ingovernabilidades.

A sobredita renovação é também a garantia formal do estabelecimento da estabilidade e da legitimidade nas instituições do contrato social; em verdade, instituições que inspiram o modelo presidencial de governo e regem já dois séculos de constitucionalismo, ancorado sobre o princípio da soberania popular.

A ofensa mais grave a esse princípio deriva naqueles países da propensão que tem ali o Poder Executivo de se servir do sistema legal para minar, destruir ou atraiçoar a legitimidade.

Golpes de Estado

Tal acontece quando aquele Poder, descerrando o véu de sua vocação autoritária, revela inclinação ingênita para perpetuar no poder as ditaduras dissimuladas em vestes constitucionais, ditaduras que condenam ao abandono, em sua pureza e verdade teórica, as formas representativas clássicas, e acabam por executar a pior modalidade de assalto à democracia e ao Estado de Direito que é aquela proveniente do golpe de Estado.

Fonte: pragmatismopolitico.com.br

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O primeiro golpe desse gênero, a meu parecer, ocorreu quando Hitler, na Alemanha, sem quebra aparente da legalidade, despedaçou a república de Weimar; exemplo este seguido três décadas depois no Brasil pelos generais da ditadura militar de 1964, que por atos institucionais dissolveram duas Constituições: a de 1946, promulgada com legitimidade, e a de 1967, outorgada por via congressual, mas com a democracia desmaiada, o parlamento mutilado, a federação combalida.

Com o presidencialismo da ditadura já não havia república no Brasil desde os Atos Institucionais que abrogaram a Carta Magna de 1946; havia sim uma espécie funesta de governo imperial, consubstanciada no poder absoluto dos presidentes fardados, que em vão forcejavam por manter a imagem do Estado de Direito, desmoronado, todavia, sobre as ruínas da Constituição.

Havia também Congresso, mas não havia representação, havia partidos políticos, e não havia pluralismo partidário, porquanto prevalecia um sistema de partido único, conforme na época tive ocasião de denunciar, num congresso internacional de cientistas políticos, celebrado em 1967, no Rio de Janeiro, com a presença, entre outros, de Sartori e Carl Friedrich; havia oposição, mas oposição consentida, humilhada, intimidada, contida nos limites da indulgência; havia imprensa, mas não havia periodismo livre; havia tribunais, mas não havia tribunos. Havia, sim, passividade e silêncio.

O medo, as omissões anulavam e sufocavam a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, emudeciam a oratória política dos parlamentares de oposição, debaixo do receio de perderem seus mandatos na guilhotina da ditadura.

Opressão

Havia universidades abertas, mas a liberdade de cátedra estava cerrada; havia diretórios acadêmicos, mas o movimento estudantil reprimido não chegava às ruas, nem às praças, nem aos logradouros públicos para o discurso, a passeata, o comício e o congresso do estudante.

Fonte: cacoalnews.com.br

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Era o silêncio e a passividade. Era a tristeza da cidadania reprimida, sem esperança de recobrar a liberdade perdida e confiscada.

Atravessada, porém, essa quadra de desespero político e social, o povo das Diretas-já despertou, combateu e triunfou. Com Ulysses Guimarães, ele fundou a república constitucional de 1988.

Ulysses escreveu, como um testamento à Nação para que nunca suspendesse a obra de socorro às vítimas da opressão econômica, as abreviadas linhas da primeira edição oficial da nova Carta republicana.

Hoje a memória política da Nação parece estar esquecida desse prefácio luminoso, que as novas gerações desconhecem.
Contudo, a nosso ver, trata-se da página preambular mais eloquente, mais persuasiva, mais patriótica, mais perpassada da pureza e da fraternidade do povo brasileiro, já estampada nos anais do nosso constitucionalismo, desde a Carta da Primeira República, após a queda do Império.

Estamos ali em presença de memorável prólogo, sem paralelo, vazado no argumento da miséria.
Ficou gravado para sempre como resumo substancial da reivindicação coletiva de um Estado de Direito, ressuscitado e restaurado nas cláusulas da Constituição. Um Estado apto a estabelecer o elo dos direitos fundamentais com os princípios da Constituição elevados ao grau superlativo da normatividade.

Idealismo republicano e constitucional

Em razão dessa força normativa, a Carta promulgada se revelou um dos estatutos mais representativos da nossa vocação de povo livre, amante da paz, do direito, da justiça e da liberdade.

Fonte: leitorcabuloso.com.br/

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Esse idealismo republicano e constitucional há de perdurar em todas as esferas das relações humanas, sob a égide do Estado Democrático de Direito.

Apesar disso, a reação conservadora tirou das edições posteriores aquele texto histórico, representativo de um constitucionalismo de luta participativa e heroicidade, de resistência e pacificação social, contra a desgraça, a submissão, a ditadura, a ingovernabilidade; pelo salário, pela saúde, pela moradia, pela alfabetização.

Precisamos, portanto, reinserir o prefácio de Ulysses nas páginas da Constituição.
Jamais perderá ele atualidade, enquanto não passar a crise que assola a Nação, enquanto o povo não se libertar do medo e das angústias e atribulações que o afligem.

Eis, na íntegra, a letra de humanismo da Constituição Coragem:

A Constituição Coragem

O Homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto sem cidadania.
A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o país.
Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem.
Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a constituição cidadã.
Cidadão é o que ganha, come, sabe, mora, pode se curar.
A Constituição nasce do parto de profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade.
Por isso mobiliza, entre outras, novas forças para o exercício do governo e a administração dos impasses. O governo será praticado pelo Executivo e o Legislativo.
Eis a inovação da Constituição de 1988: dividir competências para vencer dificuldades, contra a ingovernabilidade concentrada em um, possibilita a governabilidade de muitos.
É a Constituição coragem.
Andou, imaginou, inovou, ousou, ouviu, viu, destroçou tabus, tomou partido dos que só se salvam pela lei.
A Constituição durará com a democracia e só com a democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça.

Brasília, 5 de outubro de 1988.
Constituinte Ulysses Guimarães

 

bonavidesPaulo Bonavides é catedrático emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza. Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa. Medalha Rui Barbosa , a mais alta distinção honorífica que concede a Ordem dos Advogados do Brasil. Fundador e presidente do Conselho Diretivo da Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Atualmente, faz parte da Comissão Especial de Apoio à Emenda Consttucional por Iniciativa Popular do Conselho Federal da OAB.

 

Artigo publicado na 48ª edição do Jornal Estado de Direito. Acesse 

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