Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Entre a Ocupação, a Certificação e a Titularidade da Terra: a Luta pelo Direito à Terra da Comunidade Quilombola de Macambira – RN. ÁUREA BEZERRA DE MEDEIROS. Dissertação de Mestrado, apresentada e defendida no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília – UNB. Brasília, 16/08/2019, 75 p.
Em seu trabalho, aqui apresentado como sugestão a Editores, Áurea Bezerra de Medeiros oferece um sumário descritivo do campo que pretende abranger, abrindo com uma introdução histórica, na qual recupera o percurso que vai da escravidão à formação dos quilombos, para abrigar o sentido de reconhecimento dos remanescentes dessas comunidades, a partir de julgamento do Supremo Tribunal Federal, no marco da Constituição de 1988 e, tal como está no artigo 68 da Disposições Transitórias, a designação de direitos das comunidades quilombolas. Sob esse ângulo, ela analisa a decisão do STF sobre a constitucionalidade do Artigo 68 da ADCT e do Decreto 4.887, tal como se deu no julgamento da Adin 3239.
Em seguida a autora traça “a Longa e Tortuosa Trajetória Sofrida Pela Comunidade Quilombola de Macambira – Detalhamento da Tensão entre a Justiça Estadual, a Federal e o processo Administrativo no INCRA”. Assim ela descreve, com detalhes o Processo na Justiça Estadual, a luta pela terra iniciada em 1997; a Apelação TJRN e Ação de Execução Provisória na Justiça Estadual do RN; o enquadramento da questão na Justiça Federal – Processo nº 0800076-72.2013.4.05.8402; o modo de designação da Comunidade Quilombola Macambira no Processo Administrativo no INCRA; finalizando com uma análise documental crítica desses processos judiciais e administrativo.
No que é uma singularidade do trabalho, a autora, indica já no sumário, a sua importante contribuição, para o conhecimento dessa realidade, pois penso que é o único estudo que a focaliza e oferece um retrato da COMUNIDADE QUILOMBOLA DE MACAMBIRA E SUA HISTÓRIA: o seu reconhecimento como comunidade quilombola; esse reconhecimento pela Justiça Federal, no tocante ao seu direito as terras; e, outra singularidade do estudo, a demonstração do conflito presente nesse enquadramento no que designa como “A Comunidade Quilombola de Macambira, as torres de energia eólica um acordo extrajudicial lesivo”.
O sumário capta o alcance do trabalho, conforme sugere o resumo proposto pela própria Autora: “Este trabalho focaliza-se no direito ao reconhecimento e titulação das terras da Comunidade Quilombola de Macambira localizada no Município de Lagoa Nova no Rio Grande do Norte. A proposta de pesquisa é analisar os processos judiciais e administrativo no INCRA, para compreender a demora em conceder a comunidade a titulação definitiva de suas terras. Nesse sentido, a análise será dos documentos judiciais na esfera estadual, federal e administrativa. Pretende-se intercalar a análise documental com a pesquisa de campo a qual foi realizada entrevistas, observação e imagens fotográficas. Além disso, pretende-se compreender o desenrolar processual jurídico e administrativo para reconhecimento e titulação da comunidade. Entendo que esta pesquisa poderá também corroborar para a compreensão dos tramites jurídicos e administrativos que são impostos as comunidades para o reconhecimento de seus direitos”.
Participante da banca examinadora, juntamente com o orientador que a presidiu professor Menelick de Carvalho Netto e ainda o professor Guilherme Scotti Rodrigues (da Faculdade de Direito da UnB), entre os aspectos críticos próprios a uma arguição, desde logo distingui uma dimensão subjetiva de dupla face.
A primeira, essa possibilidade de dar relevo, um estudo de caso, e por isso, a um recorte de realidade único, que só um estudo dessa ordem pode oferecer. Aqui, um cadinho da história geo-política do Rio Grande do Norte, meu cadinho potiguar tão marcante em minha própria formação e história de vida. Por mais singela que seja a experiência recolhida e relatada, de menor expressão no contexto dos grandes estudos sobre o tema, ela carrega a força da exemplaridade que o caso proporciona. Dizendo de forma poética, com Fernando Pessoa: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”.
Penso que esse carisma se manifesta também na autora. Basta ver o instigante memorial que trouxe junto com a dissertação: “A Comunidade Quilombola de Macambira chama atenção para a pesquisa por três motivos: a comunidade tem um histórico de luta judicial que muito interessa em decorrência de minha formação acadêmica e atuação como advogada; tem um número significativo de moradores que possivelmente vêm sofrendo restrição de seus direitos; por último, fica no interior do Rio Grande do Norte, localidade que tenho muita afeição e conhecimento geográfico. Todos estes requisitos levam a um estudo de caso da Comunidade Quilombola de Macambira, sendo os dois primeiros motivos primordiais para uma pesquisa acadêmica…Assim surgiu e concretizou-se a pesquisa na Comunidade Quilombola de Macambira, onde presenciei a realidade de um povo sofredor e batalhador. É uma história que ficará para sempre na memória”.
A segunda dimensão subjetiva e reatar o fio de um tema, forte na agenda político-epistemológica do campo de estudos e pesquisas de O Direito Achado na Rua, no sentido de que o interesse pelo campo não é apenas intelectual, mas igualmente o de compromisso com a subjetividade que reivindica com seu protagonismo, reconhecimento a sua identidade social (de sujeito coletivo de direito) e a sua agenda de luta por direitos.
Portanto, não se trata de transformar um processo político em tema de estudo, mas de dar ao tema de estudo uma dimensão crítica que o transforme em arma para fortalecer a luta por emancipação. Isso é uma exigência da conjuntura de regresso democrático na qual nos encontramos, que desconstitucionaliza o país e que esvazia o alcance material dos direitos tão sofridamente conquistados (ver meus artigos com Renata Carolina Corrêa Vieira: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/588287-nenhum-direito-a-menos-em-defesa-da-constituicao-e-da-democracia e http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589513-o-direito-achado-na-rua-como-horizonte-democratico-participativo-do-espaco-institucional-a-rua).
Não se trata de uma disposição retórica, se se tem em mente a promessa eleitoral de uma plataforma que alcançou a Presidência da República: “Se eu chegar lá (na Presidência), não vai ter dinheiro pra ONG. Esses vagabundos vão ter que trabalhar. Pode ter certeza que se eu chegar lá, no que depender de mim, todo mundo terá uma arma de fogo em casa, não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola.” (cf. https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/bolsonaro-quilombola-nao-serve-nem-para-procriar/).
E é contra essa disposição, com toda a força da crítica , que se torna tanto mais necessária a articulação de estudos que formam o acervo de O Direito Achado na Rua. Assim, em arrimo à luta quilombola por reconhecimento e direitos, a dissertação de Emília Joana Viana de Oliveira, que orientei e que foi brilhantemente defendida e aprovada na Faculdade de Direito da UnB.
Seu trabalho precede a vertente acadêmica que se debruça sobre o tema e que começa a oferecer reflexões valiosas para a afirmação dos direitos humanos das Comunidades Quilombolas. É o caso da dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UnB) de Emília Joana Viana de Oliveira: Mulheres quilombolas na luta pelo direito à água: uma reflexão a partir do conflito do Quilombo Rio dos Macacos – BA.
No centro de sua pesquisa se vai constatar a água como elemento central para a produção e reprodução da vida humana, e, também para a manutenção do modo de vida da Comunidade Quilombola de Rio dos Macacos-BA, pela identidade quilombola pesqueira e agricultora no espaço rural. A dissertação apresenta a água como um componente central na disputa pelo território no conflito com a Marinha do Brasil, que executa uma gestão territorial de controle, proibição, violências e restrição do acesso à água, com diversas violações de Direitos Humanos desde a chegada da instituição no território onde já vivia a comunidade e se iniciaram as atividades que envolvem o complexo da Base Naval de Aratu-BA na década de 50.
A partir do conflito, vê-se a práxis de mulheres quilombolas para a manutenção do modo de vida quilombola, que é atravessada pelo racismo e ao sexismo, tem o papel anunciar que o território também é água, na medida em que lutam para que o processo de regularização fundiária quilombola no contexto de conflito com o Estado, por meio de uma instituição militar, garanta também o acesso aos rios, fontes sagradas e a possibilidade de uso da água de todas as formas necessárias para a garantia do modo de vida quilombola.
A disputa pela compreensão da água como parte do território e como um Direito Fundamental, surge da percepção de mulheres negras nesse conflito e visa a efetivação deste diante do Estado e se aplica a esse, mas também a tantos outros conflitos fundiários no Brasil, marcados pelo racismo desde a colonização, de modo que o olhar para a experiência quilombola, no passado e no presente, evidencia um dos modos de disputa pelo acesso à terra da população negra brasileira, como continuidade da diáspora africana. Ao mesmo tempo, amplia a percepção do acesso a água como dinâmica essencial para a manutenção dos modos de vida de acordo com as identidades e as territorialidades.
Disse tudo isso, a propósito da dissertação de Emília Joana, quando inclui nessa Coluna Lido para Você, a resenha de obra de Vilma Francisco a propósito de Direitos Humanos Quilombolas: http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-para-quilombolas/ (Direitos Humanos para Quilombolas. Coleção Caminho das Pedras, vol. 1. Vilma Francisco. Rio de Janeiro, 2006, 38 p.).
Há outras referências dignas de nota nesse campo. Na UnB, ponho em relevo o Maré – Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro. O Maré é um grupo de pesquisa da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, dedicado aos estudos críticos do direito e das relações raciais no contexto da diáspora africana. Dentre as pesquisas, dissertações, teses que formam o acervo desse Coletivo, sugiro a leitura do trabalho, já editado pela Editora Lumen Juris Constitucionalismo e Quilombos: famílias negras no enfrentamento ao racismo de Estado (GOMES, Rodrigo Portela. Rio de Janeiro, 2019, 263 p.). Esta obra diz o professor Menelick de Carvalho Netto em apresentação, constitui-se “mediante a hábil condução do leitor um mergulho em uma dimensão até então velada da história do Piauí, consubstanciada em envolvente estudo de caso, a resgatar as ‘trajetórias-experiências’ das comunidades quilombolas do Estado. Uma história de tensão e lutas de enfrentamento ao racismo de Estado, exatamente ali, onde, pela historiografia oficial, somente teria havido o pacífico pastoreio do gado”.
O professor Menelick, que também orienta a dissertação de Áurea valoriza conforme eu também o faço, a importância dos estudos de caso, valiosos na configuração das singularidades, assim Barro Vermelho e Contente, no Piauí, na pesquisa Rodrigo Portela Gomes e Macambira, no Rio Grande do Norte, no estudo de Áurea Bezerra de Medeiros.
Também editado pela Lumen Juris, com igual caraterística – estudo de caso – o livro de Cássius Dunck Dalosto (Políticas Públicas e os Direitos Quilombolas no Brasil. O exemplo Kalunga, Rio de Janeiro, 2016, 243 p.). Pesquisa originada do Programa de Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás, o livro insere no contexto da “história dos quilombos no Brasil”, a experiência de resistência dos Kalungas (Estado de Goiás) e seu processo de luta. É desse processo de luta que trata o livro, luta de resistência “contra a violência perpetrada sobre as comunidades negras no Brasil na busca por reconhecimento e por acesso aos bens e serviços oferecidos pelo Estado… para a conquista por direitos e sua efetivação na realidade social por meio de políticas públicas…”.
O estudo de Áurea apreende uma realidade em processo, pondo em evidência o conjunto de ameaças que pairam sobre o direito reivindicado. Para a autora, “no caso da Comunidade, a garantia jurídica de seus direitos esteve todo o tempo sendo tolhida, conseguir a efetivação deste direito tornou-se uma luta desleal, observa-se o período que o processo ficou parado na primeira instância sem ter prosseguimento, e o prazo que não foi concedido a Comunidade para apresentar manifestação sobre o terceiro interessado que iria fazer parte do processo”.
Se bem possa parecer uma constatação pessimista, a autora confia na mobilizadora das expectativas utópicas e se apoia “nos dizeres de (Joaquín Herrera Flores, A reinvenção dos direitos humanos; tradução de: Carlos Roberto Diogo Garcia; Antônio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias – Florianópolis: Fundação Boiteux 2009), o problema não é de como um direito se transforma em direito humano, mas sim como um “direito humano” consegue se transformar em direito, ou seja, como consegue obter a garantia jurídica para sua melhor implantação e efetividade”.
A dissertação de Áurea Bezerra de Medeiros acaba assumindo mais que o resultado como artefato de um percurso acadêmico, um requisito para a obtenção de um grau universitário. Ela é isso sim. Mas é, principalmente, um instrumento para documentar uma luta em curso, importante para a Comunidade de Macambira que tem uma agenda para realizar, em relação a sua titularidade, e a revisão dos itens lesivos de um acordo impeditivo à transformação do direito. Espero que Áurea volte à Comunidade, apresente a sua dissertação em seus espaços associativos e a ofereça como uma referencia singular para que o “direito humano” consiga se materializar em direito, ou seja, logre obter a garantia jurídica para sua melhor implantação e efetividade, realizando finalmente o Direito à Terra da Comunidade Quilombola de Macambira – RN.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. |