A constitucionalização simbólica e o direito à cidade

A evolução histórica do direito moderno atribuiu um importante papel aos textos constitucionais: são eles que definem os projetos jurídico-políticos dos Estados nacionais. Elaborados segundo processos legitimados pela observância das “regras do jogo” democrático, às constituições incumbiriam, a um só tempo, a garantia de estabilidade das instituições e a sua atualização, mediante critérios próprios, ao incorporar as transformações sociais e políticas das sociedades.

Não é uma operação simples. Harmonizar sistemas sociais autônomos (economia, política, Direito) sem que haja uma sobreposição generalizada de lógicas particulares requer um enorme grau de amadurecimento das sociedades. Nos países da chamada modernidade periférica, como o Brasil, não é incomum identificar situações nas quais a função simbólica, associada ao sistema político, se sobrepõe à efetividade das normas jurídicas, localizadas no sistema homônimo.

Esse processo é conhecido como “constitucionalização simbólica”, conceito trabalhado no Brasil por Marcelo Neves. Nele, o conteúdo das constituições passa a atender a três propósitos, descritos pelo jurista alemão Harald Kindermann: a) confirmação de valores sociais; b) demonstração da capacidade de ação do Estado frente à resolução de problemas sociais; c) normatização orientada à produção de compromissos dilatórios, que adiam a solução de conflitos sociais.

Os três propósitos possuem pontos de interação e permitem formular hipóteses para explicar por que determinadas normas constitucionais não produzem efeitos e permanecem como promessas descumpridas. E aqui é possível incluir o chamado “direito à cidade”, inserido (de forma precária) no capítulo dedicado à ordem urbana na Constituição Federal de 1988.

Veja-se o exemplo da previsão legal da função social da propriedade urbana. Ela está bem delimitada em vários dispositivos constitucionais (art. 5o, caput e incisos XXII e XXIII, e art. 182, § 2º), com um desenho razoavelmente claro a respeito dos requisitos (adesão aos princípios ordenadores do plano diretor) e das consequências de sua inobservância (da edificação/parcelamento compulsórios à desapropriação com pagamento em títulos da dívida). Todavia, o tema só foi regulamentado 13 anos depois da entrada em vigor da Constituição de 1988, através da Lei Federal n. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade). Este dispositivo, por sua vez, já nasceu anacrônico, diante do estágio, à época já avançado, de crescimento das metrópoles (tema que, por sua vez, esperou mais 14 anos adicionais até ser regulado pela Lei Federal n. 13.089/2015, que instituiu o Estatuto da Metrópole).

Já a noção de “funções sociais da cidade” não mereceu a mesma sorte, e permanece como mera fonte de inspiração para trabalhos doutrinários, que tentam extrair-lhe um sentido adequado à narrativa de direitos inaugurada pela ordem constitucional.

Os dois exemplos são celebrados como um dos capítulos mais sublimes da assembleia constituinte, por terem sido incluídas no texto constitucional através de uma emenda popular, viabilizada pela mobilização dos vários atores sociais articulados em torno Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU).

A conclusão incômoda: os dispositivos que fornecem o conteúdo do “direito à cidade” podem ser lidos como expressão de uma normatização orientada à produção de compromissos dilatórios. E esse não é um processo ingênuo. Ele significa a neutralização, ainda que temporária, de conflitos sociais, e o deslocamento e pulverização das responsabilidades estatais.

Essa é uma constatação que não interessa apenas à literatura especializada. Movimentos sociais e articulações partidárias, se desejam levar a sério suas missões, devem enxergar os objetivos de luta e disputa para além das conquistas legislativas. Elas são sempre importantes, mas a cada traço de ineficácia, colocam em risco a confiança em todo o sistema legal e minam as demandas coletivas.

A história recente da disciplina da ordem urbana no Brasil é um exemplo dos mais evidentes de constitucionalização simbólica. A crença fetichizada na lei pode, ao final, frustrar expectativas e refrear os processos de transformação social. Cabe a cada protagonista da luta por cidades mais justas, democráticas e sustentáveis compreender que a lei é apenas uma bandeira, sempre precária e insuficiente.

Autor: Wilson Levy Braga da Silva Neto – Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. Graduate Student Fellow do Lincoln Institute of Land Policy. Professor assistente na PUC-SP e colaborador do programa de pós-graduação em Direito da UNINOVE.

 

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