A Corrupção da Lei. A misericórdia também corrompe?

Créditos: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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1. Introdução

Temos como tema a Misericórdia. Esta é apontada pelo nosso Papa Francisco como o objeto de meditação da Igreja neste ano de 2016, com o término perto da Paixão, morte e Ressurreição de Cristo – a Páscoa, que se avizinha. Originou uma série de palestras, que hoje se encerra.

É-me apontado, mais precisamente, o tema que vem indicado com o título “A corrupção da lei [1]. A misericórdia também corrompe?”. É pois formulado como uma interrogação, a que ocorre responder.

Mas não se dispensa uma Introdução. E deste logo, radicalmente: versar a misericórdia supõe uma indagação teológica. Mas nunca estudei teologia, não tenho pois conhecimentos teológicos. Como vencer este desafio?

Na minha própria condição, que é a de um amador, por assim dizer. Ou com o significado de um leitor, da Bíblia em particular, que medita os textos sagrados. E assim, é inevitável que a exposição revista um certo caráter subjetivo.

É habitual os oradores começarem por salientar as suas insuficiências. Viu-se já nisso uma espécie de autoelogio antecipado, que realçará o brilho da exposição que se promete. Mas neste caso há mesmo insuficiência. E toda a autopromoção cairia no anátema de Cristo aos escribas e fariseus: “Como podeis vós crer, vós que recebeis a glória uns dos outros e não atendeis à glória que só de Deus vem?” [2].

E há que ir ainda mais fundo. Recordo o que ouvi do Sr. Dr. António dos Reis Rodrigues, bispo?assistente da Juventude Universitária Católica e que ingressou, após o Curso de Direito, no Seminário: quando estudava Teologia, fazia-o na capela. De fato, o estudo da Teologia só se pode fazer em oração. Não é como qualquer ciência exterior, supõe um espírito de oração, porque é um encontro com Deus.

Para poder falar devidamente, seria necessário que um anjo me tocasse os lábios com um carvão em brasa. Não tenho porém a menor expetativa que isso me aconteça…

Mas também não posso omitir. Avancemos, pois, que já basta. Só peço que o façamos como uma meditação em conjunto.

 

2. A dificuldade literária e linguística

Encontramos logo de imediato outro tipo de dificuldades, igualmente preliminares: as dificuldades literária e linguística. Há trechos na Bíblia muito difíceis de entender.

Dentro ainda da experiência pessoal, recordo o que se passou comigo com o Antigo Testamento. Lia, mas detestava. Dizia ironicamente que só podia ser lido por pessoas com sólida formação moral…

Aparecia um povo escolhido – e os outros? Esses eram massacrados.

Ou então e sobretudo, havia um Deus terrível e vingativo, que destruía o seu povo quando ele se desviava…

Bíblia

Fonte: pixabay

Mas foi-me dado a entender que havia que ir além – não por meu mérito, mas por graça de Deus.

É aquilo a que Bernanos, outro extraordinário autor da minha juventude, chamava “o milagre das nossas mãos vazias”. Cabe-nos apenas estarmos abertos para o acolher [3].

Na leitura da Bíblia, encontrei o que poderia chamar um metassentido [4].

Assim, no próprio Evangelho, temos a parábola contada ao fariseu que, para se justificar, pergunta a Cristo: e quem é o meu próximo? [5]

Cristo, em resposta, conta a parábola do homem que é assaltado e deixado meio morto no caminho. O sacerdote e o levita vêem-no e passam adiante. Pelo contrário, um samaritano detém-se, trata-o e leva-o a um estalajadeiro, pagando-lhe a estada e as despesas que fizer… E Cristo pergunta: quem é o próximo do homem assaltado? O fariseu só pode responder: “Aquele que teve misericórdia dele”.

Há aqui um ilogismo. A pergunta de Cristo suporia a referência àquele que carece do nosso auxílio. Afinal, a resposta é a reversa: é aquele que teve misericórdia.

É verdade que mesmo os textos sagrados são feitos por homens; mas, embora inspirados, não podemos presumir que neste caso tenha sido distorcido o sentido da parábola. Por outro lado, Cristo, verdadeiro Deus, que sabia tudo, não tinha dificuldades gramaticais… Pelo que, no próprio Evangelho, se detetam metassentidos, sentidos que estão além do que resulta à primeira vista. E é com esta luz que devemos entender todos os textos sagrados.

Mais ainda. Encontramos também parábolas em que, a olhos humanos, se louvam puras injustiças. Seja a dos trabalhadores da vinha, em que o senhor paga um denário, quer aos que trabalharam um dia inteiro quer aos que foram chamados à última hora [6]. E mais ainda, no caso do administrador infiel, que induz os servos a falsificar os comprovantes de dívida e em que a parábola termina com o texto: “E louvou o Senhor o administrador infiel: porque os filhos das trevas são mais sagazes que os filhos da luz no trato com os seus semelhantes. E eu digo-vos: arranjai amigos com as riquezas da iniquidade para que, quando morrerdes, vos recebam nas Suas moradas eternas” [7]. Sob a aparência de um conselho à desonestidade há seguramente um metassentido, induzindo ao uso desprendido e misericordioso dos bens terrenos, numa perspetiva de vida eterna.

O metassentido da Bíblia abrange desde logo o Antigo Testamento. Há uma dialética, digamos assim, que nos revela um sentido que só espiritualmente podemos captar. Porque a Bíblia é muito mais que um livro escrito por homens, imperfeitos como todos nós.

 

3. A misericórdia na Bíblia

A misericórdia perpassa toda a Bíblia, mesmo quando a palavra que a traduz possa não ser exatamente a mesma [8]. E há que anotar uma extraordinária constância, desde os primeiros tempos. Há no Antigo Testamento observações perfeitas.

Tomemos Oseas. É um profeta menor [9]. Mas logo exprime com muita exatidão o sentido verdadeiro da misericórdia, pondo na boca de Deus: “eu quero a misericórdia e não os sacrifícios, o conhecimento de Deus, mais que os holocaustos” [10].

E logo um profeta maior – e o maior dos profetas, Isaías – após pôr na boca de Jahveh que um povo indócil e rebelde “faz fumegar a minha ira”, insere a extraordinária promessa de Deus de que criará novos céus e nova terra: “o passado não será mais lembrado, e não voltará mais ao espírito, antes se gozará em alegria e felicidade eterna” [11].

É assim também que São Paulo, numa impressionante continuidade, escreve na Epístola aos Hebreus [12], imputando-o a diálogo de Cristo para com o Pai: “Os holocaustos e sacrifícios pelo pecado não Te agradaram. Então Eu disse: Eis que venho – como está escrito de Mim no Livro – para fazer, ó Deus, a Tua vontade”.

Igreja da Ordem Terceira do Carmo

Fonte: commons wikimedia

 

4. A misericórdia na Igreja e no mundo

O sentido da Misericórdia atravessa depois toda a história da Igreja, não obstante os desvios humanos que se verificaram também. Nos nossos dias, temos a consagração pelo Papa Francisco do ano 2016 à observância e aprofundamento da Misericórdia [13]. Mas é uma constante, na concretização da palavra de Cristo: “Bem?aventurados os misericordiosos, porque alcançarão a Misericórdia” [14].

Essa presença manifesta-se por exemplo em dois santos maiores, cujo nome serviu certamente ao nosso Papa de inspiração para aquele que para si escolheu – São Francisco de Assis e São Francisco Xavier. Mas mais recentemente temos essa figura espantosa do Papa S. João Paulo II (que com tanta alegria vemos canonizado já). Publicou a Encíclica Dives in Misericordia (Rico em Misericórdia). Ele observa como na atual situação da Igreja e do Mundo o homem, particularmente quando sofre, se volta quase espontaneamente para a Misericórdia de Deus.

E de facto, o mundo está numa situação de explosão violenta iminente, que caso a caso se remedeia quanto possível mas não passa. Não há apenas o receio de guerras: há também o perigo de explosão em regiões de miséria, que subsistem sempre.

E este não é ainda o índice mais preocupante. O mais grave está no coração do homem. Vemos emergir o que podemos chamar o ódio em estado puro. Já não são só as ideologias que proclamam o ódio como o motor da libertação do homem ou de uma classe, que adoçaram o discurso (embora nunca o neguem); são as ideologias de morte, as que trazem o delírio do massacre pelo massacre e encontram uma mórbida atração ou delírio, particularmente em camadas mais jovens ou desprotegidas.

O drama dos refugiados trouxe-nos outro desafio. Perante a impotência ou indiferença dos Estados ou Organizações extranacionais, vimos despontar manifestações de pura misericórdia; mas vemos também fortificarem-se formas extremas de ódio e intolerância.

 

5. A corrupção

Há que passar rapidamente à pergunta: a misericórdia também corrompe?

Para poder responder, temos ainda de nos entender sobre a corrupção.

A corrupção é um dos pecados maiores do nosso tempo. Não preciso de explicar muito, porque ela está à vista de todos, no nosso país e nas notícias que nos chegam dos outros.

Créditos: Antonio Cruz/Agência Brasil

Créditos: Antonio Cruz/Agência Brasil

A corrupção viceja naturalmente no mundo dos negócios. O dinheiro é ávido por dinheiro. No nosso país, temos uma demonstração flagrante no universo bancário: todos os bancos (tirando os públicos) que conhecemos na nossa juventude, desapareceram. Em todos os casos, verificam-se teias de corrupção.

A corrupção está também no funcionalismo e no mundo do trabalho. Em Portugal e ainda mais em países próximos, sabemos que se consegue um favor ou se escapa a uma multa pagando. É um fator grave de desmoralização da sociedade.

A corrupção está na política. Ficou-me na memória em Pernambuco [15] a conversa de um aluno meu, simpático e de família de alta condição social, que me dizia muito naturalmente: “Quando terminar, vou dedicar-me à política. Sim, que não hei-de morrer pobre!”. Deixa assim a política de ser dedicação ao bem comum para ser motivo de escândalo, no sentido originário da palavra como indução ao pecado.

A corrupção está nos governos. É flagrante, nomeadamente em países da CPLP. E explica também o descalabro em que muitos deles, bem como muitos outros países, se encontram.

Tem pois a corrupção, em todo o mundo, consequências dramáticas.

E qual é a resposta? É ainda a misericórdia.

A misericórdia, na sua essência mais pura, é um ato de amor ao próximo.

Não é um ato abstrato. Assenta em ver Cristo em cada homem.

Não é apenas filantropia.

Não é dar o que não faz falta – os restos.

Não é ser indiferente à possível humilhação de quem recebe.

Nem são os grandes gestos para captar aderentes, como é próprio de organizações secretas, sobre as quais recai nos nossos meios de comunicação um silêncio estranho.

 

6. A misericórdia corrompe?

Há que responder agora à pergunta que o tema comporta.

Vamos figurar uma situação: assiste-se no cinema ou na televisão a um filme de polícias e ladrões.

Suponhamos que, no final, o bandido é preso, ou ferido, ou morto…

Se ele foi apresentado como uma figura insinuante ou simplesmente simpática, caem lágrimas dos olhos de muitos (e muitas) assistentes [16].

Então a misericórdia corrompe?

Entendamo-nos: mesmo então a corrupção não estaria na misericórdia, a corrupção estaria nos sentimentos.

O sentimento pode exprimir-se diversamente. Quem for mais sensível poderá manifestá-lo, sem isso implicar nada de basicamente negativo.

Mas haverá casos em que se forja nalgumas pessoas a reação contra a lei: poderá até ser que esta eventualidade esteja implícita na pergunta feita, pois é formulada com referência à lei: “A misericórdia e a lei; a misericórdia…”.

E nesta hipótese? A misericórdia corrompe?

Não quis enfadar-vos com o problema da lei injusta. Mas ainda que se verificasse esta hipótese extrema, a resposta continuaria a ser negativa.

Não seria a misericórdia a corromper. Seria a lei que traria em si um estigma, de modo que seria contra a lei que se ergueria a rejeição do espetador.

Mas a misericórdia, tomada em si, é sempre positiva. E o sentimento que provocasse, mesmo exacerbado ou distorcido, nunca poderia levar a taxar a misericórdia de corruptora, na pureza do significado desta.

 

 

[1] Não escolhi o tema, aceito como de costume os que me são propostos, para evitar a tentação de escolher o mais fácil, porque já o tratei.

[2] S. João, 6/44.

 [3] Assim também se passou com a raiva que sentia em relação aos que me faziam mal. Até que um dia, inesperadamente, tudo passou. Estava noutra. Passei a pensar neles, quanto possível, como o meu próximo.

[4] Ou criptossentido. Também não sei grego, além de algumas expressões habituais. Mas penso que estas palavras exprimirão o que pretendo: um sentido real, além do imediato e aparente.

[5] S. Lucas, 10/25-37.

 [6] Lucas, 1-13. Forjámos a tradução combinando várias versões, porque supomos exprimir assim mais precisamente o que seria o sentido que Cristo pretende comunicar.

[7] São Mateus, 20/1-16.

[8] Por exemplo, quando é traduzido para piedade em português.

[9] O qualificativo atenderia à extensão da obra, mas bem pode ser também utilizado para significar o menor mérito da obra.

[10] Os. 6.6.

[11] Is. 65.17-18.

[12] 10/6-7.

[13] Através da Bula de 2015 Misericordiae Vultus (O Rosto da Misericórdia), de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia.

[14] São Mateus, 5/4. Ou ainda: “Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso”, São Lucas 6/36.

[15] Onde fui professor da Universidade Federal.

 [16] Parte-se do princípio que não é ao polícia que isto acontece, caso em que haveria que estranhar se as mesmas pessoas não chorassem também.

 

Newton de Lucca.jpg]Newton de Lucca é  Articulista do Estado de Direito – Desembargador Federal Presidente do TRF da 3ª Região, Doutor e Mestre em Direito Comercial pela USP. Membro da Academia Paulista de Magistrados. Membro da Academia Paulista de Direito. Presidente da Comissão de Proteção ao Consumidor no âmbito do comércio eletrônico do Ministério da Justiça. Vice-Presidente do Instituto Latino-americano de Derecho Privado.
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