Direitos Humanos: entre a mão invisível e o rosto exposto

Samuel Mânica Radaelli*
A modernidade consolida a subjetividade na perspectiva do individualismo possessivo[i], isto também se vincula a uma compreensão da centralidade do “eu”, alicerçada em uma consciência própria (Descartes) e em uma vontade autônoma (Kant). Tais visões foram os pressupostos dos projetos de emancipação humana construídos a partir da modernidade, na qual a liberdade negativa era a pauta central.
A afirmação dos Direitos Humanos, tomados como Direitos Fundamentais, colaboram com a ascensão burguesa, como tal, afirmam-se os valores do sujeito enquanto proprietário. A partir de formulações de Hobbes e Locke, que viabilizaram a construção de um modelo societal conhecido como “sociedade de mercado possessivo”, a qual demarca um sujeito pensado a partir da capacidade individual de maximizar resultados, por ele a capacidade de adquirir mais é definidora da posição social de cada um, mas também da disposição dessas posições na sociedade.
Os direitos fundamentais, tradicionalmente tidos como direitos individuais, foram concebidos como “liberdades políticas”, em uma lógica da ipseidade. A promessa de mobilidade social pela via da livre iniciativa no mercado, talvez seja a mais sedutora das promessas modernas, com ela consolida-se o individualismo possesivo como ethos, em uma sociedade que organiza prerrogativas para sujeitos autônomos que competem por acúmulo ou saciedade. Em tal configuração, a individualidade é vista como oposição a outrem, visão sintetizada no brocardo “a liberdade de um começa onde termina a liberdade de outro”.
O individualismo marca a subjetividade moderna, na qual o “eu” é definido como o processo de escolha pessoal, do mesmo modo, a construção de uma totalidade centrada na individualidade posta nas relações mercantis, nas quais o trabalho assume contorno de uma “mercadoria”, colocada em desvantagem ante o capital. Assim a propriedade dos meios de produção define a posição social e as possibilidades existenciais, a propriedade assume contorno diferente, se comparada com a acepção dada a ela no direito romano por exemplo, a qual era tida como uma prerrogativa decorrente da posição social, já na modernidade ela é o fator que determina a posição social de cada indivíduo.
A proposta de igualdade abstrata (legal), dada a um sujeito também abstrato, realizada no âmbito das trocas inerentes ao modo de produção vigente, significou a construção de um sistema regulamentado de vantagens, pois aqueles que detém maior capital (financeiro e simbólico) se beneficiam desse mecanismo de abstrato e irreal de nivelamento. A igualdade formal fortalece a desigualdade social, estabelecendo uma ordem centrada no emolumento do “eu” sobre o outro. A pauta dos direitos, tida como invocação de liberdades negativas, é efetiva para aqueles dotados de possibilidades financeiras e/ou em posições sociais não minoritárias.
Os direitos tomados como liberdades públicas, trazem a necessidade de repensar a ideia de liberdade, liberdade é “ser possível”, os direitos fundamentais permitem o que ser possível? A quem? Neste âmbito percebe-se a Liberdade de iniciativa como sendo emblemática, ela revela quem de fato pode ser livre no livre mercado. Liberdade é conjunto de possibilidades que uma sociedade dá a cada sujeito, em espírito e corpo, se essas liberdades dependem do que cada um possui, as prerrogativas estão na propriedade, não nos direitos, os quais funcionam efetivamente para garantir a propriedade e as oportunidades dela decorrentes. Por isso, no imaginário reacionário a liberdade se sobrepõe à justiça.
A garantia de liberdade em uma visão marcada pela construção patrimonial, seja do cidadão proprietário, seja do cidadão consumidor, tem a ilusão de que é garantida e ampliada pela extensão da restrição ao outro. Segurança como oposição à liberdade se fortalece por uma concepção de liberdade como algo fruto da individualidade, o que desagua em uma percepção ainda mais restritiva de liberdade. A busca por restringir o outro fatalmente implica em uma restrição a si.
Além disso, o Darwinismo aplicado para além da Biologia, traz o entendimento de que os mais fortes garantem sobrevivência e fartura, numa lógica concorrencial, predatória e acumulativa. A sujeição à lei da oferta e da procura condicionada pelo capital, reafirma de forma cínica, o descaso com as consequências nefastas da opressão, pois a suposta espontaneidade do mercado se faz indiferente às vítimas da sua ação. A afirmação da espontaneidade do mercado torna a lei do mais forte a regra do jogo, a “seleção natural” reforça o paradigma sacrificial.[ii]
Em uma sociedade em que a cobiça assume a forma de defesa do “eu”, pela maximização do gozo e da acumulação[iii], combinada com a concorrência com outrem, a indiferença, além de cômoda, torna-se funcional, terapêutica e até libertária, na medida que salva o “eu” das admoestações da consciência. Nesse horizonte, ela livra o humano da interpelação do outro, da angústia da opção e da ruptura cognitiva com o cotidiano que a ação fundamentada exige. Por isso, a indiferença é a forma mais sorrateira, e talvez mais violenta, de desumanidade.
Em contraponto, tendo a alteridade por pressuposto, a Filosofia da Libertação apresenta um projeto político, cultural e ético que rompe com a ontologia e com a totalidade eurocêntrica. Esta filosofia firma suas bases reflexivas na realidade das injustiças vividas na América Latina. Pauta seu conteúdo filosófico pelo rosto do pobre e oprimido, surgindo, assim, um pensamento comprometido com a superação do quadro histórico de opressão, personificado no índio, na mulher, no camponês, nas comunidades tradicionais, no desempregado, no trabalhador explorado, enfim, em todo aquele que é configurado como vítima de um sistema global de exploração.[iv]
A epifania do outro, através de seu rosto, é a revelação da presença de alguém, mas é também desvelamento das pré-compreensões e dos preconceitos estabelecidos, em geral, definidores da ação intersubjetiva na Totalidade. Este duplo movimento de revelar e desvelar, propiciado pelo rosto humano representa a interpelação ética. A não indiferença diante de um rosto humano sempre cobra uma postura, ou a adesão a um projeto de responsabilidade pelo que sofre, ou incorrer no cinismo. Assim sendo: “o rosto do outro exige um compromisso ético na ação histórica, que se dá na sua epifania da interpelação ética: tu não matarás! O eu será constantemente colocado em questionamento pelo outro.”[v]
A indiferença ao rosto humano desumaniza, pois nele está exposto o apelo: “deixe-me viver”; em consequência, “o não compromisso significa aceitar a situação e tomar sutilmente partido em favor dos privilegiados”.[vi] Assim sendo, apresenta-se como uma filosofia que inova por atenuar o caráter abstrato, predominante nesta seara, dando a ela uma dimensão corporificada e geopolítica.
O Direitos Humanos podem ser uma alternativa de libertação do humano do mercado, é preciso tê-los em uma perspectiva de liberdade que trate da construção de possibilidades “para ser”, o que desafia frontalmente a visão mercadologicamente estabelecida dos direitos como possibilidades dadas a quem tem. Para tanto, é necessário estabelecer a vida humana como critério de validade da construção da legalidade, em um cenário em que a justiça se afirme como anterior à liberdade e os direitos sejam identificados como um compromisso com a “comunidade das vítimas” (Dussel), pois a liberdade individual é feita das possibilidades dadas por uma comunidade. Por isso, a liberdade de um começa na do outro!
[i] Macpherson explica o a teoria política do individualismo possessivo por essas características: (i) O que confere aos seres o atributo de humanos é a liberdade de dependência da vontade alheia. (ii) A liberdade da dependência alheia significa liberdade de quaisquer relações com outros, menos as relações em que os indivíduos entram voluntariamente visando a seu próprio proveito. (iii) O indivíduo é essencialmente o proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias capacidades, pelas quais ele não deve nada à sociedade. (iv) Se bem que o indivíduo não possa alienar a totalidade de sua propriedade de sua própria pessoa, ele pode alienar sua capacidade de trabalho. (v) A sociedade humana consiste de uma série de relações de mercado. (vi) Já que a liberdade das vontades dos outros é o que torna humano o indivíduo, a liberdade de cada indivíduo só pode ser legitimamente limitada pelos deveres e normas necessários para garantir a mesma liberdade aos outros. (vii) A sociedade política é um artifício humano para a proteção da propriedade individual da própria pessoa e dos próprios bens, e (portanto), para a manutenção das relações ordeiras de trocas entre os indivíduos, considerados como proprietários de si mesmos. MACPHERSON, Crawford Brough. A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 275-276.
[ii] DUSSEL. Enrique. 1492: o encobrimento do outro. Petrópolis: Vozes, 1993.
[iii] HINKELAMMERT, Franz. A maldição que pesa sobre a lei. São Paulo: Paulus, 2012.
[iv] SIDEKUM, Antonio. Levinas e a filosofia da libertação. Nova Petrópolis: Nova Harmonia, 2015 p. 194-196.
[v] SIDEKUM, Antonio. Interpelação ética. In: _________(org.). Interpelação ética. São Leopoldo: Nova Harmonia. 2003. P. 231.
[vi] BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 23.
- Doutor em Direito PPG/UFSC, Professor IFPR-Palmas. Autor do “Direcionário: Dicionário reacionário”. Articuslista e idealizador da Coluna sobre Política e Direitos Humanos no Jornal Estado de Direito.