A arte de produzir o caos

Coluna Democracia e Política

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Foto: Agência Brasil

Estabelecedores do caos

“Oi! No momento, este telefone está programado para não receber chamadas”. Assim começa a reportagem de Cristiano Duarte de Zero Hora (23/03) em que se vê claramente o projeto do governo Nelson Marchezan Jr: estabelecer o caos na administração pública com o objetivo de desorganizar os serviços, primeira etapa da entrega do patrimônio do município na escalada da privatização dos serviços da prefeitura da capital. A estratégia, que reproduz até o último fio do que resta de cabelo no governador José Ivo Sartori é a arte de produção do caos, essa “tabula rasa” na administração pública que impõe o caos como estratégia do governo para atender objetivos neoliberais. A palavra Caos vem grego Khaos e segundo Hesíodo, na mitologia grega, foi o primeiro deus primordial e deriva do verbo grego  khaínô (?????), que significa  o espaço vazio primordial que se implanta lentamente: Ovidio lhe  atribuiu a noção de desordem e confusão e que seria o contrário de Eros – caos é a cisão, Eros representa a união.  Não é paradoxal que o Prefeito que provoque o caos na administração pública seja o mesmo que no seu discurso declara seu amor a Porto Alegre? A isso chamamos ideologia.

Implantar o caos é uma arte. Vejamos como o caos se implanta lentamente na administração. Duarte telefonou para 20 dos 22 telefones das unidades dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e constatou assombrado que “por falta de pagamentos, telefones e internet foram cortados há dois meses. Em algumas unidades, chegou a faltar luz.” Como é possível isso? Qualquer aluno do primeiro ano da disciplina de Administração Pública conhece o conceito de “continuidade administrativa”, também chamado de principio da permanência, é a proibição da interrupção do desempenho de atividades do serviço público, como a prestação de serviços aos cidadãos, pagamentos de contas da administração pública, etc. Quer dizer, o principio defende que a eficácia do serviço público se demonstra na forma com executa suas atribuições principais é uma atividade de interesse coletivo que não pode parar, e se o pagamento de insumos e prestadores de serviços é fundamental para o exercício de suas funções, o bom administrador deve, em nome do interesse coletivo, efetuar os pagamentos mínimos para não interromper os serviços. O começo da implantação do caos é sempre suave, discretamente, são sempre as menores omissões que garantem os maiores prejuízos.

Responsabilidades abandonadas

É o exemplo do pagamento das contas da administração. Pagar contas de luz e telefone é uma atribuição contínua do serviço público. Quando um prefeito assume o governo, as contas deixadas pelo governo anterior são assumidas na forma da lei. O serviço público não pode parar, e não é porque uma conta foi gerada no governo anterior que Marchezan pode recusar-se a pagá-la em sua gestão. Não é uma conta qualquer: deixar de pagar o telefone torna incomunicáveis os órgãos públicos; deixar de pagar os serviços de internet retira uma ferramenta de trabalho inestimável. Isso acarreta prejuízos notáveis aos servidores e implica em responsabilidade ao gestor, que pode ser processado por prejuízos causados por sua omissão.

Não parece ser este o entendimento de Marchezan. Para sua administração, basta a justificativa de crise  para abandonar a sua própria sorte os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas). Afirma Duarte: “Faltam repasses a funcionários terceirizados, cestas básicas, alimentação, higienização e cartões assistenciais.” Marchezan, graças a sua omissão, algo que é feito de maneira consciente, lenta e sorrateira, leva ao estabelecimento do caos, à redução dos atendimentos, a interrupção do trabalho,  ampliando a vulnerabilidade social dos cidadãos que dependem dos serviços. “Estamos sem a parte da limpeza e sem portarias, por exemplo. O serviço da infância no turno inverso está paralisado desde janeiro. Os oficineiros, terceirizados, que executam o serviço não recebem há três meses. A empresa que fornece alimentação também não foi paga” relata uma técnica, que pediu para não ser identificada”, descrição exata do significado do termo caos aplicado à função pública.

Não é preciso lembrar a importância da área de assistência social para a administração de Porto Alegre. Executada pela FASC, tem como desafio inserir o cidadãos no campo dos direitos sociais básicos, principalmente no campo da saúde pública e demais direitos sociais.  Com conhecimento e prática de trabalho e pesquisa junto à população de rua usuária de seus serviços na capital, entre outros setores sociais,  as suas equipes são as que melhor conhecem o perfil de moradores de rua e a realidade onde se encontram, identificando as possíveis soluções para seus problemas. A omissão do Prefeito priva estes servidores de cumprirem sua função, a de executar políticas públicas.

 

Foto: EBC

Foto: EBC

Essa atitude é um grande desrespeito aos profissionais do Serviço Social que lutam por uma sociedade mais justa na capital, com a defesa de valores e ideais democráticos e de cidadania. Profissionais imprescindíveis para o Estado de Bem Estar Social ou Seguridade Social, eles são mal vistos por todo o agente público que representa os interesses do capital: para estes, o social é sempre visto como custo, nunca como obrigação.

Por esta razão, ao permitir a implantação do caos na rede de CRAS de Porto Alegre, o governo Marchezan impõe a precariedade do serviço público: como afirma a reportagem, por esta razão, os CRAS ficam impossibilitados de fazer ações que beneficiam o cidadão, como o Cadastro único para obtenção de benefícios como o Bolsa Família. Cita o repórter de ZH um depoimento:”Impacta tudo, principalmente na vida financeira. Agora preciso deixar alguém cuidando dos meus filhos quando saio para trabalhar e tenho mais gastos com comida. Eles ficam sem fazer nada o dia todo. Antes, tinham aulas de arte e esportes. Agora passam o dia em casa, à mercê da criminalidade” comenta Cristiane Miranda, 40 anos, mãe de dois filhos que eram assistidos em um dos centros sociais.”

Minimização dos problemas

A FASC, como é de se esperar de todo agente do caos, minimiza os problemas, afirmando que a ausência de telefone e internet não prejudica o serviço. Como assim? Não é o que afirmam servidores e cidadãos entrevistados pela reportagem. Mais: não se trata apenas dos CRAS, mas também dos abrigos públicos municipais, onde os servidores já denunciavam que também que nos albergues municipais de Porto Alegre não há telefone funcionando. Como telefonar para um familiar de um interno, chamar serviços de emergência numa necessidade de saúde, a polícia numa necessidade de segurança ou mesmo os bombeiros em caso de incêndio sem telefone? Este é um serviço essencial a administração nos dias de hoje e servidores afirmam que esta situação já completa dois meses. Como o  Prefeito não sabia? Passados dois meses da posse, não teria tido tempo a atual administração de pagar as contas? Como diz Marchezan, o seu “José” e a “Dona Maria” sabem de suas contas, não é verdade?

O caos é terrível porque impõe sofrimento ao servidor público e é a estratégia da administração para estabelecer a precarização da função pública: é que na realidade, o objetivo do Prefeito Nelson Marchezan Jr não é a construção de um sistema público de serviços, ao contrário, é sua desmontagem, é mostrar sua fragilidade a opinião pública com objetivos de justificar a venda e a privatização de órgãos públicos. A falácia do argumento da direção da Fasc é que os serviços estão abertos, mas na realidade, devido ao caos implantado, eles não podem ser oferecidos.  Destaca o jornalista:” A falta de recursos vai levando a outros problemas. A assistência social é uma política de garantia de direitos a quem precisa. Nós, como município, não estamos conseguindo fazer a garantia destes direitos” argumenta outra assistente social de uma unidade, que também pediu para não ser identificada.” A Fasc tem serviços, mas não o efetiva, nada mais perverso e  pior, porque, segundo o articulista “o prefeito Nelson Marchezan revelou desconhecimento sobre o funcionamento dos Cras”. Como assim? Como se sabe, o ex-vereador Kelvin Krieger, ex-presidente da Fasc, é também o braço direito da administração,proximidade tão intima deveria ter familiarizado o prefeito com a fundação. Mas não sejamos tão críticos: Marchezan comprometeu-se, entretanto, a resolver o problema. Vamos esperar. Esperemos que inclua também os abrigos públicos no pagamento da conta de telefone.  Culpar o Prefeito José Fortunati de atraso não solucionará os problemas. É preciso assumir-se como Prefeito.

A desvalorização do servidor

O caos que o projeto do prefeito impõe para criar a “tabula rasa” no serviço público depende da desvalorização do servidor e da máquina pública. Característica vista recentemente quando o Prefeito Nelson Marchezan Jr referiu-se aos professores que criticam seu projeto de reforma como “baderneiros”,  exemplo notável da criação de uma cultura de desvalorização do servidor, elemento integrante da estratégia politica de criação de caos, ocorreu também no caso do motorista da empresa Carris que agrediu um ciclista recentemente. O repórter Leo Glechman publicou em Zero Hora que no dia 22, após um vídeo de três minutos e meio postado no Facebook viralizar na terça-feira ao mostrar a confusão entre um motorista de ônibus e um ciclista no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, um episodio ocorrido no último dia 15 e que envolveu ainda o cobrador, a Cia Carris afastou o servidor e vereadores já pedem a sua demissão. O vídeo mostra uma desavença de trânsito com troca de xingamentos e o mais grave, o motorista batendo com uma barra de ferro na roda da bicicleta numa discussão ocorrida entre as ruas Garibaldi e Irmão José Otão. Não ficam claras as razões imediatas da agressão. Fala-se que o ciclista declarou que “queria “ficar fora disso, pelo menos por enquanto”. Mas nosso positivismo contemporâneo onde só importam imagens da internet encarrega-se da justiça: não se procuram mais as causas na mentalidade simplista de uma opinião pública sedenta de sangue.

Que fez a Carris? Aquilo que a opinião publica exigia. Diz a reportagem:”Por e-mail, a assessoria de imprensa da Carris disse que, “ao tomar conhecimento da agressão ao ciclista por um motorista da linha T5 e analisar as imagens das câmeras de monitoramento do ônibus, a diretoria da Carris se reuniu com o ciclista e se colocou à disposição para ressarcir os danos causados pelo seu colaborador. Após conclusão de processo disciplinar para apurar o fato, quando ouviu as partes envolvidas, a Companhia decidiu afastar das atividades o motorista envolvido no caso”. O cobrador não foi afastado.”.  Objeto de um projeto disciplinar, em nenhum momento nenhum dos integrantes da  Cia Carris se perguntou: “como isso pode ocorrer?”

Como se sabe pela leitura dos jornais, os motoristas e cobradores de ônibus em Porto Alegre vivem uma realidade marcada por violência. Passando horas dentro de ônibus, vem sendo vitimas da violência da cidade, em situações traumatizantes para a tripulação de bordo. Essas situações fazem surgir doenças como depressão, e com longas jornadas sem descanso, o resultado é danos físicos e mentais a quem transporta pessoas diariamente. Afirma o site da empresa Mercedes Bens, uma das maiores produtoras de ônibus do país:”Além de todos os fatores físicos, outro ponto enfrentado na rotina da profissão é o estresse recorrente da função.O trânsito e o vai e vem das cidades, passageiros sempre com pressa, motoristas em seus carros de passeio que não respeitam as leis de trânsito. Inúmeros são os percalços que podem afetar a saúde psicológica do motorista que não obstantes, acabam acarretando em males ao corpo. Depressão, ansiedade, dependência química, fadiga, pressão alta, transtornos alimentares, dores no corpo, problemas respiratórios, ataques cardíacos, derrames e doenças respiratórias, além da Síndrome do Pânico são as consequências mais comuns. “É extremamente importante e necessário que a pessoa perceba quando algo passa a atrapalhar e dificultar sua vida em algum aspecto seja social, profissional ou pessoal. Uma vez identificado, deve-se procurar a ajuda de um profissional especializado”, afirma o psicólogo Leandro Denardi no site.”

O motorista que protagonizou a cena gravada no vídeo era um trabalhador doente, precisava de auxilio e tratamento, não repreensão, eis a questão. Sindrome de Bournot é o nome da doença que acomete o trabalhador por excesso de stress profissional, esta descapacitação para o trabalho oriunda da superexploração do trabalhador, essa retirada das condições do bom exercício profissional em nome da rentabilidade e do baixo custo é que responde pela agressão do motorista. Não se trata de uma violência da natureza do motorista, e já vemos situações semelhantes serem protagonizadas por professores. Então a empresa deve demitir? É claro que não, deve oferecer auxilio. Então, a quem serve a demissão e o afastamento do funcionário? Ao reforço de um imaginário de que o trabalhador público é incompetente para o exercício de sua função e que deve haver terceirização, e não foi exatamente o que ocorreu com a aprovação  nesta quarta-feira passada (22/3) do projeto da terceirização “absoluta” pelo Câmara dos Deputados? Mas a solução proposta não é solução, é o aprofundamento das condições de super exploração: Marchezan já reconheceu a inspiração nas políticas do governo de José Ivo Sartori que pregam a precarização dos serviços e o caso do motorista da Carris só reforçará sua ideia de VENDER a Carris pelo reconhecimento da incapacidade de seus trabalhadores, nada mais nefasto porque injusto com o seu trabalhador.

Conclusão

Estamos vendo o processo de desmonte local do serviço público local. Este processo está apenas engatinhando: começou com as investidas contra os servidores municipais com o anúncio do atraso do pagamento dos salários, aprofundou-se na crise com os professores municipais pela imposição de nova grade de horários e agora revela-se na crise da estrutura dos serviços públicos e na desqualificação do servidor público. Alerto: está apenas começando. Os servidores municipais devem estar atentos: é preciso buscar a negociação, cobrar atitudes morais e técnicas de seu Prefeito, cumprir suas funções e esclarecer a opinião pública . A arte de fazer o caos é sutil, ela manifesta-se em omissões e julgamentos pré-definidos, um crime perfeito porque é feito sem testemunhas e onde o verdadeiro culpado nunca aparece para assumir a culpa. Não podemos deixar um sistema público municipal perecer.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.
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