Coluna Direito Privado no Cotidiano
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Nulidade e anulabilidade
É voz corrente a que refere que a pronúncia da invalidade do ato anulável possui efeito ex nunc. Entretanto, a desconstituição dos efeitos do ato anulável é retroativa, ou seja, opera-se ex tunc.
Enquanto a nulidade é declarada em sentença que inclusive pode ser prolatada a qualquer tempo reconhecendo a invalidade, a anulabilidade produz efeitos provisórios que podem ser convalidados pelo decurso do tempo ou da vontade, sendo sua pronúncia judicial constitutivo-negativa, ou seja, desconstitutiva, retroagindo e desfazendo os efeitos fulminados. Não fosse assim, não se restituiriam, tanto na nulidade quanto na anulabilidade, as partes ao status quo ante como manda a lógica e o art. 182 do Código Civil. E do mesmo modo, ter-se-ia que afirmar que o vício reconhecido não é original, mas muito posterior ao negócio viciado, como se o dolo, a lesão, o erro, a coação, o estado de perigo, a fraude contra credores ou a incapacidade relativa não estivessem na gênese do pacto inválido.
Apesar do negócio anulável produzir efeitos provisoriamente, ainda assim o reconhecimento da invalidade enseja a reversão da eficácia, restabelecendo-se, na medida do possível, a situação original. Não se desconstitui a partir somente da manifestação jurisdicional o ato anulável, ao contrário da sentença de divórcio que, esta sim, produz alteração do perfil jurídico dos envolvidos e não restabelece o status quo ante, fulminando os efeitos produzidos até então.
É por isso que Marcos Bernardes de Mello[1] assevera “Desconstituído o ato, desconstituem-se os efeitos que produzir. A desconstituição do ato tem efeitos ex tunc, quanto à sua eficácia própria.”. Não parece ter sido outro o entendimento de Pontes de Miranda a respeito[2]. Na mesma linha já se vislumbra renovação alvissareira da dogmática civilista nacional, merecendo destaque o quanto pontificado por Flávio Tartuce[3], Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[4], dentre outros. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira[5], processualista de escol, também advogava a eficácia ex tunc da anulação. Também Humberto Theodoro Júnior[6]. De igual modo, a eficácia ex tunc é sustentada na Itália, tal como leciona o festejado professor Guido Alpa[7]:
12.17. Conseguenze dell’annulabilità.
Se l’azione di annullamento è accolta le conseguenze sono lo scioglimento del contrato e la restituzione di tutte le prestazioni effetuate. L’annullamento ha efficacia retroattiva, come sora si è detto, ma non pregiudica i diritti acquistati das terzi in buona fede e a titolo oneroso. (itálico no original)
Igual vaticínio de outro mestre italiano é oferecido por Enzo Roppo[8]:
Uma vez decretada a anulação, os efeitos do contrato são eliminados, tanto para o futuro, como para o passado: […] neste sentido, a anulação tem efeito também retroactivo […]
Estado de perigo e a validade dos contratos
Alguém diria que um contrato feito em estado de perigo é válido e eficaz até que uma sentença transitada em julgado estabeleça o contrário e, então, a partir de tal momento, seja o negócio considerado inválido e ineficaz? Se antes era válida, por que restabelecer o estado de coisas anterior? Afinal, se o pacto estava em conformidade com a ordem jurídica, nada haverá a ser restituído, sequer aplicando-se o art. 182 do Código Civil.
Se do contrato tenebroso adveio um estado de coisas juridicamente normal, como então a família que desesperada aceitou a oferta indecente poderá postular indenização? As consequências para as pessoas prejudicadas pelo estado de perigo sequer seriam danos decorrentes de um ilícito, de forma que, na prática, inexistiria responsabilização civil do beneficiário torpe do negócio inválido. A busca do reconhecimento da anulabilidade pode vir acompanhada tranquilamente de uma pretensão condenatória, mas a decretação ex nunc do da invalidade implicaria (quase sempre) na rejeição do pleito indenizatório, salvo na remota hipótese de indenização por ato lícito – o que enseja tormentosa discussão à parte. Aí já se vê como é artificial e pouco operacional a construção do reconhecimento apenas ex nunc da anulabilidade.
Não bastasse o dito acima, então se um relativamente incapaz contrair um empréstimo e inadimpli-lo, então ao sofrer ação de cobrança poderia tranquilamente advogar a anulabilidade, sendo o negócio tido como inválido apenas a partir da sentença, de forma que se fulminaria a dívida sem devolver o valor recebido, beneficiando-se torpemente do melhor de dois mundos. Portanto, é claro que deve o reconhecimento do vício operar-se retroativamente, não apenas porque o defeito é original e permeia o próprio pacto, mas igualmente pelo resultado inadmissível gerado pela ausência de restituição do status quo ante.
Assim, o problema da eficácia retroativa do pronunciamento da anulabilidade não se reveste de cunho exclusivamente teórico, mas impõe-se para que na prática o resultado seja o mais justo possível, evitando-se consequências concretas inadmissíveis.
Conclusão
Por fim, o assunto é delicado e há inúmeras outras questões de ordem prática a ensejar a manutenção de determinados efeitos, especialmente para proteger-se a boa-fé das partes e de terceiros. Entretanto, tal análise transcendia o restrito escopo do presente ensaio, de modo que aqui não se realizou tal abordagem.
Referências
[1] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Validade. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 229.
[2] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Vol. 31. 3ª ed. São Paulo: RT, 1984, p. 248-252
[3] TARTUCE, Flávio. Direito Civil, vol. 1: lei de introdução geral e parte geral. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 442 e 443.
[4] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. Volume 1. 10ª ed. Salvador: Juspodvum, 2012, p. 614.
[5] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Teoria e Prática da Tutela Jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 168.
[6] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil. Volume III. Tomo I. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 618-620.
[7] ALPA, Guido. Corso di Diritto Contrattuale. Padova: CEDAM, 2006, p. 141.
[8] ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, p. 245 e 246.
Tiago Bitencourt De David é Articulista do Estado de Direito, Juiz Federal Substituto da 3ª Região, Mestre em Direito (PUC-RS), Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). Bacharel em Filosofia pela UNISUL. |
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