Coluna Direito à Cidade
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Um tema que não desperta a atenção necessária
Os estudos urbanos se estendem para uma infinidade de interfaces. Várias são as dimensões da vida que merecem uma abordagem interessada em compreendê-las segundo o recorte do território urbanizado. Um tema, porém, parece não despertar a atenção da pesquisa especializada: a relação entre a cidade e as crianças.
Intuo que isso acontece porque o assunto exige um olhar sensível que é pouco compatível com a objetividade das ciências. O que, por evidente, não lhe retira a importância. Afinal, para além de tentar entender como o mundo funciona, é preciso transformá-lo num lugar melhor para as pessoas, e isso não dispensa um cuidado especial com as crianças.
A memória e a cidade
A melhor maneira de começar essa tarefa é pela memória. Ela traz a cidade que, no fundo, nos constituiu. Ou o resultado da nossa interação com a cidade, posto que somos constituídos de um acumulado de histórias.
Cada um de nós possui uma experiência particular em relação à cidade. Lembro das intermináveis brincadeiras no Centro de Convivência Cultural de Campinas, cidade grande do interior de São Paulo. Atravessava o parque numa bicicleta, mais animado em percorrer a grama e o caminho entre as árvores do que os trechos pavimentados projetados por Fabio Penteado. Subvertia, portanto, o percurso correto, porque a aventura de descobrir novos trajetos era infinitamente melhor.
Lembro ainda dos passeios pelo centro da cidade. Com meus pais, ou nos ombros do meu avô, ia conhecendo coisas novas: uma coruja, um cachorro, uma igreja, árvores, o comércio. Conhecia também o lado contraditório do mundo, ainda que não tivesse consciência dos seus motivos: músicos que tocavam em troca de algumas moedas e gente que apenas estendia a mão para receber alguma ajuda.
Havia, é claro, as precauções que deveria tomar e, principalmente, os medos. Ao passar por uma praça, por exemplo, alguém segurava minha mão com mais força. Praças, afinal, eram lugares perigosos. Andar à noite? Nem pensar. E caminhar sozinho nunca era uma boa ideia: sequestradores estavam à espreita, prontos para me enfiar num saco cheio de crianças desobedientes.
As experiências desse período me constituíram. Sou o que sou por aquilo que vivi: as dúvidas, as inquietações, os medos, os gostos. Por isso a cidade é tão importante. que dirão os adultos se a cidade lhes for apresentada como um espaço de muros, de medo, de violência?
Interação das crianças com a cidade
Walter Benjamin, filósofo alemão da Escola de Frankfurt, no clássico “Rua de mão única: infância berlinense”, fala sobre a maneira lúdica com que as crianças interagem com a cidade. Elas se satisfazem com coisas e lugares irrelevantes ao mundo adulto: restos de obras, galhos, casas antigas ou abandonadas. Mas nem por isso são menos importantes. Afinal, é com essa maneira peculiar de ocupar e viver no espaço que vão construindo um mundo próprio, baseado em suas brincadeiras, e pavimentando o caminho para o mundo adulto.
Cidades melhores então, são aquelas capazes de acolherem as crianças em suas brincadeiras, e não lhes serem um ambiente hostil. Devem ser generosas com o lúdico, convidativas, motivadoras da curiosidade e da descoberta do novo. Não seria exagero afirmar, portanto, que o direito à cidade deve incorporar um conteúdo intergeracional, o que impõem um compromisso das presentes gerações de pensarem o espaço urbano com vistas às futuras gerações.
Um compromisso multifacelado
Esse é um compromisso multifacetado. Quero aqui focalizar um dos seus responsáveis: as famílias, primeira experiência de relação social na vida de qualquer indivíduo. Pais precisam apresentar a cidade para seus filhos como uma grande oportunidade de brincadeiras, porque a fantasia guarda o aprendizado essencial para a vida adulta, e valores como a autonomia, a solidariedade, a tolerância. O pai ou a mãe que segura a mão de uma criança e a conduz pela cidade, apresentando-a ao mundo, em toda a sua diversidade e diferença, conversando e ensinando, é um privilegiado, porque imbuído de uma missão especialíssima: ajudar a construir a cidade e a sociedade do amanhã.