Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
MARÇAL, Patrícia Fontes. Estudo Comparado do Preâmbulo da Constituição Federal do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2001, 190 p.
Acaba de sair (2019, 1a edição, 675 p), pela Editora GZ do Rio de Janeiro, o mais recente livro de Patrícia Fontes Marçal, agora um Curso de Direito Constitucional.
A Autora dá continuidade, nessa obra, indicada pela Editora, como “fruto da sua maturidade acadêmica, na medida em que pontua e analisa os artigos da Constituição Federal de 1988 de forma didática, tornando-se já em sua segunda edição apoio indispensável ao estudante e ao pesquisador”.
Acompanhei o início do percurso acadêmico de Patrícia Marçal, ao tempo em que ela completou seu Mestrado em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Nesse período já era possível divisar em sua autoria, a futura professora, hoje exercendo sua docência universitária em seu Rio Grande do Sul. Então já era possível antecipar, o que logo se distinguiu na vasta produção jurídica que vem realizando, um contínuo amadurecimento epistemológico, presente nos trabalhos mais atuais sem, contudo, perder o que lhe granjeou interesse editorial, o cuidado didático que imprime em seu livros, por isso que lidos com muita atenção, por estudantes e pesquisadores seja para orientação, em seus objetivos de vencer certames, seja para dispor de esquemas de compreensão dos temas tratados que, em catálogos editorias satisfazem o requisito mais comercial para aqueles, diz a sua Editora, se “preparam para concursos públicos em geral, porque condensa toda a matéria de forma didática, por meio de organogramas”.
De minha parte, muito menos mobilizado por esse aspecto do trabalho de Patrícia, busco aqui resgatar o seu lado mais ensaísta, portanto mais caracteristicamente autoral, buscando neste Lido para Você talvez o que terá sido o seu mais original trabalho, atualmente pouco referido em sua bibliografia. Refiro-me ao seu Estudo Comparado do Preâmbulo da Constituição Federal do Brasil, publicado em 2001, originado de sua Dissertação de Mestrado na UnB.
A primeira nota designativa desse livro de Patrícia Marçal, é o dar relevo a um tema praticamente ausente na discussão constitucional, mas extremamente fecundo para o seu enriquecimento.
A relevância temática deriva, aliás, do inesperado de se introduzir nessa discussão outros modos de pensar problemas constitucionais, ainda fortemente balizados pelo paradigma do positivismo normativista, que tem restringido o direito constitucional e as teorias da Constituição a um enquadramento formalista.
A busca de novas epistemologias para além do paradigma positivista foi a tônica dos movimentos da chama crítica jurídica a partir dos anos 1960 e encontrou na UnB uma resposta criativa, sobretudo em Roberto Lyra Filho no seu manifesto de 1978 – Para Um Direito Sem Dogmas -, base de uma concepção de direito já não constituído pela norma positivada, senão como a “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade” ( O Que É Direito. São Paulo: Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, n, 62, 1a. Edição, 1982).
Desde então, noutros planos, tal reorientação epistemológica ainda mais se adensou, sendo digna de registro a tomada de posição em perspectiva internacionalista de proteção dos direitos humanos e fundamentais, como se depreende de intervenções profundamente inovadoras e constitutivas de novas categorias de apreensão do fenômeno jurídico. O registro, no caso, põe em relevo outro professor da UnB – Antonio Augusto Cançado Trindade – atualmente juiz na Corte Internacional de Haia e por duas vezes Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Numa intervenção a título de voto concurrente proferido na Opinión Consultiva OC-16/99, de 1 de octobre de 1999, solicitada pelos Estados Unidos Mexicanos, acerca de “el derecho a la información sobre la assistência consular en el marco de las garantias del debido processo legal”, o mais destacado internacionalista brasileiro desenvolve uma aguda reflexão sobre “o tempo e o direito revisitados: a evolução do direito diante das novas necessidades de proteção”, para concluir que só foi possível à jurisprudência internacional em matéria de direitos humanos desenvolver uma interpretação dinâmica ou evolutiva dos tratados de proteção dos direitos humanos na medida em que a ciência jurídica contemporânea logrou libertar-se das amarras do positivismo jurídico.
Em outra belíssima intervenção, igualmente voto concurrente (Sentencia de 19 de noviembre de 1999, Caso Villagrán Morales y Otros – Caso de los Niños de la calle), vai ao ponto de estruturar categoria nova cogente ancilar ao conceito do direito ~a vida com dignidade, para sustentar a tese da inviolabilidade do “projeto de vida”, vale dizer, daquela dimensão de expectativas integrável ao universo conceitual do direito de reparação quando violado, porquanto “el proyecto de vida se encuentra vinculado a la libertad, como dereho de cada persona a elegir su próprio destino’ (…) El proyecto de vida envuelve plenamente el ideal de la Declaración Americana (de Derechos y Deberes del Hombre) de 1948 de exaltar el espíritu como finalidade suprema y categoria máxima de la existência humana”.
A escolha de um tema problemático, tal como o fez Patrícia Marçal, enseja de saída, em sede constitucional, a necessidade de determinar a natureza mesma do preâmbulo de uma Constituição em sentido jurídico e como deve conceber-se a própria lei fundamental.
Trata-se, conforme salienta outro antigo professor da UnB, Inocêncio Mártires Coelho, de enfrenar “o primeiro e radical problema, cuja solução condicionará tudo o mais” que consiste em “saber-se como devemos conceber a lei fundamental, se apenas como constituição jurídica, isto é, como simples estatuto organizatório, mero instrumento de governo, no qual se regulam processos e se definem competências, ou se, pelo contrário, devemos admiti-la mais amplamente como constituição política capaz de se converter num plano normativo-materia; global, que eleja fins, estabeleça programas e determine tarefas” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica/Instituto Brasiliense de Direito Público, 2000).
A contribuição de Patrícia Marçal faz-se na perspectiva do “impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias políticas da justiça e pelas teorias críticas da sociedade”, e inscreve-se, na preocupação salientada pelo constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, de resgatar o direito constitucional da condição de “prisioneiro de sua aridez formal e de seu conformismo político”, ampliando as possibilidades de compreensão e de explicação das questões que o constituem (Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998).
Por isso que ela não trava o seu debate apenas em viés jurisdicista estiolante, mas procura situar o seu tema – o estudo do Preâmbulo da Constituição Federal do Brasil – de modo que permita, é ela quem o diz, conhecer “o momento histórico, filosófico, psicológico e moral reinante na sociedade da época que fundamentam a importância de seu texto e de seus princípios demonstrando os valores da sociedade”.
No seu belo estudo introdutório à edição de Leis, de Platão (Diálogos, volumes XII-XIII. Leis, Platão, tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, Coleção Amazônica/Série Farias Brito, 1980), Hildeberto Bitar salienta esta natureza paidética do diálogo póstumo de Platão, mas procura identificar nele, tal como fez Patrícia Marçal, daí extraindo sentido hermenêutico constitucional, a preocupação com o objetivo político de assegurar a eficácia das leis.
De modo pertinente, assim, a Autora recupera em Platão a precedência da abordagem do tema para assinalar o sentido pedagógico que o filósofo grego atribuía ao Preâmbulo em sua materialidade constitutiva do corpo das leis. É aí, diz Werner Jaeger, que se manifesta o seu critério fundamental do que deve ser uma verdadeira legislação. Toda a ação legislativa é educação, e alei, o seu instrumento. É assim que Platão, destaca Jaeger, chega à exigência de não se formularem só preceitos, mas de se induzirem os homens a uma ação correta, por meio dos preâmbulos das leis (Paidéia. A formação do homem grego. São Paulo/Brasília: Martins Fontes/Editora da UnB, 1986).
Longe dessa referência ética que projeta da lei para a cidadania a indução para a ação correta, em modo digno de exercitar a política, no Brasil, hoje, tal como sugeri em texto elaborado com Renata Carolina Corrêa Vieira “o cansaço e a decepção parecem também conduzir a um despertar de um protagonismo prestes a eclodir. Aos poucos vai se revelando um cancro institucional que se enquistou na tessitura democrática da política e contaminou a própria história do País. Uma conspiração urdida, nefasta, ardilosa, traiçoeira ampliou-se nessa tessitura numa metástase dilaceradora. Setores institucionais e, principalmente do sistema de justiça, engolfaram-se na necropolítica que produz a exceção, reduzem o jurídico a filigrana. Julgam-se aliados num arranjo semelhante a um partido. Não são, agora se revela, correligionários, são cúmplices. Seu crime é de lesa-pátria, imprescritível, imperdoável, inapagável”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |
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