A coragem necessária para descriminalizar o aborto no Brasil

Kátia Rubinstein Tavares[1] e Luciana Boiteaux[2] 

 

“… O que a vida quer da gente é coragem”. (Guimarães Rosa)

 

Finalmente, depois de seis anos de tramitação, a Ministra Rosa Weber pediu pauta e irá iniciar ainda no mês de setembro de 2023 o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com o apoio do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS). Nesta ação, propõe-se a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez nas primeiras 12 semanas de gestação, pelo Supremo Tribunal Federal, com fundamento na violação de diversos princípios fundamentais.[3]

O aborto foi criminalizado pela primeira vez na legislação brasileira no Código Criminal do Império de 1830, punindo tão somente a pessoa que realizasse o procedimento, mas nenhuma sanção sofria a gestante que praticasse em si manobras abortivas ou admitisse que outro o fizesse.[4] A partir de 1890, o Código Penal da República passou a criminalizar também a mulher que cometesse aborto em si mesma, cuja pena poderia ser de 2 a 6 anos de prisão, caso houvesse a expulsão do feto; além do aumento e o agravamento da penas no caso de aborto provocado por terceiros e que resultasse em morte.[5] Tais mudanças estavam em consonância com os padrões associados à época de uma crescente necessidade em disciplinar e controlar socialmente a sexualidade feminina.[6]

No Código Penal de 1940, ainda em vigor, o aborto é considerado crime, previsto nos artigos 124 a 126. A pena varia de 1 a 3 anos de prisão para a mulher ou pessoa que gesta ao provocar aborto em si mesma ou consentir que outra pessoa lhe provoque. Há somente a permissão legal que autoriza a interrupção voluntária quando a gravidez é resultante de estupro ou se houver risco para a vida da mulher (artigo 128) e nos casos de anencefalia, este último por decisão do STF na ADPF 54. Mesmo assim, são notórios o drama e a burocracia que a gestante enfrenta para conseguir permissão junto ao Poder Judiciário e, também, na realização do procedimento nos hospitais públicos para acesso ao aborto legal.

A tese da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 442 se fundamenta em diversas razões jurídicas: a criminalização do aborto pelo Código Penal não se sustenta, porque viola os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, das mulheres e das pessoas trans, da cidadania, da discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas (Constituição Federal, art. 1°, incisos I e II; art. 3°, inciso IV; art. 5°, caput e incisos I, III; art. 6º, caput; art. 196; art. 226, § 7º). Sustenta, ainda, que a manutenção da gravidez indesejada, conforme prevê o Código Penal, constitui um tipo de tortura inconcebível em um Estado Democrático de Direito, motivo pelo qual não foi recepcionado pela vigência da Constituição Federal de 1988.

Para além, a ADPF 442 destaca um histórico de decisões, em diferentes oportunidades, em que a Suprema Corte já se antecipa ao debate trazido com relação ao reconhecimento dos direitos fundamentais em favor das mulheres e pessoas que gestam nos julgamentos, a saber: ADI 3.510[7] em que discute a proteção constitucional em pesquisa de célula-tronco com embriões, admitindo os direitos fundamentais e a personalidade jurídica somente a partir do nascimento com vida e permitindo o descarte de embriões; ADPF 54 em que decidiu sobre a autorização da interrupção de gravidez em feto anencéfalo, a qual reconheceu a proteção da vida cerebral de existência juridicamente humana, seja ela intrauterina ou extrauterina[8]; HC 124.306 em que o STF concluiu que o embrião ou o feto não possuem status de pessoa constitucional, pois isso somente é reconhecido após o nascimento com vida[9].

A partir desses precedentes, inclusive, é importante ressaltar a competência e a legitimidade da Suprema Corte decidir sobre esse tema quando a criminalização viola direitos fundamentais, ou seja, exercendo seu papel contramajoritário, como afirma Luigi Ferrajoli: “É nesta sujeição do juiz à Constituição, e portanto no seu papel de garantir os direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, que reside o principal fundamento atual da legitimação da jurisdição e da independência do Poder Judiciário frente aos Poderes Legislativo e Executivo, embora estes sejam – e até porque o são – poderes assentes na maioria”.[10] 

A ADPF 442 argumenta, ainda, que a criminalização do aborto contraria o princípio da razoabilidade, porquanto a sua proibição gera uma falsa preocupação de proteção ao bem jurídico o qual se almeja tutelar (vida do nascituro), e não produz qualquer impacto sobre o número de abortos praticados no país.  Pelo contrário, a incriminação do aborto só impede que a interrupção voluntária da gravidez seja feita de modo seguro e igualitário. Além disso, existem outros meios mais eficazes e menos lesivos para o Estado evitar a ocorrência de abortos, ao invés da criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo psicológico à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas. Por fim, a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.

Afigura-se a criminalização do aborto sob o ponto de vista jurídico, constitucional e social, um lamentável equívoco, pois a sua proibição expõe mulheres e pessoas que gestam, especialmente as pobres, negras e indígenas a grandes riscos de vida, já que elas recorrem a expedientes não cirúrgicos, sem assistência médica e cuidados higiênicos exigidos para a sua prática, e acabam se submetendo ao aborto de forma insalubre. A desigualdade racial e de classe torna o aborto um episódio muito mais comum na vida das mulheres hipossuficientes e que vivenciam maior vulnerabilidade social. Muitas mulheres sofrem hemorragias graves, perdem o útero, vão parar na UTI e morrem. O aborto é considerado a terceira causa de morte materna no Rio de Janeiro, e a quinta no Brasil.[11] Não foi ainda realizado um estudo que tenha por objetivo a determinação dos custos para os cofres públicos; entretanto, especialistas estimam que as complicações do aborto clandestino possam ser dez vezes maiores do que seria para atender os casos de abortamento legal.

Ninguém pode ser a favor da prática em si do aborto. Contudo, da forma como é tratada a matéria, ao contrário de tutelar a vida humana, criam-se ameaças a outros bens jurídicos, como a saúde e a integridade física das mulheres. Chega-se à seguinte conclusão: a criminalização do aborto não impede a sua realização, conforme apontam as pesquisas.[12] O Brasil é recordista em abortos clandestinos (cerca de mais de um milhão por ano).

É importante contextualizar que a maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento autoriza a interrupção da gestação por decisão da mulher e pessoas que gestam dentro de limites temporais, tais como: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, México, Dinamarca, Eslováquia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Itália, Letônia, Lituânia, Moçambique, República Tcheca, Rússia, Suíça. Na América Latina, Uruguai, Cuba, Porto Rico, Guiana, Guiana Francesa, Colômbia também autorizam a interrupção da gestação. Na Argentina, foi aprovada em 2020 a lei que permite às mulheres interromper a gravidez nas primeiras 14 semanas de gestação.

Na realidade, o aborto é um tema que deve ser tratado no âmbito da saúde e não como caso de polícia ou pela justiça criminal, onde lamentavelmente se situa a sua criminalização há mais de cem anos em nossa legislação penal. É necessária essa conscientização pela sociedade civil, pelo poder público, especialmente pelos Ministros do STF, que deverão enfrentar o debate nos próximos meses, a fim de assegurar às mulheres e pessoas que gestam o direito constitucional de interromper a gestação, de acordo com a autonomia delas, e sem a necessidade de qualquer permissão específica do Estado; para além de garantir a elas todo o apoio necessário do atendimento de profissionais da saúde, quando da realização de tal procedimento, caso optem pela interrupção da gestação indesejada.  

É importante relembrar as recomendações do jurista italiano Piero Calamandrei, que se tornaram um mantra a ressoar na comunidade jurídica brasileira, dirigidas aos magistrados no momento de julgar, devendo “ter a coragem de exercer sua missão de juiz, missão quase divina não obstante sentir em si todas as fraquezas, todas as baixezas, mesmo, dos homens. Deve saber impor silêncio a uma voz inquieta, que lhe pergunta o que teria feito sua humana fragilidade se tivesse se encontrado nas condições em que se encontrou a pessoa que julga.” Em conclusão, “é preciso maior coragem para ser justo, arriscando-se a parecer injusto, do que para ser injusto, ainda que fiquem salvas as aparências da justiça”.[13]

[1] Advogada criminalista. Doutora pela UERJ em Políticas Públicas e Formação Humana. Diretora do Instituto dos Advogados Brasileiros e autora do parecer favorável à ADPF 442 no STF, que foi aprovado pelo IAB em 2018, Conselheira da OAB/RJ. Diretora da SACERJ.

[2] Professora da UFRJ licenciada, advogada da ADPF 442 no STF e vereadora no Rio de Janeiro.

[3] Supremo Tribunal Federal. ADPF 442. 1ª Turma, Relatora Ministra Rosa Weber. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5144865 . Acesso em: 18 Set. 2023.

[4] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm

[5] O crime de aborto era previsto no capítulo IV do Título X: TÍTULO X Dos crimes contra a segurança de pessoa e vida CAPITULO IV DO ABÔRTO “Art. 300. Provocar abôrto, haja ou não a expulsão do fructo da concepção: No primeiro caso: – pena de prisão cellular por dous a seis annos. No segundo caso: – pena de prisão cellular por seis mezes a um anno. § 1º Si em consequencia do abôrto, ou dos meios empregados para provocal-o, seguir-se a morte da mulher: Pena – de prisão cellular de seis a vinte e quatro annos. § 2º Si o abôrto for provocado por medico, ou parteira legalmente habilitada para o exercicio da medicina: Pena – a mesma precedentemente estabelecida, e a de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação. Art. 301. Provocar abôrto com annuencia e accordo da gestante: Pena – de prisão cellular por um a cinco annos. Paragrapho unico. Em igual pena incorrerá a gestante que conseguir abortar voluntariamente, empregado para esse fim os meios; e com reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria. Art. 302. Si o medico, ou parteira, praticando o abôrto legal, ou abôrto necessario, para salvar a gestante de morte inevitavel, occasionar-lhe a morte por impericia ou negligencia: Pena – de prisão cellular por dous mezes a dous annos, e privação do exercicio da profisão por igual tempo ao da condemnação.” Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em 10 set. 2023.

[6] Foucault, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de Saber, Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 131 e 132.

[7] STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510. Plenário, Rel. Min. Ayres Britto. J. em 05/03/2008.

[8] STF. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Plenário, Rel. Min Marco Aurélio. J. em 12/04/2013, DJe 30/04/2013.

[9] STF. Habeas Corpus nº 124.306/RJ. Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. do Acórdão Min. Roberto Barroso. J. em 09/08/2016.

[10] FERRAJOLI, Luigi. O novo em direito e política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 101-102.

[11] ALEJ. Indice de Mortalidade Materna no Estado É Alto e Preocupante. Disponível em

https://www.alerj.rj.gov.br/Visualizar/Noticia/55915 Acesso em 18 set. 2023.

[12] Fonte: Pesquisa Nacional do Aborto foi realizada pela Universidade de Brasília e pela Anis – Instituto de Bioética, com financiamento do Ministério da Saúde e Fundo Elas. (DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Cien Saude Coletiva, v. 22, n. 2, p. 653-660, 2017. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017222.23812016>. Acesso em: 25 fev. 2017). 

 

[13]CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Tradução Ivo de Paula. São Paulo: Pillares, Disponível em: https://www.academia.edu/33309811/Eles_os_ju%C3%ADzes_vistos_por_n%C3%B3s_os_advogados_Calamandrei Acesso em 11 set.2023.

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