O contrabando legislativo
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, na ADi 5127, julgada em 15 de outubro de 2015, entendeu que não mais pode ocorrer o chamado “contrabando legislativo”. Essa prática consiste em incluir matéria estranha ao texto original de medida provisória editada, quando de sua apreciação no Congresso Nacional. A ação foi proposta pela Confederação Nacional das Profissões Liberais e o pedido foi julgado improcedente, por maioria, apesar da ressalva já antecipada, de vedação do contrabando.
A demanda versou sobre a Lei 12.249/2010, que resultou da aprovação da Medida Provisória 472/2009. Essa lei determinou a extinção da profissão de técnico em contabilidade, matéria estranha ao conteúdo daquela medida provisória, encaminhada pelo Poder Executivo, que tratava sobretudo de matéria financeira e tributária, em distintas áreas, assim como de incentivos fiscais. Vale a pena dizer que era totalmente estranha.
Ministro Luís Roberto Barroso
Há vários ângulos a examinar no processo. Porém, o que se destacará é a originalidade do voto do Ministro Luís Roberto Barroso, por trazer de volta aos tribunais brasileiros um dos temas das fontes do direito, particularmente o costume jurídico. Depois do voto do Relator, Luís Edson Facchin, Barroso
julgou, como aquele, improcedente o pedido da ação, mas como fundamentos distintos e mais complexos. A simples menção à improcedência, assim, é enganosa.
Barroso assentou as seguintes premissas, condutoras de seu voto: não há regra expressa na Constituição Federal que proíba emendas ao texto de medida provisória, em apreciação pelo Poder Legislativo, que não contenham pertinência temática, isto é, que tratem de matéria estranha ao tema da medida. Segundo ele, isso não significa que estejam autorizadas, pelo só fato da ausência de proibição expressa.
Ocorre, por outro lado, que essa prática é reiterada, de longa data, e jamais houvera iniciativa de submetê-la, como causa de pedir, ao Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de constitucionalidade. Este fato implicaria uma aceitação genérica, um consenso de constitucionalidade, pelo transcurso do tempo. Daí o Ministro entender tratar-se de costume constitucional, que, como qualquer costume, é, tradicionalmente, segundo a doutrina, fonte formal do direito, com importância variável, conforme o tempo, o lugar e o sistema jurídico.
Para Barroso, já existe hoje, no entanto, dentro e fora do Supremo Tribunal Federal, um consenso de que tal prática é incompatível com a Constituição, referindo em geral os mesmos fundamentos adotados pela Ministra Relatora, Rosa Weber. Em primeiro lugar, porque subtrai ao Presidente da República, que é quem tem competência para propor, a avaliação da urgência, requisito de mérito na apreciação (art. 62, caput, da Constituição).
E, particularmente no caso concreto, parecia evidente a inexistência de qualquer urgência. Em segundo, porque o devido processo constitucional seria violado, uma vez que o debate constitucional “normal”, com todas as suas etapas, fica alijado. Em terceiro, porque viola o princípio democrático, ao reduzir o âmbito dos debates publico e parlamentar, e o processo deliberativo transparente.
Inconstitucionalidade
Com estas considerações, declarou, em seu voto, incidentalmente, a inconstitucionalidade dessa prática, autêntico costume constitucional, com eficácia ex nunc, em virtude de uma também autêntica mutação constitucional, ocorrida no âmbito da jurisprudência daquela Corte. Declarou, também incidentalmente, constitucional o dispositivo do art. 4º, § 1º do Regimento Comum do Congresso Nacional, a Resolução nº 1, 1989, alterada pela Resolução nº 1, de 2002, que veda a apresentação de emendas sobre assuntos não pertinentes ao texto da Medida Provisória.
A eficácia ex nunc decorre primeiro da percepção de que somente agora houve essa inclinação pela inconstitucionalidade da prática. Segundo, do princípio da segurança jurídica, expresso inclusive no art. 21 da Lei 9868. A declaração de inconstitucionalidade do costume, com efeito ex tunc, fulminaria um número incalculável de normas aprovadas através do mesmo expediente, gerando grave insegurança, inclusive para terceiros de boa-fé.
Não há até a presente data acórdão publicado com inteiro teor e a Ementa da decisão publicada não faz alusão expressa à declaração de inconstitucionalidade do costume, tal como expresso no voto do Ministro Barroso. Mas não há outra conclusão ou interpretação possível, eis que menciona a incompatibilidade da prática do “contrabando legislativo” com a Constituição da República.
Parece ser esta a primeira decisão do gênero. Daí a importância de analisá-la doutrinariamente, e medir-lhe o alcance enquanto precedente. É preciso certa cautela, de momento, e verificar se o colegiado efetivamente se inclinará por esse caminho teórico e por esse tipo de solução. A questão do costume e das fontes do direito, em geral, tem tido menos relevo, nas últimas décadas, muito embora bastante se tenha debatido sobre as mudanças e mutações ocorridas, em favor do Poder Judiciário, como legislador positivo e intérprete criativo da Constituição.
Em nosso caso – o caso brasileiro – a constitucionalidade de um costume e sua declaração pode ter muito a ver com certa leniência dos demais Poderes – inclusive do próprio STF – e dos legitimados ativos das ações constitucionais, como ocorreu nas incontáveis reedições de medidas provisórias, que logica e evidentemente não tinham relevância ou urgência.
É claro também que o voto do Ministro Barroso, merece uma apreciação mais minuciosa, inclusive sua alusão, como obiter dictum, a uma mutação constitucional jurisprudencial. Além disso, e principalmente, é pelo menos bastante discutível a presença, no caso presente, do requisito doutrinário sempre proclamado: a opinio iuris seu necessitatis. Esse modo de atuação legislativa – o contrabando – diga-o o próprio apelido – é em geral feito de modo furtivo, à sombra do processo legislativo, resultando muito mais dos conhecidos “cálculos” legislativos, que permeiam os debates de mérito dos projetos. Mas não se trata de aprofundar isso aqui, neste espaço limitado, mas sim de algo a ser feito a partir de agora.
A solução dada no caso não reforça ipso facto a doutrina do costume como fonte formal, nem a doutrina das fontes em si. Nem sequer seria a única possível, ao que parece. Mas logicamente, não há negar que conduz a um reexame do tema, uma vez que impõe um olhar mais cuidadoso com as práticas, conforme ou contrárias à Constituição, e que atuam de forma criativa no âmbito constitucional.